Resumo

O complexo "universo" criado pelo escritor irlandês James Joyce (1882-1941) no romance Ulisses esconde reflexões pouco exploradas pela crítica, caso das relações entre o jornalismo e a literatura, focada no capítulo "Éolo". Muito antes de o tema vir à tona, no início do século 20 Joyce via a atividade literária como uma "luz" para guiar e mergulhar no "modus operandi" de um jornalismo que, já naquela época, chamava para si um poder discursivo quase absoluto. A essa narrativa laudatória e totalizante, o autor contrapõe a simplicidade simbólica da palavra literária.

 

 

Palavras-chave: jornalismo; literatura; discurso; estilo; política; James Joyce; literatura irlandesa

 

 

Introdução

Um romance possui, na maioria dos casos, características de unicidade que o definem como um único objeto artístico, corpo orgânico dificilmente divisível sem que se perca boa parte de seu sentido maior e mais profundo. Até o início do século 20, essa era a lei no formato clássico da literatura em prosa. Ulisses, publicado pela primeira vez em 1921, quebra qualquer organicidade avocada a uma obra literária, com sua série de códigos interpretativos, vozes, altercações estilísticas, referências à realidade e a outras produções de ficção (como Shakespeare), de modo que nenhuma interpretação consegue ser totalizante. O redemoinho criado é tão intenso que, daí em diante, a literatura mundial nunca mais seria a mesma — conforme avaliação comum da crítica literária, a obra inaugura o romance moderno.

 

Em Ulisses, James Joyce (1882-1941) recria o mito do herói de Homero em Odisséia, de modo que cada capítulo remete a uma das passagens da aventura de Ulisses a caminho de Ítaca, e os três principais personagens correspondem a protagonistas de Homero: Ulisses é Harold Bloom, Molly Bloom, sua esposa, é Penélope, e Stephen Dedalus corresponde a Telêmaco. Ao contrário dos heróis gregos, porém, Joyce confere características bem diversas (condizentes com o contexto social da modernidade) aos seus personagens: Molly é vulgar e adúltera, enquanto o marido representa o pensamento típico de classe média dublinense no início do século 20: cômico, desajeitado, extremamente reflexivo, coloquial (em contraponto ao eruditismo cansativo de Stephen) (Arantes, 2005). Todas as ações do romance passam-se em um único dia: 16 de junho de 1904.

 

Além da obra épica de Homero, há outros quatro códigos interpretativos de Ulisses que se repetem: o nacionalismo irlandês (e as polêmicas relações de dependência em relação à Inglaterra), a religião (o atrito entre o catolicismo predominante na Irlanda e o judaísmo de Bloom), a geografia de Dublin (cada capítulo do livro se passa em um ponto da cidade), e as referências a acontecimentos reais, auto-biográficos ou não. Essa última "chave" na leitura de Ulisses é a porta de entrada na relação entre literatura e jornalismo apontada pela obra, conforme veremos mais adiante.

 

A mente de Bloom é uma das chaves de elucidação do romance: assim como o pensamento do protagonista, a obra constrói-se quase toda por associação de idéias e elementos.  Bloom é antes de tudo, um ser de linguagem: um acontecimento banal presenciado por ele desencadeia automaticamente uma série de alusões e reflexões (o personagem é extremamente sensitivo, aberto a vários e diferentes estítulos externos) que possibilitarão a mescla de estilos e vozes literárias então inéditas na literatura. Até Ulisses, o padrão narrativo pregava a pouca variação das vozes do discurso: em geral, iniciava-se com o discurso indireto (narrador), passava-se ao indireto livre (personagem), voltava ao narrador e então passava para o direto livre (diálogos).

