Literatura é risco. Mesmo quando se quer guardar distância do limite — do que nos faz menos inventivo — entre o novo e o antigo, aqui, neste lugar entre o pop e a alta cultura, é onde morrem todos os perigos em um bom romance.

 

É muito difícil fazer o trivial muito bem feito: com élan e qualidade. Muito corriqueiro é cair no lugar comum e ir bueiro abaixo do fácil extremamente fácil.

 

Um exemplo atípico, em que mesmo explorando um assunto já batido, a escritora consegue atingir todos os objetivos de seu projeto literário é Querido Amigo (Editora Melhoramentos), de Flávia Savary. Neste livro a autora, sob a égide de Júlia, escreve cartas a um amigo, contando o seu dia-a-dia e as reflexões sobre a vida cotidiana. O que poderia ser um prosaico relicário do enfadonho, nada mais é do que uma pérola para a nossa juventude: um livro que transcende a definição de infanto-juvenil e agradará a todos que entrarem em contato com tudo de bom que há nele.

 

Flávia Savary, em tão pouco tempo de escritura, já faz ecoar a sua voz poética e pessoal. Numa prosa onde há forte impacto da maturidade discursiva, ela — obedecendo sempre à linha literária que apregoa o minimalismo sem inapetência, ou seja, escrevendo um texto enxuto e guiado pela regra da simplicidade —, consegue chegar a lugares muito profundos e singelos do ser humano. Pode-se dizer que Flávia é uma espécie de fada. Ela nos conduz pela simplicidade de suas frases curtas e diretas. Cada toque com sua varinha de condão é um novo olhar sobre temas corriqueiros. Leva-nos à iluminação mais eterna. Consegue mostrar a grande profundidade que as coisas simples têm.

 

Dona de um extenso vocabulário — o que não compromete a mente menos tacanha de nossas crianças —, a autora insere palavras próprias de adulto e não empobrece o seu texto, para que as crianças leiam com uma ilusória facilidade a prosa de uma pessoa muito bem esclarecida. Criança não precisa saber que é criança. Criança tem de ser tratada como gente grande. Ainda mais o adolescente, tão disposto a conhecer um mundo cheio de novidades e dicotomias, onde há espaço para o amor, o desamparo, a afetividade.

 

Há em todo o opúsculo uma vocação para a afetividade mais profunda. Apesar de amigos e de — na troca de cartas — a escritora ter descortinado apenas as cartas da personagem feminina, há uma bela composição do personagem masculino: um arquiteto que Júlia conheceu numa vernissage. Há o filho do amigo querido: Davi. Talvez por ter tanta importância é que é tratado de Querido Amigo: um amigo presente em todas as horas.

 

Num mundo onde as relações são voláteis e estão ao sabor do fútil, do irrisório, e os seres caminham no território do desamor e do desamparo, o livro de Flávia Savary é um libelo à amizade e ao conhecimento do próximo: na medida exata que conhecer o outro é revelar a si mesmo e desvelar o que há de comum entre os seres humanos.

 

Sem uma linha de sexo apelativo, sem apelar para duplo sentido ou ironia, a autora penetra no âmago da questão: é possível um relacionamento afetivo de alto nível hoje em dia? Algo que dure mais do que os 15 minutos? Quem nos responde é Júlia e seu intenso relato de amizade, onde o descompromisso é o eterno compromisso de respeitar o outro como a si mesmo. Ela trata o seu amigo como deve ser tratado e o guarda — como canta Milton Nascimento — do lado esquerdo do peito.

 

 

Cartas para o melhor amigo

 

Apesar de as cartas de Júlia não serem dilaceradamente marcadas por um amor tórrido — o que por si só já é uma novidade em tempos de sexualidade tão exacerbada — é patente que existe muita atração entre os dois personagens. Se é uma atração sublimada, somente a autora poderá mostrar em outro volume, algo que ocorra depois que o casal voltar a se encontrar. Quem sabe, num livro seguinte, Flávia não venha com um bom nome para o marido de Júlia e um filhinho para o casal.

 

A grande importância deste livro de Flávia Savary é a de despertar o adolescente para as novidades da vida adulta. Tudo é dito com muito zelo: com a responsabilidade de quem vive a vida com muita qualidade. Assim como Júlia, Flávia mora em Teresópolis, lá perto do dedo de Deus. Onde a qualidade de vida é tão pura quanto o ar. Lá onde cada palavra é meticulosamente acoplada ao texto, para guiar o leitor ao melhor dos prazeres: o da leitura. Que bem pode ser em voz alta — na sala de aula — lendo carta por carta. Mas que se dando silenciosamente também causará o mesmo impacto: um grande divertimento para as horas em que tudo parece igual.

 

 

Diálogo

 

em Querido Amigo um diálogo entre as ilustrações e texto. Flávia é mestra neste tipo de obra. Dona de um traço preciso e precioso, ela passeia dentre as diversas técnicas de pintura e ilustração, que vão desde o bricolage até o bico de pena. Tudo muito bem pensado: tudo muito articulado dentro do projeto de, por exemplo, acender a luz da inteligência dentro de um blecaute. Assim é quando ao escrever sobre um blecaute, a autora opta por Júlia fazê-lo em páginas de cor negra: como uma noite silenciosa e sem luz. Portanto, há a isomorfia. O texto se mistura à ilustração e vice-versa, num jogo lúdico, que despertará o jovem para o mundo adulto e colocará o adulto nos trilhos de uma vida bacana.

 

Por tudo isso é necessário entrar em contato com a escritora e artista plástica Flávia Savary, através do livro Querido Amigo. Aceite o convite e torne-se mais um grande amigo da leitura. Leia: amigo livro é coisa pra se guardar dentro do peito e do coração. Assim nos fala Flávia Savary. Ah, este texto não tem PS. E só quem ler o livro vai entender isso.

 

 

 

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O livro: Flávia Savary. Querido Amigo. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2002

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setembro, 2007

 

 

 

 

 

Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista. É autor do livro de poemas Há Flores na Pele, entre outros. Participou da antologia Na Virada do Século — Poesia de Invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates. Edita o blogue Lowcura.
 
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