©loredano
 
 
 
 
 
 
 
 
                                                                       
 
 
 

Resumo

 

 

Este estudo parte do recurso à intertextualidade para analisar três temas filosóficos comuns entre a literatura de Machado de Assis (1839–1908) e o pensamento de Friedrich Nietzsche (1844–1900). No primeiro momento do estudo, procura-se mostrar como a postulação nietzschiana que anuncia o conhecimento como uma invenção, está também presente de modo implícito no romance Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Em seguida, é discutido se a ausência de uma verdade fundadora externa ao mundo sensível culmina numa interpretação perspectivista do mundo. Um terceiro momento deste ensaio visa demonstrar como os autores em questão expressam em seus textos uma visão de mundo trágica, porém, sob o signo da afirmação, e não do desencanto.

 

Palavras-chave: Intertextualidade; Verdade; Perspectivismo; Tragédia; Afirmação.

 

 

 

1

 

Num dos capítulos mais célebres da literatura brasileira, Brás Cubas, que se encontrava enfermo, começa a relatar o seu delírio, ressaltando a novidade daquilo que pretende narrar: "Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio". (ASSIS, 1997, v.I, p.520) Ele também ressalta a importância científica de tal relato: "faço-o eu, e a ciência mo agradecerá". (ASSIS, 1997, v.I, p.520) Em seqüência, um desafio aos "talvez cinco" leitores das Memórias póstumas: se o leitor não é dado à contemplação, o defunto-autor recomenda que se salte o capítulo VII: "pode saltar o capítulo, vá direito à narração". (ASSIS, 1997, v.I, p.520) Embora ele enfatize a insignificância que a narração de seu delírio possa ter para o leitor comum, logo na próxima frase ele se contradiz, no intuito de chamar a atenção do leitor, como que para desafiá-lo a se embrenhar por sua mente em devaneio: "Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte a trinta minutos". (ASSIS, 1997, v.I, p.520) Ora, Brás Cubas desafia então o leitor comum a se aventurar por um texto inovador, que consistirá em valorosa contribuição à ciência, afinal, trata-se da narração de um delírio, algo jamais acontecido. Kátia Muricy (1988) postula que "O delírio" é uma espécie de "julgamento dos valores da nossa cultura". (MURICY, 1988, p.101) Assim, podemos inferir que Machado de Assis, através da criação de Brás Cubas, instaura uma nova ordem de visão. O defunto-autor está imerso em um mundo desconhecido. Aqui, podemos dizer que Machado de Assis antecipa, de certo modo, a "nova psicologia", com a eclosão do inconsciente e da des-razão (a outra ordem da racionalidade). Do ponto de vista da literatura, Machado está desnudando os valores vigentes de uma época, falando do interior da linguagem, ou seja, de um espaço delirante onde ela ainda não se constituiu, mas, paradoxalmente, é necessária para o relato do delírio. Compreendendo então "O delírio" como um julgamento dos valores, fica patente então a intenção de Brás de afastar de seu texto um leitor inserido e influenciado pelos parâmetros inerentes à cultura que gera valores a serviço do logos: um leitor comum, desinteressado, não-dado à contemplação, à reflexão pausada, será incapaz de compreender as críticas feitas com humor por um Brás delirante, e menos ainda os desdobramentos que tal delírio terá ao longo da narrativa memorialista de Brás Cubas.

A narração do delírio inicia-se de fato quando Brás relata ter tomado a forma de um barbeiro chinês que escanhoava um mandarim, pagando o trabalho "com beliscões e confeitos: caprichos de mandarim". (ASSIS, 1997, v.I, p.520) Aqui fica evidente a "sede de nomeada" de Brás, enunciada no Capítulo II de MPBC, "O Emplasto". Mesmo tendo sua tarefa retribuída com beliscões, servir ao mais poderoso é conveniente1.