 

Joyce implode esse padrão: em um mesmo parágrafo todos os discursos estão presentes, conforme se observa em um trecho do capítulo 5 (Lotófagos):

 

Arrancou com gravidade a flor do alfinete, cheirou seu quase não cheiro e colocou-a no bolso contra o coração [até aqui, fala o narrador]. Linguagem de flores. Gosta-se dela porque ninguém ouve. Ou um ramalhete venenoso para fulminá-lo [a consciência de Bloom]. Então, avançando lentamente, leu a carta de novo, murmurando aqui e ali uma palavra [volta o narrador]. Tulipas zangadas com você querido homenflor castigar seu cáctus se você não agradar pobrezinho não-me-esqueças quanto almejo violetas para queridas rosas quando nós breve anêmona encontrar tudo travesso pedúnculo esposa perfume de Martha [a voz de Martha na carta mistura-se ao pensamento de Bloom]. Tendo-a lido toda, separou-a do jornal e a repôs no bolso do lado [volta o narrador] (p. 93).

 

A mistura Bloom-Marta-narrador até o ponto em que se torna uma tarefa difícil separá-los no discurso quebra o realismo até então presente na literatura em prosa. Há uma mistura, em Bloom, do trabalho associativo revelador de um pseudo-conhecimento urbano, escatológico e sensual (expresso em boa medida pelo discurso indireto livre) com uma certa gravidade afetiva (a dor pela suspeita de traição por parte da esposa).

 

Em um plano macro, Ulisses começa em um estilo-padrão de narrativa, com a nítida separação dos entes do discurso. A partir do quarto capítulo (Calipso), começa a haver uma mudança nesse padrão, quando a voz do próprio estilo começa a se imiscuir no texto. Essa mescla ocorre em grau crescente ao longo do livro, até o ponto em que o próprio estilo passa a controlar o fluxo da história, como no capítulo 17 (Ítaca), em que duas vozes do além dialogam a respeito das ações de Bloom, na forma de pergunta e resposta:

 

Que ação praticou Bloom à chegada ao seu destino?

Nos degraus do 4º dos números ímpares equidiferentes, número 7 da rua Eccles, ele inseriu sua mão mecanicamente  no bolso de trás de suas calças para obter sua chave-de-entrada (p. 707).

 

Essa voz inominável surge pela primeira vez de modo acentuado no capítulo 7 (Éolo), dedicado por Joyce a refletir sobre a imprensa dublinense e o jornalismo em geral, objeto de análise deste trabalho. Inserido nas fortes relações que o escritor mantém com a cultura popular em Ulisses, o jornalismo é indiretamente objeto de uma análise crítica, tanto em termos de narrativa quanto daquilo que é narrado. Apesar da riqueza das reflexões sobre a mídia (em um tempo que o termo nem existia), são muito raros os pesquisadores que se debruçaram sobre essa relação na obra de Joyce. Para empreender este estudo, utilizamos a tradução de Antônio Houaiss publicada em 1983 pela editora Abril Cultural. Se a mais recente tradução de Bernardina Pinheiro ultrapassa a do filólogo em clareza e coloquialismo, a de Houaiss preserva muito mais a sonoridade e a complexidade que fazem a beleza da obra máxima de Joyce.

 

1. Visões jornalísticas

 

1.1 Primeira impressão, pela escatologia

Não só Ulisses, mas praticamente toda a produção literária de Joyce tem um pé fincado na realidade — mais precisamente, o cosmos de Dublin e fatos vividos pelo autor. "Cada um, a cidade e o artista, veste muitas máscaras. A complexa relação entre ambos, na realidade e na ficção, continua a frustrar aqueles que procuram uma chave pronta na escrita joyceana para desvendar o segredo da cidade e do homem1", lembra Noon (2005), para quem a auto-biografia é a base da produção literária de Joyce. Além disso, o autor possui uma relação estreita com a chamada indústria cultural (KERSHNER, 1996), antecipada por ele, em muitos aspectos, em Ulisses.

 

É comum haver uma coincidência e um embaralhamento entre realidade e ficção em Ulisses, o que proporciona, não raro, pontos de vista inusitados no tratamento ao significado das palavras. Para Noon (2005), há um esforço por parte do autor, por meio do trabalho ficcional, em revelar os aspectos mais relevantes de um fato real, atingindo uma profundidade analítica impossível de ser alcançada por meio da linguagem referencial. "(...) A única verdade possível sobre o homem, a única interpretação admissível do mundo o artista revela"2.

