Alguém me diz que há uma lista dos 39 autores com menos de 39 anos mais importantes da literatura latina americana. E que nesta lista há 4 autores brasileiros. No último texto aqui, neste espaço, eu disse que havia feito uma lista de alguns autores que me interessam na literatura a que chamamos de brasileira. Muita gente me escreveu dizendo "cadê a lista", "me envia a lista", "quem são os nomes que você pôs na lista" etc. Nunca um artigo chamou tanta atenção. E não era o artigo, era só o diabo daquela frase que falava de uma suposta lista. Como grafei o termo e errei a mão ao não explicar que a lista aqui se fez sozinha, se faz sozinha, a cada artigo, digo isso agora. E pronto. Mas me dei conta que há uma doença que se aponta ao fracasso através da obsessão por listas, por montar coleções que implicam negar uma série, que implicam negar uma vertigem e principalmente negar um incômodo precioso que mora naquilo que não se pode listar. As listas, me parece, definem tudo. Mas e daí?


O fato, também me parece, é que as listas terminam por descambar apenas para a euforia do mercado de livros, para a falência estabelecida por seu próprio discurso eufórico (que muitas vezes se dá pela força editorial e mercadológica de uma grande editora ou um grande jornal ou revista) e para a euforia simplista e nominalista da leitura delas mesmas e, principalmente, para a fragilidade daquilo que não se move como leitura crítica; basta ver a repetição do procedimento nas tentativas de demolição da leitura modernista naquilo tudo o que se lista como "contemporâneo" e "importante" e que o tempo inteiro apenas nega o paradoxo. Seguindo a idéia da lista, dois outros emblemas da euforia: os prêmios (que são muito legais apenas para quem ganha, e se for em dinheiro, penso eu) e os convites para a feira ou festivais disso ou daquilo (que são também sempre muito legais para quem vai, apenas).


O outro fato é que em literatura (como dizia o velho Braga: "Mas no meio de tudo isso, fora disso, através disso, apesar disso tudo — há o amor".) além e aquém disso, há uma outra pancada que pode não carecer de tudo isso; há um outro embate, um outro impasse, uma outra relação, que é sempre absolutamente amorosa: e se dá antes de tudo com uma diferença, a linguagem. Veronica Stigger, uma autora de 33 anos, nascida em Porto Alegre, que está na lista dos 39, convidada para a Flip, este ano, foi editada agora por uma grande editora (seu primeiro livro saiu pela editora Angelus Novus, em Portugal, em 2003 e pela 7Letras, em 2004, O Trágico e Outras Comédias), a Cosac Naify: Gran Cabaret Demenzial. Mas e daí de tudo isso? Mas e daí se tudo isso? Qual é a graça? A graça está mais perto daquilo que Agustina Bessa-Luís, poeta portuguesa, dizia que mais se parecia com a gratidão e que ao mesmo havia se tornado intolerável; dizia que "o homem é treinado para atualizar a sua servidão, e não para assumir o seu sacrifício".

 

 

divulgação | ©walter craveiro



A questão se remonta depois quando Silvina Rodrigues Lopes, crítica portuguesa, pergunta: "o que pode a literatura em defesa da graça?". E ela mesma trata de tentar responder: "fazer a defesa da literatura, da sua possibilidade de existir". A questão é que entre tudo isso e para além e aquém de tudo isso, os livros de Veronica Stigger, este e o anterior, são sim um ato de resistência, um ato em defesa da possibilidade da literatura continuar existindo. Neste Gran Cabaret Demenzial, Veronica arma um gesto, descabido, debochado, para fazer uma leitura da "lógica imprevisível dos mitos", como conceito e como experiência, e muito ainda e tanto num nonsense que se fulgura como um contra movimento ou um antipensamento a certo prisma ordinário de uma ordem social vinculada a uma grande civilização que se depara com seu próprio nojo, com seu próprio dejeto. São narrativas interessantíssimas misturadas com poemas desfeitos; são os nós desfeitos de uma idéia de sujeito ou de qualquer sintoma que faça indicar algum sujeito. É muito mais uma horda, a falência de uma perspectiva humana e de uma vida coletiva, individual, harmônica ou qualquer coisa parecida com isso; os textos tendem a espalhar-se no desenho do livro como um grande cabaré, que não é senão uma agressividade ou uma tentativa de rever a graça; uma agressividade radical que é um mover-se contrário à grande civilização, àquilo que Peter Sloterdijk chamou o "Grande".


Daí, a leitura deste cabaré nos faz andar por personagens muito legais em sua graça corrosiva; como Domitila, a moça que se desmonta em pedaços, sangue e nadas; como o casal que termina por viver na latrina, como sobra, e depois no cu de um amigo, como única saída (ou entrada): "Não demorou muito para que o casal começasse a tomar gosto pelo novo ambiente"; ou como a tragédia às avessas, particular, de Tristeza e Isidoro, um drama em ato único, num acidente de carro, os dois dentro, tentando sair, desvirar o carro, ficar de pé etc. Assim, entre estas e outras personagens, a conta está feita neste trabalho amoroso com a literatura: a capacidade de "ultrapassar aquilo de que desespera", disse Agustina, que bem podia ser personagem de Veronica neste delicioso cabaré, nesta "soirée dadaísta", como Veronica mesma diz. A graça pode ser essa, ou isso.

 

 

 

[Publicado, originalmente, no jornal O Povo, em 14/05/2007]

 

 

 

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> Contos de Veronica Stigger

 

 

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O livro: Veronica Stigger. Gran cabaret demenzial. São Paulo: Cosac Naif, 2007.

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junho, 2007

 

 

 

 

 

Manoel Ricardo de Lima é professor de Literatura Portuguesa da UFSC. Autor de As mãos — The hands (tradução de Antonio Sergio Bessa) e Falas inacabadas (com Elida Tessler), entre outros.
 
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