Em seguida, sem conexão linear (trata-se, afinal, de uma mente delirante), Brás transmuta-se na Summa Teológica de Santo Tomás de Aquino. Também aqui fica evidente a "sede de nomeada" de Brás Cubas, pois o volume da Summa Teológica em que Brás se transformou é uma edição luxuosa, encadernada em marroquim com fechos de prata e estampas. Pura superfície, o conteúdo pouco importa, aqui. Brás tornou-se então algo grandioso, um livro importante que possui a súmula dos conhecimentos racionais acerca de Deus. Havia alguém tentando descruzar os fechos de prata-braços de Brás, e este alguém era justamente Virgília, pois tal disposição dos fechos-braços de Brás a lembrava a posição de um defunto.

Neste ponto, é relevante destacar que Brás está narrando de além-túmulo o seu delírio, e que conecta o seu delírio com um fato ocorrido pouco antes de sua imersão na inconsciência: a presença de Virgília em seu leito de morte, ela, que foi a única pessoa de seu convívio a quem Brás se refere durante o mergulho na des-razão. Tal referência destaca, indubitavelmente, a importância desta personagem no percurso errante ao longo da vida de Brás Cubas. Ela era "uma espécie de Virgílio", que conduziu Dante ao longo do Inferno e do Purgatório, abandonando-o apenas às portas do Paraíso, onde sua amada Beatriz passaria a ser seu guia. Virgília acompanhou Brás até o derradeiro momento: "Vejam: o meu delírio começou em presença de Virgília; Virgília foi o meu grão-pecado da juventude" (ASSIS, 1997, v.I, p. 525).

Satirizando a figura do herói par excellance que realiza boas ações e vive mil aventuras ao longo de seu percurso, montado num alazão, é um hipopótamo que chega, não se sabe de onde, para arrebatar Brás Cubas (já restituído à forma humana). Brás, incerto acerca de seu destino, deixa-se ir montado no hipopótamo que revela a ele que irá conduzi-lo em direção à origem dos séculos. Brás ia montado no hipopótamo, então, de olhos fechados. Relata o aumento da sensação de frio à medida que "cavalgava" até que adentrou a "região dos gelos eternos". A imagem de uma região que é descrita como uma imensa planície de neve, com algumas montanhas de neve, uma vegetação e animais grandes feitos de neve, até mesmo um "sol de neve", remete à fábula criada por Nietzsche no ensaio Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral (1873) para satirizar uma possível explicação para a origem do conhecimento:

 

Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da "história universal": mas também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer.  (NIETZSCHE, 1983, p.45)

 

 

O filósofo alemão cria esta fábula para demonstrar, enfim, o quão "lamentável, quão fantasmagórico e fugaz, quão sem finalidade e gratuito fica o intelecto humano dentro da natureza". (NIETZSCHE, 1983, p.45) Afinal, segundo Nietzsche, houve eternidades em que a racionalidade, o intelecto, não estava, e mesmo que o intelecto deixe de existir novamente, nada terá acontecido, de fato. Eis, portanto, um dos vieses utilizados pelo filósofo para exercitar sua crítica à opção feita pela civilização ocidental por ter assumido o modelo logocêntrico. Ressalto, porém, que Nietzsche não pode ser considerado um irracionalista2, como tanto apregoaram alguns intérpretes. Afinal, seu instrumento de trabalho é a razão, ele chama para si o título de filósofo em seus textos. Nietzsche não é contrário à razão. Sua crítica centra-se no cerceamento que a opção pela racionalidade de exacerbado caráter cientificista impõe em relação ao âmbito dos sentidos, do dionisíaco, elemento que, em constante confronto com a linearidade apolínea, dará o sentido de "fenômeno estético" à vida.