 

Daí o conflito direto com a linguagem referencial e o modo como trata essa mesma realidade, entre elas o jornalismo. Joyce tinha alguns amigos jornalistas, e chegou a colaborar para algumas publicações da Irlanda como crítico literário (Noon, 2005). A primeira vez em Ulisses que Joyce aborda o tema é no fim do capítulo 4, equivalente, em Homero, ao episódio de Calipso, quando Ulisses é retido pela ninfa Calipso na ilha Ogígia por sete anos (D'Onofrio, 1981). Na obra de Joyce, Bloom se apressa em preparar o café da manhã para Molly, que ainda dorme.

 

Ao tratar do jornalismo, o autor revela, logo de cara, um sarcasmo terrível: o tema é retratado (ainda sutilmente) em meio a alusões escatológicas, quando Bloom sai para defecar no banheiro do quintal de sua casa. Antes, porém, apanha uma revista. "Gostava de ler no assento" (p. 82). Trata-se de um número já antigo da revista "Titbits", considerada a precursora do jornalismo popular irlandês — a publicação surgiu em 1881 (GIFFORD, 1988).

 

O perfil popularesco da revista serve de apoio para que o autor, por meio de Bloom, revele um fundo desprezo ao sensacionalismo da imprensa da época (algo que irá se repetir em Éolo). Enquanto defeca, o personagem lê uma das colunas da revista, chamada "O golpe de mestre de Matcham", escrita por Philip Beaufoy, cronista da "Titbits" no fim do século 19 (GIFFORD, 1988). A crítica vem ácida, na forma de discurso indireto livre: "Imprime-se qualquer coisa hoje em dia. Época idiota" (p. 84). Logo em seguida, ressurge a voz do narrador, e a crítica dá lugar ao sarcasmo: "Invejou com carinho o sr. Beaufoy que escrevera aquilo e recebera de pagamento três libras, treze e seis" (p. 84). Depois, o personagem também pensa em escrever algo para a revista. Sem titubear, "rasgou rápido ao meio o conto premiado e com isso se limpou".

 

Joyce não é o primeiro autor a tecer fortes críticas à atuação da imprensa de sua época. Antes, na primeira metade do século 19, o escritor francês Honoré de Balzac criou polêmica por meio de uma conflituosa relação com os jornais e jornalistas, que não perdoavam nas críticas à obra do escritor. Pelo menos dois livros de Balzac retrataram esses embates: Os jornalistas e As ilusões perdidas. No Brasil, Lima Barreto seguiu caminhos semelhantes ao retratar a imprensa carioca em Recordações do escrivão Isaías Caminha.

 

Entre o fim do século 19 e início do 20, a imprensa irlandesa não diferia muito da européia de modo geral: vivia uma fase pré-capitalista e pré-industrial, em que os veículos se sobressaíam por um posicionamento político claro e pela preponderância da opinião sobre a informação, com baixas tiragens e geralmente vida curta. Posteriormente, esse período foi classificado como "jornalismo romântico", em oposição ao industrial que surgiria logo após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em que as empresas aderiram de vez ao sistema capitalista de produção, e o jornalismo passou a ser visto como um negócio.

 

Em 1904, ano em que se passam as ações do romance, a empresa "Freeman's Journal Ltd." detinha o controle dos dois maiores e mais populares jornais da Irlanda: o "Evening Telegraph", jornal vespertino, e o "Freeman's Journal and National Press", matutino. A empresa também possuía outras publicações regulares secundárias, como o "Weekly Freeman" (semanário) e o "Sporting News" (GIFFORD, 1988). É na redação dos dois primeiro jornais que se passa o enredo de "Éolo", capítulo que concentra as mais complexas reflexões joyceanas a respeito do conceito e da práxis jornalística.

