Fragma, de Cândido Rolim, Edição do Caos, 2007, é livro que se insere entre os não muitos que se propõem pensar a relação poesia/filosofia numa erupção de linguagem. Essa vertente logo-poética instaurada desde sempre, mas na pós-modernidade ante ou contra a mesmice da tautologia, contrapõe-se — também ela — à versão aurática e aos demônios da teoria como o combate feroz às idéias preconcebidas, e corrobora o exercício intelectual contra a "ilusão intencional", a tese da morte do autor e a da própria existência/necessidade da Literatura.

É um livro não-alinhado ao sensus comunis da "comunidade interpretativa", desfamiliarizante, com um horizonte de expectativa fechado em um repertório pouco acessível à fatura da galera.

O livro acrescenta um plus para além da "pulsão neográfica" com seu "verdadeiro magma de linguagem que se esgalha em sintagmas", como lê Ronald Augusto no prefácio.

Fragma reage a si mesmo. Anti-servil a uma poética do fragmento, fragra, no entanto, em seu desolado con-texto, um elogio da precariedade que se estende à transcendência cética: "deus assumiria o precário de estar em toda parte?" (67). Leitura incômoda mas imprescindível, posto que exige acuidade, mergulho contra rasuras, Fragma se faz com pensares sobre a permanência do efêmero e da obsolescência: "à margem de toda prevenção criteriosa, um campo de artifício. aceiro de desnecessidades" (16) - "como distinguir interdições do meio, do que é fluxo da decorrência ou uma desnecessidade intrínseca do acontecer?" (19) - "palavras inadequadas para realidades indecidíveis: o chão, por exemplo" (21) - "que elemento no mecanismo continua atuando no trânsito para a obsolescência" (41).

O poeta, ou melhor, filosoeta, pensa a memória do transitório: "o mínimo de duração já dissipa uma origem" (9) – "antes de serem esquecidas, as coisas procuram o auxílio do presságio" (16) – "o inesperado às vezes só nos surpreende porque antes de acontecer já o esquecemos" (18) – "para que se indignar tanto com o que se passa longe do momento e não cultiva razões suficientes para acontecer?" (58) – "a memória parece viver mais do quase vivido" (68) – "temeroso falar de algo que não cumpriu ainda uma volta inteira sobre seu próprio eixo" (69).

O poeta evidencia, também, a necessidade orgânica da repetição, condição sine qua non da rotina e da própria sobrevivência, da linguagem inclusive: "há coisas que se repetem só enquanto não observadas" (11) – "chama de completo a uma simples repetição do entrevisto" (22) – "porque do que acontece sobra sempre algo para ocorrer de novo" (34) – "o homem continua extraindo leis do que se repete. e se a maçã de newton caísse uma só vez?" (36) – "o extraordinário do cotidiano é certos fatos se repetirem tanto" (43) – "dizem: as coisas acontecem ou não. surgem ou se ocultam. duram ou têm um fim. mas existirá algo ocorrendo aos poucos, lembrando-se ou sendo esquecido aos pedaços" (46) – "no mínimo espaço da preterição inúmeras coisas se realizam" (71).

Rolim mostra como a irreversibilidade do realismo existencial se torna, hoje, a aporia como uma palavra que não se resolve; um filosoema sem saída; um a-nexo sem seu portal de diálogo; um fenômeno fazendo ânus glicosado para acontecer. Ou não: "não deveria acordar. mas as pálpebras já estão abertas e os eventos entram por elas com estardalhaço" (47) – "muitos abdicaram de interferir na realidade com as mãos para forçar somente as palavras a essa extenuante tarefa" (48) – "levando em consideração tudo o que a mão elege para que o homem supra a avidez de transformação e se ele construísse somente o que pretendesse estaria a realidade menos modificada, possível concluir que o alarga o mundo são as desistências" (53) – "partindo do princípio de que com o tempo o invisível se transforma e o sobrenatural se transfigura, por quanto tempo uma irrealidade suportará o contínuo suceder sem desprender-se de seu insuspeitado e concreto sítio?" (62) – "precisamos mesmo desse mundo à parte onde depor os restos de nossa percepção?" (65) – "a morte seria misteriosa se fosse um caminho de volta" (79).

