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O advento da produção industrial da velocidade converte a cidade numa caixa de marchas operada por um princípio produtivista que delega às invenções técnicas a função catártica de libertar o homem das sujeições da sociedade hierárquica do século XIX para adentrar a utopia racionalista da cidade dos novecentos. Neste sentido, a crítica da estética cartesiana e da ambígua utopia maquinista das vanguardas históricas elaborada por Eduardo Subirats, especialmente em Da vanguarda ao pós-moderno (1986) e A flor e o cristal: ensaios sobre arte e arquitetura modernas (1988), parece-nos indicar as aporias que nortearam a questão do espaço na modernidade das máquinas.

Conforme ressalta Leonardo Benevolo em A cidade e o arquiteto, a primazia da produtividade, as restrições à dimensão horizontal do território e a submissão do espaço urbano ao ciclo inelutável da produção e do consumo coletivos, determinaram tanto a falência estética do ambiente industrial quanto a agudização das dificuldades de relacionamento entre o homem e o ambiente artificial por ele produzido (BENEVOLO, 1984 : 50-1), conforme antecipara Charles Baudelaire:

 

Baudelaire expressou este mal-estar [do homem em relação ao ambiente artificial que ele produziu] em 1857, aproveitando uma dolorosa inversão das velocidades de mudança ("la forme d'une ville change plus vite, hélas, que le couer d'un mortel"); no passado o homem encontrava o cenário físico menos mudado que o seu coração, como sustento das suas lembranças e ponto de apoio para as experiências novas; presentemente, aquele ponto de apoio malogrou e as lembranças tornam-se mais preciosas e mais pesadas ("mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs"). Daí por diante a diferença de velocidade aumentou mais ainda e o homem não descobre — ou não consegue aplicar em larga escala — um método para cicatrizar esta laceração. (BENEVOLO, 1984 : 51)

 

Sedução e dilaceramento são os efeitos, antagônicos e simultâneos, das invenções mecânicas sobre a percepção, a sensibilidade e a inteligência do homem da sociedade urbano-industrial. Basta considerarmos alguns dos efeitos das tecnologias trem e cinema sobre a literatura de inícios do século XX para compreendermos o papel da máquina na construção do imaginário coletivo do Ocidente. Embora sendo o trem uma invenção do princípio dos oitocentos e o cinema uma espécie de "apagar das luzes" (sem trocadilho) da modernidade das cidades, tais inovações técnicas participam de modo visceral da organização do espólio técnico moderno realizado pelas vanguardas históricas, de forma que se tornaram os principais paradigmas máquinicos da primeira metade do nosso século.

A incorporação do trem e do cinema pela lírica e pela prosa de ficção contribuiu de forma definitiva para que a máquina fosse acoplada ao estoque imagístico da modernidade. Como Hermes ex machina, símbolos da inteligência industriosa e realizadora, trem e cinema como que presidem e conduzem a utopia do maquinismo. Tal como Hermes Psicopompo, a ferrovia assegura a passagem entre dois mundos, uma função redentora exemplificada pelas palavras do discípulo de Saint-Simon, Michel Chevalier:

 

Se existe um país onde as estradas de ferro devem exercer uma influência sobre a civilização, esse país é a Rússia. Em seus habitantes, tudo está adormecido; eles acabam por morrer depois de terem vegetado em vez de viverem, sem nunca terem deixado de vista a cabana habitada pelos antepassados, semelhantes aos moluscos cuja concha está agarrada a um rochedo. Na ordem política, o meio mais eficaz de despertá-los dessa sonolência vai consistir em colocar junto deles os exemplos de um movimento extraordinário, excitá-los com o espetáculo de uma prodigiosa velocidade e convidá-los a seguir a corrente que vai circular diante de suas portas. (Cf. MATTELART, 1994 : 42)

 

        Ao inaugurar, juntamente com a telegrafia, um novo modo de troca e circulação de produtos, informações e pessoas, a locomotiva não apenas revoluciona e democratiza o transporte e a comunicação. Tendo a chaminé como caduceu, ela desperta os povos para a modernidade, abranda os costumes selvagens, apazigua e reconcilia inimigos. "O trem", afirmava o administrador colonial inglês Cecil Rhodes, "é um instrumento de pacificação que custa menos do que o canhão e vai mais longe" (Cf. MATTELART, 1994 : 33).