 

1.2 A (má) retórica da imprensa

Logo no início de Éolo, o elemento que mais chama a atenção são epígrafes em forma de títulos ou frases que anunciam aquilo que logo em seguida será narrado, uma técnica aristotélica classificada pelos críticos como entimemática, cujo princípio anuncia um dado argumento. Mais do que isso, as epígrafes se assemelham a títulos e manchetes de jornais, no estilo jornalístico praticado na época, opinativo e rebuscado, sem preocupação com a concisão: "Com sincero pesar é que anunciamos a desaparição de um respeitado cidadão de Dublin" (p. 141). Curioso é que a voz narrativa das epígrafes não pertence nem ao narrador nem a nenhum dos personagens — é o estilo que começa a surgir com maior clareza no enredo, ainda que as primeiras edições de Ulisses não contassem com o recurso, que só foi inserido por Joyce alguns anos depois da primeira publicação, de 1921. Para Mikics (1990, p. 535), os títulos "representam o poder do fenômeno social, o jornal e o tipo de oratória que o veículo incentiva, acima da consciência da sua audiência"3.

 

O capítulo prescinde das epígrafes: Éolo pode muito bem ser lido sem os títulos. Mas a inserção das "manchetes" jornalísticas confere um novo sentido ao enredo. A voz do estilo prenuncia os acontecimentos das linhas seguintes quase sempre com alguma dose de opinião ou ironia, como em "Cavalheiros da imprensa", "Curto mas direto" ou "???", conotando incompreensão. Em um dos casos, a epígrafe separa duas vozes distintas do discurso, como "Dos pais", oportunidade para a troca do discurso direto para o indireto.

 

___Eu escutava aquelas palavras e o seu sentido se me revelava

DOS PAIS

Revelava-se-me que boas eram aquelas coisas que contudo estão corrompidas, as quais, se não fossem supremamente boas, nem ao menos fossem boas, podiam ser corrompidas (p. 167).

 

A alusão ao jornalismo não pára por aí. O episódio narra a visita de Bloom à redação do "Freeman's Journal" e do "Evening Telegraph" para fechar o contrato de um anúncio — ele é um dos vendedores de espaços publicitários dos dois jornais. Remete, na Odisséia, à parte em que Ulisses chega com sua tripulação à ilha de Éolo, guardião dos ventos — em Ulisses, trata-se do diretor do "Evening", Myles Crawford, que ensina ao herói o caminho de retorno a Ítaca, e dá ao protagonista um saco onde havia vento guardado (D'ONOFRIO, 1981). A ilha é flutuante, assim como a opinião da imprensa, segundo Joyce, "frio e calor na mesma brisa" (p. 148). Curiosos, os tripulantes abrem o saco, e os ventos provocam uma forte tempestade (na obra de Joyce, é o momento em que um grupo de rapazes jornaleiros invade a redação, e o vento espalha vários papéis).

 

Com sua abertura aos estímulos externos do dia-a-dia e suas reflexões pseudo-científicas, Bloom é um "outsider" neste capítulo — seus apontamentos são freqüentemente motivos de piadas por parte dos jornalistas e artistas que o rodeiam na redação. No entanto, o personagem oferece uma perspectiva fundamental para que Joyce explicite o seu ponto de vista a respeito da atividade jornalística — Bloom não rejeita a retórica do jornalismo, mas dela mantém a necessária distância crítica.

 

Gozada a maneira com que esses homens de imprensa mudam quando o vento lhes sopra favorável. Cataventos. Calor e frio na mesma brisa. Não se sabe em que acreditar. Num artigo são excelentes até que se leia o seguinte. Esculacham-se grosseiramente pelas colunas e de repente todo o barulho cessa. Camaradas cordiais logo a seguir. (p. 148-149)

 

Bloom oferece a perspectiva do leitor comum de jornais da época, indiferente às "grandes causas" exploradas pelos jornalistas, mas, conforme pode ser visto na citação acima, atento às vicissitudes da categoria, que nem sempre primam pela ética profissional, e também consciente do poder de manipulação da opinião pública pelos jornais. Boa parte da narrativa gira sobre o diálogo entre Crawford, Stephen (que surge na redação na metade do capítulo), O'Molloy, McHugh e outros, a respeito do jornalismo, da política e da religião na Irlanda. Esses "assuntos nobres" são contrapostos pela visão de Bloom, que fornece ao leitor a real dimensão daquilo que é discutido. "Por um breve momento, o desconhecimento de Bloom parece reduzir a oratória política que infla o episódio em uma escala além do real que somente Bloom, com suas características, pode trazer a um plano mais realístico4" (Mikics, 1990, p. 538).