         Pois Brás, ao fim da viagem, montado no hipopótamo, está numa espécie de "astro congelado", ou seja, num mundo que é pura neve. O defunto-autor está em estado delirante, num estado de des-razão. Metaforicamente, des-razão pode se traduzir em outro estado de consciência. Daí a possibilidade de Brás relatar seu delírio, como que jocosamente. Portanto, o defunto-autor está num mundo que é descrito como uma imensa planície onde até mesmo os animais e o sol são feitos de neve. Tal descrição deste inóspito ambiente remete a uma imagem de extrema brancura. Poderíamos afirmar que é um local onde não há vida, pois a extrema brancura remete à idéia de ausência de vida, de alegria, de cores. Lembro algo simples, porém, mas que pode ser relevante para ser utilizado como mote interpretativo da "região dos gelos eternos" onde está Brás: a cor preta é gerada pela ausência de cores e de luz, sendo que a cor branca é uma síntese das principais cores, ou seja, contém em si as principais cores. Ora, uma região onde há predomínio de tal cor não pode ser considerada como um ambiente morto, onde as cores estão ausentes. Ao contrário, podemos compreender a "região dos gelos eternos" como uma região que irá originar a mistura caótica do mundo, espalhar as cores que configuram a desordem a ser ordenada, o choque entre bem e mal, a luta eterna entre Apolo e Dioniso, ou como diria Riobaldo, de Grande Sertão: veredas, a mistura do mundo.

Cumpre lembrar também Mallarmé, referido por Foucault na conferência intitulada "Linguagem e literatura". Na referida conferência, se diz que brancura original (da origem) se coloca como fundo (a folha de papel) sobre o qual a letra se cunha re-inaugurando o texto/discurso, pois a linguagem literária é intervalar, se comparada com a linguagem filosófica canônica. Tal lugar branco, espécie de grau zero do conhecimento, também pode ser compreendido como uma metáfora do espaço literário que, de um modo ou outro, não deixa também de se constituir como um domínio do conhecimento.

Brás está nesta região que está para além do Éden, está na origem dos séculos, e como a vida ali ainda não havia sido gerada, ela não era ainda vontade. Pulso intermitente de viver e sobreviver, a "região dos gelos eternos" é silenciosa: "O silêncio daquela região era igual ao do sepulcro: dissera-se que a vida das cousas ficara estúpida diante do homem". (ASSIS, 1997, v.I,  p.521, destaques meus). Em meio a tamanho silêncio, há tanta vida que ainda não nasceu, a "vida das cousas" perde o seu sentido, sentido que é dado pela razão. Ali, na região gélida da origem dos séculos, somente uma mente delirante, desprovida do norte da razão, poderia estar presente diante da ausência de vida, espécie de limbo, região que ainda não é, mesmo sendo. Essa imagem da ausência de vida na "região dos gelos eternos" remete à ausência de vida que Nietzsche enuncia em sua fábula-sátira, onde, com o congelamento do tal astro, os animais inteligentes que inventaram o conhecimento tiveram que morrer.  

Delimitado então este local soturno, onde não existe ainda o conhecimento, não há cores, vida, sons, há apenas uma promessa de gênese ainda branca, vejamos como surge o conhecimento e como a origem do conhecimento gera artifícios que serão utilizados de modo a estabelecer relações de poder, tanto nas elucubrações filosóficas de Nietzsche, quanto nas interpretações acerca do relato do defunto-autor que, podem transmitir (ou não) a visão de mundo do autor empírico Machado de Assis — sendo isto matéria para outro estudo.

 

 

2

 

Na "origem dos séculos" (neste "astro congelado", imóvel, portanto), surge, não se sabe de onde, uma figura de mulher que olhava para Brás Cubas com olhos rutilantes como o sol. Brás descreve tal figura como possuindo "a vastidão das formas selváticas" (ASSIS, 1997, v.I, p.521), incompreensível ao olhar humano, pois os contornos da figura perdiam-se no ambiente. Brás, estupefato, pergunta o nome de tal figura cujos contornos eram muitas vezes espessos e outras diáfanas, e ela se revela como Natureza ou Pandora, e complementa: "sou tua mãe e tua inimiga". (ASSIS, 1997, v.I, p.521) Fazendo tal assertiva, Natureza solta uma gargalhada que produz o efeito de um tufão. A aparição de Natureza ou Pandora, essa figura selvagem num território que é também selvagem, origem da vida, ainda inerte (talvez possamos considerar tal local como puro instinto, dado que remete às origens), leva Brás delirante ao conhecimento. Após dialogarem acerca da inimizade de Pandora que não mata, acerca da vida e da morte, Natureza ou Pandora (não há como optar entre as autodenominações desta imponente figura) segura Brás pelos cabelos e o levanta. Do alto, Brás pôde então ver seu rosto. Elevando Brás à altura do conhecimento de seu rosto, Natureza ou Pandora pergunta a Brás se ele a entendeu. Mesmo tendo sido elevado às alturas do conhecimento, Brás responde que não, não a entendeu nem deseja entendê-la. Diz que ela é absurda, que ela é uma fábula. Mesmo em estado delirante, Brás se revela fruto de um modelo logocêntrico incapaz de sentir o fluxo incessante da vida, da morte que é elemento constituinte da vida (como afirma Natureza ou Pandora em passagem posterior), da construção e da desconstrução. Brás é incapaz de defrontar o silêncio, o nada, a doce selvageria, música inaudita do mundo, a vontade que é vontade de viver, de potência, vontade em cada célula, que consegue unir juventude (força e viço) à calmaria, austeridade, mistura do mundo que necessita do bem e do mal para se constituir como mundo. Lembro passagem de Foucault, comentando Nietzsche na célebre primeira conferência de A verdade e as formas jurídicas:

 

Efeito de superfície, não delineado de antemão na natureza humana, o conhecimento vem atuar diante dos instintos, acima deles, no meio deles; ele os comprime, traduz um certo estado de tensão ou de apaziguamento entre os instintos. Mas não se pode deduzir o conhecimento, de maneira analítica segundo uma espécie de derivação natural. Não se pode, de modo necessário, deduzi-lo dos próprios instintos. O conhecimento, no fundo, não faz parte da natureza humana. É a luta, o combate, o resultado do combate e conseqüentemente o risco e o acaso que vão dar lugar ao conhecimento. O conhecimento não é instintivo, é contra-instintivo, assim como ele não é natural, é contra-natural. (FOUCAULT, 2003, p.17, destaques meus)

 

 

Brás Cubas julga que Natureza ou Pandora não passa de mera concepção de alienado, ou seja, algo de que uma razão ausente é incapaz de dar conta. A incompreensão de Brás diante da figura de Natureza ou Pandora assemelha-se muito à idéia de Nietzsche, analisada acima por Foucault, de que o conhecimento é uma invenção e não possui uma origem. Deparando-se com a natureza, a razão de Brás Cubas é incapaz de compreendê-la, e prefere negá-la, atribuindo então a ela um caráter fabuloso, fictício, portanto. Pode-se concluir daí, então, que o choque entre natureza e conhecimento se dá porque o conhecimento não está ligado à natureza humana, nem mesmo é aparentado com o mundo a conhecer, como nos explica Foucault (2003). Lembro que, mesmo focalizando um estado mental delirante, é um Brás Cubas plenamente dotado de suas faculdades mentais que está narrando em suas memórias o seu delírio (ainda que, fantasticamente, de além-túmulo). Julgando absurdo a Natureza ser além de mãe (geradora da vida), aquela que retira a vida (inimiga), Brás indaga por que a figura selvática se autodenomina além de Natureza, como Pandora. Ela responde que tal nome lhe cabe porque ela leva em sua bolsa os bens, os males e a esperança que consola os homens3.

Natureza ou Pandora, apenas para corroborar o que foi afirmado anteriormente, é puro instinto, é pura selvageria, é ente que carrega e gera bem e mal, esperança, vida, morte, carrega em si o dito e o inaudito. Tamanha sua fascinação diante da imensa figura de Natureza ou Pandora, resta somente a Brás Cubas temê-la. A visão de Natureza ou Pandora remete a um mundo onde a verdade e a mentira são valores inventados a serviço da luta pela conservação da vida no intuito de funcionar como mecanismos de poder que servem aos interesses de cada um. A angústia de Brás diante da visão magnífica de Pandora e a sua incapacidade de compreendê-la se dá devido ao fato de que não há nada a explicar empiricamente, de fato. Os valores, diante dessa Natureza que também é Pandora, culminam por se mostrar apenas como recursos criados pelo homem no intuito de suportar a crueldade da vida, vida que, segundo Kátia Muricy (1988), em sua análise de MPBC, possui como única verdade a lei implacável da natureza. Lei inexorável que rege, além dos percursos da vida, a morte, além da ordem, a desordem, o caos: "eu não sou somente a vida; sou também a morte" (ASSIS, 1997, v.I, p.522).