Com rodas e domo ao invés de pés alados e elmo, a encarnação metálica e dinâmica de Mercúrio mereceria também o epíteto de Empolaios, pois, além de presidir o comércio, forneceu a matéria-prima e a mão-de-obra necessárias às tarefas da civilização industrial (como outrora Hermes auxiliara Hércules na execução dos trabalhos, presenteando-o com uma espada). O modelo ferroviário se estende à organização do tempo e do espaço, a velocidade funcionando como princípio de desterritorialização e implantando uma língua cronológica universal e abstrata. A religião do progresso entroniza os Gods of Iron como ícones da potência técnico-científica e da racionalidade do homem. Sob o signo de Hermes, o Politécnico, criador de todas as ciências — especialmente da matemática e da astronomia — e inventor da balança, a ferrovia realiza as funções do Diáctoros, conduzindo as mensagens da Revolução Industrial, da utopia racionalista da máquina.

        

Ferrovia das letras. A utopia artística das vanguardas históricas, principalmente no que concerne às suas pretensões soteriológicas, quando não messiânicas e redentoras, mereceria o epíteto de ferrovia das letras, uma vez que fundada sob o signo utópico do maquinismo e tendo a locomotiva como símbolo privilegiado, principalmente na lírica moderna. Saudado por Álvaro de Campos/Fernando Pessoa como "Shakespeare da sensação que começa a andar a vapor" (PESSOA, 1983 : 270), o precursor da mecanolatria poética Walt Whitman canta a potência civilizadora e democrática do veículo ferroviário no poema "To a locomotive in winter" (1876): "Type of the modern — emblem of motion and power — pulse of the continent, / For once come serve the Muse and merge in verse..." (WHITMAN, 1959 : 328).

O próprio engenheiro sensacionista de Pessoa, nos versos da "Ode triunfal" (1914), acolhe a Musa máquina como "Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!" (PESSOA, 1983 : 242). E revela o desejo de realização do homem mecânico:

 

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!

Ser completo como uma máquina!

(...)

 

Fraternidade com todas as dinâmicas!

Promíscua fúria de ser parte-agente

Do rodar férreo e cosmopolita

Dos comboios estrênuos...

(PESSOA, 1983 : 240).

 

Para o poeta que ama a civilização moderna e beija com a alma as máquinas, a lira inventada por Hermes se enriquece com o advento das invenções técnicas, como escreve na "Ode marítima" (1915?):

 

Nada perdeu a poesia. E agora há mais as máquinas

Com a sua poesia também, e todo o novo gênero de vida

Comercial, mundana, intelectual, sentimental,

Que a era das máquinas veio trazer para as almas.

(PESSOA, 1983: 267).

 

        A construção da utopia mecanicista conduziu ao culto da máquina e da velocidade, mas também à glorificação da guerra, "única higiene do mundo" (Cf. TELES, 1977: 86), de acordo o "Manifesto futurista" publicado por Filippo Tommaso Marinetti em 1909. Os avatares do maquinismo têm a função de destruir o passado cultural e os meios tradicionais da expressão literária para cantar "a eterna velocidade onipresente" dos aviões, navios, automóveis e "locomotivas de grande peito, que escoucinham os trilhos, como enormes cavalos de aço freados por longos tubos" (Cf. TELES, 1977: 86).

       No empenho de "escutar os motores e reproduzir os seus discursos" (Cf. TELES, 1977 : 92), Marinetti anuncia no "Manifesto técnico da literatura futurista" (1912) o advento de um novo reino:

 

Mediante a intuição, venceremos a hostilidade aparentemente irredutível que separa a nossa carne humana do metal do motor. Depois do reino animal, eis o início do reino mecânico. Com o conhecimento e a amizade da matéria, da qual os cientistas não poderão conhecer senão as reações físico-químicas, nós preparamos a criação do homem mecânico de partes mutáveis. (Cf. TELES, 1977 : 93).

 

        O sonho do homem mecânico, que conduzira o prestidigitador Georges Méliès na criação da fantasia cinematográfica na passagem do século, também seduz Marinetti:

 

O cinematógrafo nos oferece a dança de um objeto que se divide e se recompõe sem a intervenção humana. Nos oferece também o impulso contrário de um nadador, cujos pés saem do mar e saltitam violentamente a 200 quilômetros por hora. São outros tantos movimentos da matéria, fora das leis da inteligência e, por conseguinte, de uma essência mais significativa. (Cf. TELES, 1977 : 91-2).

 

         Não obstante, a representação da máquina na lírica moderna, incluindo os cubistas Guillaume Apollinaire e Blaise Cendrars, não comporta apenas uma expressão heróica, mas também uma invocação sinistra. Tal ambigüidade pode ser observada nas "Poesias de Álvaro de Campos". Cite-se, por exemplo, a "Ode triunfal":

 

Eu podia morrer triturado por um motor

Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.

Atirem-me para dentro das fornalhas!

Metam-me debaixo dos comboios!

Espanquem-me a bordo de navios!

Masoquismo através de maquinismos!

Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!