 

O protagonista não deixa de expressar uma certa admiração pela imprensa, como quando fala de um dos editores do "Freeman's": "Que mundo de coisas terão passado por suas mãos por todo esse tempo: necrológios, anúncios de tavernas, discursos, ações de divórcio, achamento de afogados" (p. 145). Mas seu pensamento associativo o leva também a criticar a imprensa de seu tempo: "São os anúncios e as várias que vendem um semanário, não as novidades batidas do noticiário oficial" (p. 141). Aqui, dois termos dão o tom: o oxímoro "novidades batidas", dando a entender que, no jornal, um acontecimento em princípio inusitado costuma ocorrer freqüentemente, e "noticiário oficial", revelador das relações nem sempre independentes do jornal com o poder público. Ao que, algumas páginas depois, o jornalista Ned Lambert irá responder, cinicamente: "Está muito bem a zombaria agora contra a fria letra de forma mas essa droga se engole como bolo quente" (p. 150).

 

Outras vezes, as observações de Bloom ficam no plano puramente constatativo, como a efemeridade do jornal, enquanto observa sua impressão na gráfica. "(...) Colossais tramas de papel. Retroa. Retroa. Milhas deles desbobinadas. Que é que ele se torna depois? Oh, embrulhar carne, volumes: usos variados, mil e uma coisas" (p. 143). Em pelo menos uma ocasião o sensacionalismo fica estampado na fala de um jornaleiro anunciando na rua, exagerada a ponto de soar inverossímil: "Terrível tragédia em Rathmines! Um guri mordido por um fole!" (p. 172).

 

1.3 Stephen e Crawford: a literatura e o jornalismo

O confronto sutil entre o poeta Stephen e o jornalista Crawford é o cerne do modo como Joyce entende a relação entre o jornalismo e a literatura. O embate inicia-se quando Stephen chega à redação e entrega ao diretor um artigo do professor Deasy sobre a febre aftosa para ser publicado no "Evening". Crawford caçoa do tema do texto — o personagem é retratado como alguém cínico e grosseiro pelo autor ao longo de todo o capítulo — e em seguida, surpreende Stephen ao convidá-lo a escrever um artigo para o jornal. "Quero que você escreva alguma coisa para mim — disse. Algo mordaz. Você pode fazê-lo. Vejo isso na sua cara. No léxico da juventude (grifo do autor)" (p. 159).

 

Para Mikics (1990), daí em diante o poeta irá se sentir "ameaçado" pela retórica do jornalismo que, em Joyce, também representa a linguagem do poder político e social. Muitas décadas depois, Barthes (1987) irá definir esse mesmo discurso como "doxa", que representa os mecanismos com que a linguagem repisa antigas fórmulas estruturais e impede o desenvolvimento de novas práticas discursivas. Para Barthes, a única forma de romper o vício sintático e semântico da linguagem é por meio da literatura e o seu complexo jogo com o sentido das palavras, representada, em "Éolo", por Stephen.

 

Mas Crawford procura a todo o momento seduzir o jovem poeta por meio do discurso histórico, aqui reduzido ao mais puro estereótipo, por meio de palavras eloqüentes mas vazias de sentido. Conforme Mikics (1990, p. 544), "a redução da história a clichês auto-enunciativos e permanentes tais como 'justiça' é revelador de um importante mecanismo do autoritarismo cultural"5, como nesta fala do diretor:

 

Febre aftosa! — gritou o diretor numa invectiva contemptuosa. Grande comício nacionalista em Borris-in-Ossory. Balelas tudo isso! Avacalhação do público! É preciso dar-lhe [como tema para o artigo de Stephen] algo mordente. Empenhemo-nos todos nisso, dane-se sua alma. Padre, Filho e o Espírito Santo e os Joões Ninguéns (p. 160).