Fragma está em busca de outras subjetividades que fomentem o pensar e a linguagem. É um libelo contra a tirania da perfeição. Um esgar de ironia corrosiva. Tem-se no livro a "multiplicidade descontínua de matrizes composicionais, do desenvolvimento assimétrico das partes isoladas", como na poesia de Eduardo White e, em nível macro, de T.S. Eliot. Interlocução da profunda imersão da consciência no Lebenswelt husserliano, mormente quando o poeta alude à fenomenologia. É como se o filosoeta dissesse, como disse Pessoa: "O verdadeiro real é a consciência da sua irrealidade essencial. Uma essencial irrealidade de Tudo".

A relação filosofia/poesia vige em Vico, na filosofia da arte de Hegel, que defende relação negativa entre ambas; na filosofia da arte de Schelling, com uma relação positiva. Como viceja no pensamento de Hölderlin e Heidegger: a questão da linguagem eleva-se de um sentido cotidiano do discurso para se tornar manifestação do ser. Em Fragma, porém, a metafísica é abolida: há um esvaziamento da linguagem com a perda carismática e previsível do "sentido ontológico".

A filosofia da poesia está em Comford, Northrop Frye, Keneth Burke, Rilke, Baudelaire, Pessoa. Como está no koan zen-budista, enquanto questão, história, diálogo, aspecto pouco acessível do racional que se ex-põe à reflexão.

 

 

Função substantivante do olho

 

Há uma outra vertente de leitura em Fragma: o vler. Em todo o livro são fartas as inferências de Rolim ao olhar, ao olho, ao visível e ao invisível, ao enxergar. Repertório: "há formas que tiranizam a percepção. desconfiar das escolhas do olho" (10) – "o olho vê primeiro aparições. depois, mais detido, enxerga as suspeitas concretudes" (11) – "o limite do visível não é visível. táctil a moldura do invisível. entre um e outro, a franja mais suave da matéria" (13) – "em qual retina não dorme o sonho totalizante" (14) – "olhar menos, tornar raro o ver, as coisas, se quiserem, que acompanhem o olho" (25) – "silencioso demais para ser visto" (26) – "enxergar na morte somente mistério equivale a conceder-lhe demasiada transitividade" (28) – "não há sítio lógico aonde a imaginação não vá de olhos fechados" (29) – "ele desperta e por puro comodismo acompanha as devoções esparsas do olho" (30) – "o chão vacila quando o olho não faz seu escrutínio a tempo" (31) – "luz e sombra convencem. mas é preciso saber onde o olho reina" (36) – "quando estiver em desuso o ver. o ouvir. tu reinarás ainda, sitiante fauce" (37) – "quem vê deus morre" (Juízes, XIII, 22). bem diferente de "quem morre vê deus" (38) – "veria melhor as coisas sem a contorção fabril do olho" (57) – "a função substantivamente do olho surge exatamente quando ocorre o abandono da causalidade" (66) – "o olho cria mais que a insistência artificiosa da mão" (72) – "nem tudo chega inteiro ao visível" (77).

O olho Rolim vê a coisa em si. O olhar no conceito benjaminiano, ou seja, em shock — provocando efeito no observador, o wirking: todo significado estético se identifica com a história, com o seu destino, sua aceitação, interpretação, na cultura e na sociedade. O olho como sentido para pôr sentido, para a prática da VERdade em si. O filosoeta, com a convicção de que "o pensamento se ocupa de pouca coisa além dele mesmo" (55), mostra:  vler é vril — imensa energia da vida comum.

 

 

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O livro: Cândido Rolim. Fragma. Fortaleza: Edição do Caos, 2007.

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abril, 2007

 

 

 

 

 

Márcio Almeida. Mestre em Literatura, jornalista, poeta, criador do Movimento de Resgate do Autor Inédito e Anônimo de Oliveira. Autor de 39 publicações, detentor de dezenas de prêmios literários, membro efetivo da Comissão Mineira de Folclore.