A inexistência de uma verdade que fundamente, então o conhecimento, conduz também à crítica moral, afinal, se não há uma verdade fundadora que embase a moral (e, conseguintemente, a moralidade dos costumes, a tradição, etc.) pode somente permanecer uma interpretação perspectivista do mundo. Na seção 34 de Humano, demasiado humano (1878), Nietzsche anuncia a falência deste modelo embasado na verdade primeira e última e prenuncia o perspectivismo. Nesta seção estão algumas questões inerentes ao caráter trágico da existência, que vêm à tona em decorrência da angústia de se pensar num mundo sem a verdade:

 

Mas nossa filosofia não se torna assim uma tragédia? A verdade não se torna hostil à vida, ao que é melhor? Uma pergunta parece nos pesar na língua e contudo não querer sair: é possível permanecer conscientemente na inverdade? Ou, caso tenhamos de fazê-lo, não seria preferível a morte? Pois já não existe "dever", foi destruída por nossa maneira de ver, exatamente como a religião. (NIETZSCHE, 2000, p.40, destaques meus)

 

 

O aforismo supracitado delimita de modo implícito a necessidade de afirmação da vida, ainda que envolta pelo espectro da inverdade, das mentiras, da falsificação, restando-nos apenas a interpretação do mundo ao nosso redor, sob pontos-de-vista diversos. O perspectivismo do conhecimento, da interpretação do mundo, é desenvolvido gradualmente nas reflexões de Nietzsche, através do questionamento do valor da verdade e, conseqüentemente, do valor dos valores.

Considerando o perspectivismo a partir da narração de MPBC, percebemos que há ali um ponto de vista nada convencional do narrador: em MPBC, como explica Malard (1999), temos a visão da vida a partir do lado da morte. Tal ponto de vista (perspectiva) é essencial para legitimar a "volubilidade narrativa" de Brás, e ainda a desidentificação, a irreverência do Brás narrado. É a perspectiva da morte que comanda o espetáculo da vida e "direta ou indiretamente, os demais temas estão subordinados a este". (MALARD, 1999, p. 22)

Kátia Muricy (1988) traz ainda um interessante modo de se verificar a função desta perspectiva de além-túmulo: "Situado fora do jogo social, o narrador pode gozar do bem mais inacessível aos vivos: a indiferença em relação à opinião". (MURICY, 1988, p. 101) Assim, livre da convivência em sociedade e da subordinação à moralidade dos costumes, Brás está num "lugar privilegiado para desvendar o verdadeiro sentido dos atos humanos". (MURICY, 1988, p.101, destaque meu) Porém, pode-se inferir que não há um sentido verdadeiro, e sim, vários sentidos possíveis, que são inventados pelo homem no intuito de suportar a lei implacável da natureza, que é mãe e inimiga, como visto anteriormente.

Vejamos, por exemplo, o capítulo XXXI de MPBC, intitulado "A borboleta preta", no intuito de ilustrar como há ali, de modo exemplar, uma ilustração do perspectivismo4.

Enquanto se preparava para deixar Petrópolis e retornar ao Rio de Janeiro, entrou no quarto de Brás Cubas uma borboleta negra, tão negra como a do dia anterior, em que visitou D. Eusébia e Eugênia, e ainda maior que ela. O tamanho enorme da borboleta é prenúncio do que virá em seguida, uma reflexão maior do que o riso "filosófico, desinteressado e superior" referido no episódio do encontro. Tal expectativa é criada no leitor à medida em que, além do destaque de Brás em relação ao tamanho da borboleta, a borboleta preta consta no título do capítulo (indício do destaque que o defunto-autor pretende dar ao episódio). A borboleta preta, num dado momento, pousa na testa de Brás e, posteriormente, pousa também na fotografia de Bento Cubas (pai de Brás), e voa pelo quarto. Em seguida, ele acerta a borboleta preta com uma toalha. Caída, ela ainda permaneceu viva por algum tempo, até finalmente expirar, fato que consterna Brás Cubas, levemente. Ele então parte para suas reflexões morais através da seguinte pergunta: "Também porque diabo não era ela azul?". (ASSIS, 1997, p.552, destaque meu) Tal reflexão visava apaziguar o mal-estar sentido por Brás Cubas por ter matado a borboleta. A partir de então, ele cria uma história no intuito de tentar compreender a razão que o levou a matar a borboleta preta, logo ele, que no dia anterior gracejou da superstição de Dona Eusébia e Eugênia:

 

Imaginei que ela saíra do mato, almoçada e feliz. A manhã era linda. Veio por ali fora, modesta e negra, espairecendo as suas borboletices, sob a vasta cúpula de um céu azul, para todas as asas. Passa pela minha janela, entra e dá comigo. Suponho que nunca teria visto um homem; não sabia, portanto, o que era o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então disse consigo: "Este é provavelmente o inventor das borboletas". A idéia subjugou-a, aterrou-a, mas o medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo de agradecer ao seu criador era beijá-lo na testa. Quando enxotada por mim, foi pousar na vidraça, viu dali o retrato de meu pai, e não é impossível que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o pai do inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia. (ASSIS, 1997, v.I, p.552, destaques meus).

 

Este excerto transmite a perspectiva de mundo da borboleta, na imaginação de Brás. Relembrando a postulação de Rocha (2003), lembro que a questão a ser realçada não é a mudança de pontos de vista a partir da visão individual de um ente, de modo que estes pontos de vista sejam embasados em uma verdade fundadora. A questão a ser destacada é que não há pontos de vista exteriores ao mundo, e é justamente nisto que consiste o perspectivismo.

 

 

3

 

         Jogados num mundo desprovido de verdade fundadora, imersos numa miríade infindável de interpretações, resta afirmar a existência, ainda que trágica. Para falar de uma vida afirmativa, é necessário, antes, delimitar a condição trágica desta afirmatividade que, quero crer, manifesta-se tanto no conteúdo quanto na forma dos escritos de Machado de Assis e Nietzsche, de modo a expressar, ainda que de forma implícita, a crítica à moralidade logocêntrica que sufoca a vida, que deveria ser o valor maior a ser preservado.

Segundo Nietzsche (2003) em sua "Tentativa de autocrítica" (primeiro prefácio a O nascimento da tragédia), a existência do mundo só se justifica como um fenômeno estético. E, como fenômeno estético, o mundo deve nos proporcionar também uma experiência de cunho dionisíaco, onde o homem se reconcilia com o mundo e seus elementos:

 

A experiência dionisíaca, em vez de individuação, assinala justamente uma ruptura com o principium individuationis e uma total reconciliação do homem com a natureza e os outros homens, uma harmonia universal e um sentimento místico de unidade; em vez de autoconsciência significa uma desintegração do eu, que é superficial, e uma emoção que abole a subjetividade até o total esquecimento de si; em vez de medida é a eclosão da hybris, da desmesura da natureza considerada como verdade e (...) em vez de delimitação, calma, tranqüilidade, serenidade, é um comportamento marcado por um êxtase, por um enfeitiçamento, por uma extravagância de frenesi sexual que destrói a família, por uma bestialidade natural constituída de volúpia e crueldade, de força grotesca e brutal; em vez de sonho, visão onírica, é embriaguez, experiência orgiástica. (MACHADO, 1999, p. 21-2)

 

Para potencializar a expressão da estética e da vida enquanto manifestação artística, este ímpeto dionisíaco deve estar em constante conflito com o caráter apolíneo da arte. Este caráter apolíneo é caracterizado primordialmente pela beleza que habita a superfície, ou seja, a ilusão proporcionada pela forma. É somente em permanente choque que Apolo e Dioniso se unem e propiciam a manifestação da arte sob o signo da intensa beleza que visa a aplacar o vazio da existência. É durante o conflito entre o dionisíaco e o apolíneo que o mundo se manifesta como fenômeno estético. Afinal, Dioniso é um deus próximo da natureza, é o deus mais próximo à vida, portanto. Evita-se o aniquilamento pelo excesso dionisíaco e evita-se o excessivo culto à superfície apolínea. A arte possibilita que se experimente o dionisíaco sem se consumir através dele. Segundo Machado (1999), é como se tivéssemos uma experiência de embriaguez sem perder a lucidez:

