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Breve estudo sobre Berço esplêndido — livro de poemas de Olga Savary.

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Em meio a um país em crise e um mundo ainda abalado pela queda dos dois falos representantes do poder norte-americano, no dia 11 de setembro, a poesia talvez possa demonstrar que, voltando às raízes, podemos encontrar civilizações que conviviam muito melhor com a realidade do que nós, com a nossa, tão capitalista e selvagem. Muitas vezes progredir significou distanciar-se daquilo que temos de mais importante: seja esquecer a socrática filosofia do conhecer a si mesmo ou afastar-se do profundo sentimento amoroso.

 

Mesmo tendo os portugueses colonizado Pindorama sob a égide dos versos camonianos, onde "O amor é o fogo que arde sem se ver e é ferida que dói e não se sente", foi sem nenhum amor ao próximo que foram dizimadas as populações indígenas. Convém ressaltar que os índios vivem sem a noção de progresso e, por isso, ligados ao eterno-retorno temporal, como assinala Nietzsche, em quase toda a sua obra. O amor e o tempo são fundamentais para se entender a modernidade e a pós-modernidade, onde há uma clara ambigüidade: quanto mais tempo o homem encontra para si, menos ama o próximo. Assim é importante dar vazão ao espírito de tríade que há no livro estudado a seguir. Também é importante a noção temporal de religare, como necessidade intrínseca de nos relacionarmos melhor entre si.

 

Tudo bem que uma coisa é o amor próprio, outra o amor-paixão, e outra o amor à humanidade. Mas como amar o outro sem amar a si mesmo e a humanidade? O amor moderno é doentio e hedonista. Que tal se viajássemos no tempo e conhecêssemos o doce sabor das caturiás (frutas boas) e o acre das uvaias (frutas ácidas)?

Este preâmbulo não é para justificar o título Berço esplêndido do livro de poemas de Olga Savary. Nem faz jus a toda a carga de lirismo existente em sua poesia. Mas descontextualizar seria minimizar a força de seus versos. Algum crítico mal-humorado poderia dizer que o livro, escrito há mais de dez anos, mesmo tendo sido premiado pela Academia de Letras da Bahia, não tem ingredientes que o tornem atual.

Escritora que se auto-define paraense-cearense-pernambucana, dona de um coração "russo-amazônico", Olga é um dos poucos líricos brasileiros que utiliza o índio como tema e recorre ao tupi em sua linguagem poética. Decerto que ela não faz um tratado sociológico sobre a questão indígena brasileira, mas ao abordá-la com luz e inspiração, torna-se uma rapeiára (guia) e mostra-nos o caminho para nos comunicar com a cultura anterior/ulterior/amorosa/umbilical. Quase que funda uma religião pagã, onde entramos em contato com a profundidade da verdadeira paixão e do verdadeiro amor.


O livro está dividido em oito partes: "Zôo", "A bela e a fera", "Ah King Kong", "Hora do recreio", "O dia da caça", "Berço esplêndido", "O coração do fruto" e "Carne viva". Em "Zôo", encontramos a mola de tudo que se descortinará nas demais partes do livro: o amor ao Brasil expresso no poema "Uraré (nascer) em Pindorama". Neste quase épico-lírico há passagens como "meu amor bem brasileiro/a descobrir-me brasileira,/que ganhei ao me perder/e perdi ao me ganhar/meu esplêndido e particular Zôo". Aqui temos todos os componentes de um grande poema: a ambigüidade da perda na derrota e a vitória na perda. "A bela e a fera" é uma seção composta por quatro poemas onde há o singelo "Rudá" (amor) e uma bela definição. O verso afirma: "O amor é uma morte desatenta". Se partirmos do pressuposto que ninguém quer morrer e que a morte vem acompanhada da dor, a simbologia deste poema alcança elevado teor filosófico. A morte desatenta é, então, a dor provocada pelo despojamento que é doar-se sem querer algo em troca e, por isso, a desatenção a si e às vezes a crise na auto-estima, causada até por paixões correspondidas.


"Ah King Kong" leva-nos a propostas anteriores da poetisa. Trata-se de mostrar o "bom selvagem" de uma forma irônica e requintada, sem cair no fácil. O poema "Rangáua" (medida) remete-nos a uma outra questão da entrega, à paixão e a toda a forma possível de sexualidade e sensualidade. Trata-se aqui de uma boa mostra de quanto Olga Savary é moderna. Há uma alusão subliminar, tênue, ao filme Império do Sentidos — segundo a poeta, uma das maiores obras cinematográficas já realizada. Na "Hora do recreio", o riso, o sorriso e o gozo aparecem em diversos versos. São namorados convertendo-se em água, tamanho o enlace de dois corpos enamorados no mar. Risos em transes paradisíacos. É a alquímica transformação do amor apolíneo em dionisíaco.


Em "O dia da caça" ecoa o grito de liberdade. A poeta insere a questão feminina e a desconfiança que os homens têm das mulheres, como se elas pudessem levá-los à morte. Em "Berço esplêndido" cada vez mais as dores de amores começam a atravessar o percurso do livro. Amar é sofrer? Aliado a isso, aumenta-se a dose de brasilidade, e a pátria tem o seu lugar no coração da poeta. Olga tece seu manto lírico colorindo de verde e amarelo suas dores e seus amores.


"O coração do fruto" resume mais um ninho solar da poesia de Olga. Nele ela mostra-nos que a semente poética não pode ser plantada em solo estéril e que, como semeadora de ventos poéticos, colhe uma tempestade de frutos maduros. "Carne viva" é nome de uma antologia de poesia erótica publicada por ela e também da seção final de poemas do livro Berço esplêndido. Aqui há um resumo de tudo que o livro nos mostra. Uma poeta confessional, que não tem medo de mostrar que sua vida se alimenta de desespero.

 

Quem tem medo de Olga Savary?

 

 

 

 

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Olga Savary, Berço esplêndido.  Rio de Janeiro: Editora Palavra e Imagem, 2001.

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novembro/dezembro, 2006
 
 

Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista. É autor do livro de poemas Há Flores na Pele, entre outros. Participou da antologia Na Virada do Século — Poesia de Invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates. Edita os blogues Lowcura e Pesa-Nervos. Mais na Germina.