 

Percebe-se que Crawford incentiva o sensacionalismo em Stephen em detrimento de uma conduta ética ("dane-se sua alma"). Ao público leitor, dá o apelido jocoso de "Joões Ninguéns". Alguns parágrafos abaixo, o diretor do jornal passa a citar o que considera como "grandes nomes da imprensa", ainda que tenham participado de práticas pouco ortodoxas, como a artimanha de um deles que, para fugir à proibição, pela lei inglesa, em se publicar reportagens sobre crimes cujos autores ainda não tivessem sido identificados pela polícia, escreve uma reportagem cifrada.

 

"A fala política, corruptível até onde pode ser, perturba Stephens tanto quanto a arte poética que ele tenta manter separada da política6", aponta Mikics (1990, p. 546). Ao que Stephen responde com o que chama de "parábola das ameixas": a cena de duas senhoras comendo o fruto sentadas em um banco de praça, com sua simplicidade, quebra a "nobreza" das palavras dos seus interlocutores jornalistas, pobres e insinceras na descrição dos personagens da Irlanda — o poeta consegue demonstrar que as duas senhoras representam muito mais o "espírito irlandês" do que qualquer grande personalidade estereotipada da política ou do jornalismo do país.

 

A literatura tem a capacidade de inserir a prática jornalística no seu devido contexto, dessacralizada de qualquer tentativa conceitual totalizante: mostra que o jornalista não tem o poder demiúrgico de abarcar a realidade de modo neutro ou completo, apenas provocar "efeitos de realidade" por meios de "modelos de entendimento" do real (CASTRO, 2002). No embate literatura/jornalismo (ou Stephen/Crawford), cabe à primeira revelar as potencialidades e, principalmente, as limitações do segundo:

 

Levada a contar de um modo que o jornal não podia e nem tinha por função contar, a literatura entrou em um corpo a corpo primordial com a linguagem desvelando simultaneamente novas consciências que podemos ter do mundo: pela denúncia do verismo como duplicação de aparências falsas (porque meramente aparentes); pela exploração de novas estruturas de linguagem que transtornam hábitos adquiridos, desmascarando o que o discurso estabelecido cala ou camufla; pela busca de uma readaptação (homeostática) de nossa linguagem no mundo (SANTAELLA, 1996, p. 53)

 

Considerações finais

Nos tempos atuais, reflexões entre a literatura e o jornalismo do ponto de vista do uso que cada um faz da linguagem são facilitadas por um arcabouço teórico sedimentado, sobretudo após o desenvolvimento da semiologia e a organicidade e sistematicidade dadas às teorias da literatura e do jornalismo. Surpreende, portanto, que Joyce tenha criado, ainda que sutilmente, um arcabouço reflexivo sobre o tema pela via mais complexa, a arte. "Joyce explora o caminho pelo qual (...), por meio dos jornalistas do 'Evening Telegraph', [cria-se] um reino autônomo da retórica política que necessita da nossa crença — uma linguagem de propaganda para dominar pensamentos individuais7" (Mikics, 1990, p. 552). Submerso no labirinto de Ulisses, jornalismo e literatura questionam-se mutuamente. Para o bem de ambos.

 

ABREU, A. Reflections about literature and journalism at Ulisses

 

 

Abstract

The complex "universe" created by the Irish writer James Joyce (1882-1941) in the romance Ulisses conceals reflections few explored by the critic, how the relationships between journalism and literature, especially in "Aeolus" chapter. Before the theme emerges, in the begin of 20th century Joyce sees the literary activity how a "light" to guides and to dive in the "modus operandi" of a journalism that, on these time, would defend a discursive power almost absolute. To this laudable narrative, the author contraposes the symbolic simplicity of the literary word.

 

 

Key-words: journalism; literature; discourse; style; politics; James Joyce; Irish literature

 

 
 
 

janeiro, 2007

 

 

Allan de Abreu. Jornalista formado pela UEL (Universidade Estadual de Londrina), e mestrando em Teoria da Literatura pela Unesp, com o projeto "A Literatura e o Jornalismo em Otto Lara Resende", que analisa as crônicas do autor, publicadas no jornal Folha de S.Paulo.