 

A arte trágica controla o que há de desmesurado no instinto dionisíaco como se Apolo ensinasse a medida a Dioniso, ou como se servisse a poção mágica, a bebida trágica, em sonho. "A tragédia é bela na medida em que o movimento instintivo que cria o horrível na vida nela se manifesta como instinto artístico, com seu sorriso, como criança que joga. O que há de emocionante e de impressionante na tragédia em si é que vemos o instinto terrível tornar-se, diante de nós, instinto de arte e de jogo". (MACHADO, 1999, p. 24, destaque meu).

 

Podemos inferir através da citação de Nietzsche que segue ao comentário de Roberto Machado (1999), que o filósofo faz uma distinção entre o Dioniso do culto orgiástico e o Dioniso artista trágico. É a este último que Nietzsche celebra, no intuito de expressar a possibilidade da arte trágica manifestar a união entre aparência e essência e se configurar como um jogo artístico. Em suma, não deveriam imperar no mundo as "verdades logocêntricas" que reprimem este caráter lúdico, artístico, manifesto na vida que se faz potência. Deve-se resistir ao sofrimento, e isto significa que o "herói trágico"5 diz sim à vida e a um elemento que configura esta afirmação trágica: o eterno retorno. A certeza de que, cosmologicamente e eticamente, toda ação humana na existência deve retornar (mesmo sendo um outro, que ainda assim é um mesmo), é o que caracteriza a alegria que constitui o "espírito trágico", afinal, ele está condenado para todo o sempre a repetir sua existência.

Podemos pensar Brás Cubas como uma espécie de "herói trágico". O mundo de Brás Cubas, como vimos, é marcado pelo esvaziamento da verdade (vide suas constantes mudanças de perspectivas, opiniões, sua volubilidade ao narrar). É um mundo permeado por um constante jogo de interesses, entre os quais podemos ressaltar o amor dissimulado de Marcela, "...Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos". (ASSIS, 1997, v.I, p.536); o roubo do relógio de Brás pelo amigo de infância Quincas Borba, que se aproxima de Brás para consumar o furto (embora posteriormente o filósofo de Barbacena recompense Brás com outro relógio); o truncado relacionamento amoroso com Virgília, que o rejeita para se casar com Lobo Neves, prestes a assumir o cargo de deputado; e o fato de posteriormente Virgília aceitar a posição de amante de Brás. Neste mundo inseguro, repleto de fingimentos, máscaras, temos um personagem central narrado por si próprio, porém, de além-túmulo. O Brás Cubas narrado pelo Brás defunto-autor é um personagem que pode ser compreendido como um sujeito superficial. Afinal, Brás está preocupado, num primeiro momento, em deixar para a posteridade um legado, qualquer que seja. Suas ações o denunciam, e são influenciadas pelo pai: "é preciso continuar o nosso nome, continuá-lo e ilustrá-lo ainda mais". (ASSIS, 1997, v.I, p.550). Brás tenta criar um emplasto anti-hipocondríaco sob pretexto de aliviar a melancólica humanidade, porém, "o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressos nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas". (ASSIS, 1997, v.I, p.515) E ainda: "De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: — amor da glória" (ASSIS, 1997, v.I, p. 515). A motivação central de Brás é perpetuar seu nome, vide seu imenso desejo de ter filhos. Primeiro, engravida Virgília, e aceita bem a gravidez, chegando mesmo a contentar-se, e depois lamentar profundamente o fato de Virgília perder o bebê. Depois, quando sua irmã, Sabina, está convencendo-o a se casar, Brás faz a seguinte reflexão: "Sem filhos! A idéia de ter filhos deu-me um sobressalto; percorreu-me outra vez o fluido misterioso. Sim, cumpria ser pai" (ASSIS, 1997, v.I, p.617). Brás tenta se casar com Nhã-Loló, mas logo depois de revelar ao leitor seu intento, ela falece. Outra vez a ação inexorável da morte e do destino, ou seja, da morte que é também destino, paira sobre Brás. Brás, mesmo de além-túmulo, narra fantasticamente suas próprias peripécias. São as peripécias de um sujeito fundamentalmente apolíneo, que deseja atingir certa notoriedade e perpetuar seu nome, conforme exige sua tradição familiar. É incentivado pelo pai, é pressionado pela família a se casar e perpetuar sua espécie, seu legado. Enfim, Brás é um burguês-padrão da civilização ocidental, ou seja, está subjugado aos valores e às verdades estabelecidas pelo pensamento herdado dos antigos gregos. Porém, durante sua vida (este processo de aprendizado), Brás percebe o quão frágeis são estas convenções estabelecidas pela tradição. De certa maneira, enfrenta os aspectos aniquiladores da vida que cruzam seu caminho, pois são resultantes de uma ânsia em atingir o ideal logocêntrico (os diversos jogos de dissimulação, engano, fingimento, etc.) para, no momento derradeiro de sua narrativa, assumir seu destino trágico:

 

Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram os sucessos narrados na primeira parte do livro. O principal deles foi a invenção do emplasto Brás Cubas, que morreu comigo, por causa da moléstia que apanhei. Divino emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da riqueza, porque eras a genuína e direta inspiração do Céu. O caso determinou o contrário; e aí vos ficais eternamente hipocondríacos. Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas cousas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. (ASSIS, 1997, v.I, p. 639)

 

Brás encerra sua narrativa lamentando não ter realizado nada do que a moralidade vigente exigiu dele. Não ficou famoso, não se casou, não sofreu com a morte e a loucura de pessoas queridas, próximas a ele. Brás também afirma que o leitor pode imaginar que não houve carência, e que ele saiu quite com a vida, e lamenta não haver tido filhos, não ter transmitido a nenhuma criatura o legado da miséria humana. O caráter afirmador de Brás consiste, então, na transmissão de um outro legado: o legado da escrita. Do outro lado do mistério, Brás relata sua vida, e se houvesse assim tanta mágoa de uma vida em que ele nada de relevante realizou, não haveria então razão para ocupar-se em escrever pouco mais de duzentas páginas, interrompendo seu descanso no além-vida. O cerne da questão talvez esteja no episódio do delírio: é a figura misto de maravilha e horror representada por Natureza ou Pandora que põe no coração de Brás o amor pela vida. Se houvesse de fato tanta "míngua e sobra", Brás não perderia seu tempo em relatar para a posteridade uma vida mambembe, que não valeu a pena ser vivida. Afinal, o fato de ter vivido, para além do bem e do mal, imerso numa miríade de elementos humanos, demasiado humanos, tornou a vida de Brás digna de ser vivida. E seu caráter afirmador vem de sua escrita, o legado que ele nos deixou. É o seu dizer sim à vida, o seu eterno retorno.

 

 

Abstract

 

This paper starts from the intertextuality as a resource to analyse three philosphical subjects that are common between Machado de Assis' (1839–1908) literature and Friedrich Nietzsche's (1844–1900) thoughts. In the first moment, Nietzsche's request about the knowledge being an invention is shown, and how it is implicitly present in Machado de Assis' novel Posthumous reminiscences of Brás Cubas.  Then, it is discussed if the absence of a former truth beyond the sensitive world results in a perspectivistic vision of the world. The third part aims to demonstrate how the studied authors state in their texts a tragic vision of the world, but an afirmative tragicity, not a pessimistic one.

 

Keywords: Intertextuality; Truth; Perspectivism; Tragedy; Affirmativeness.

 

 

 

 

 

Notas e Bibliografia

 

 

 

agosto/2006

 

 

 

 

 

Jason Manuel Carreiro (Edmonton, província de Alberta, Canadá). Escritor, mestre e professor de Filosofia na PUC Minas. Publicou O Estranho e o Diferente: uma questão de alteridade (Ensaio, Prêmio Sylvia Resende Costa, 2002); Eram os Deuses Escritores? (contos, anomelivros, 2004). Mantém o blogue O Esvaziar das Nuvens. Vive em Belo Horizonte, Minas Gerais.

 

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