(PESSOA, 1983 : 243)

 

Ou ainda, a "Saudação a Walt Whitman" (1915):

 

Loucura furiosa! Vontade de ganir, de saltar

De urrar, zurrar, dar pulos, pinotes, gritos com o corpo,

De me cramponner às rodas dos veículos e meter por baixo,

De me meter adiante do giro do chicote que vai bater,

De ser a cadela de todos os cães e eles não bastam,

De ser o volante de todas as máquinas e a velocidade tem [sic] limite,

De ser o esmagado, o deixado, o deslocado, o acabado...

(PESSOA, 1983 : 272).

 

A ambivalência do Hermes ex machina produz tanto os apologistas de suas funções messiânicas, demiúrgicas e racionalistas quanto os detratores, que lhe atribuem um papel demoníaco e destrutivo. Ainda no século XIX, a sociologia européia inicia uma crítica radical do maquinismo como princípio de desumanização e de empobrecimento cultural. Para as massas urbanas o trem era a materialização do futurismo de Marinetti, do progresso sem limites, mas, não raras vezes, também a visão sinistra de um Hermes Psicopompo, conduzindo as almas para os Infernos.

 

Cine-sensação do mundo. Os significados ambíguos da máquina inspiram formulações soteriológicas e escatológicas. Da mesma forma que a locomotiva e outros veículos, o cinematógrafo tornou-se objeto de controvérsia e polêmica, como demonstram os ensaios "A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução" (1935-36), de Walter BENJAMIN (1983 : 3-28), e "Estilo e meio no filme" (1947), de Erwin Panofsky (LIMA, 1969 : 319-38). Ou ainda, as memórias de Jean-Paul Sartre acerca de seus primeiros encontros com o cinema:

 

Entramos às cegas em um século sem tradições que havia de sobressair sobre os outros por seus maus modos, e a nova arte, a arte plebéia, prefigurava nossa barbárie. Nascida em um covil de ladrões, incluída por portaria administrativa entre os divertimentos de feira, apresentava costumes popularescos  que escandalizavam as pessoas sérias; era a diversão das mulheres e das crianças; nós a adorávamos, minha mãe e eu, mas quase não pensávamos nela e nunca falávamos dela: fala-se do pão, se este não falta? Quando nos demos conta de sua existência, havia muito que se tornara nossa principal necessidade. (SARTRE, 1984 : 86-7).

 

Artesão de sonhos enganadores ou arauto da modernidade e do progresso, tal como Hermes o cinema nos guia e protege nas viagens aventurosas por terras desconhecidas. Um facho de luz como caduceu lhe confere o dom de adormecer ou despertar os mortais, enquanto conduz a mensagem dos “olimpianos” e transforma comportamentos e mentalidades.

A natureza mecânica do filme e o regime de percepção inaugurado pelo cinema influenciaram as práticas humanas, em particular as produções artístico-literárias das vanguardas históricas. A celebração do cinema e da locomotiva como símbolos da revolução estética proposta por Marinetti não resultou numa cinematografia propriamente futurista, embora as experiências plásticas e literárias do movimento tenham privilegiado o choque caótico dos elementos visuais e o uso desviante do novo meio.

Já a rebelião dadaísta contra as condições hostis à imaginação e à liberdade criadora na sociedade urbano-industrial pregava uma antiarte realizada a partir da absorção do universo maquínico e dos resíduos das grandes cidades. Às atividades especialísticas, o dadaísmo contrapõe a invenção pura e as leis do acaso, a confusão de ruídos, cores e ritmos e a permuta de formas antropomórficas e inanimadas, a ausência de nexos lógicos e a anarquia absoluta. No "Manifesto Dada 1918", Tristan Tzara afirmava:

 

O artista novo protesta: ele não pinta mais (reprodução simbólica e ilusionista), mas cria diretamente na pedra, na madeira, no ferro, no estanho, nas rochas, os organismos locomotivos que podem ser movimentados de todos os lados pelo vento límpido da sensação momentânea. (Cf. TELES, 1977 : 134).

 

O diálogo da arte com os produtos da técnica e da indústria se realiza nos ready-mades de Marcel Duchamp, nas máquinas inúteis de Francis Picabia e nos Merz de Kurt Schwitters, dentre outros. Os elementos satíricos e dinâmicos das manifestações dadaístas encontram no cinema, especialmente na slapstick comedy norte-americana, o paradigma adequado à ação corrosiva da blague na negação dos valores estéticos tradicionais. A ponto do poeta Hugo Ball recorrer à imagem do clown burlesco em sua definição do dadaísta: "Homem infantil, quixotesco, ocupado com os jogos de palavras e com as figuras gramaticais" (Cf. TELES, 1977 : 124).

Jogos visuais e figuras de linguagem cinematográfica do repertório da comédia muda estão presentes em Entr'acte (1924), de René Clair, e Le ballet mécanique (1924), de Fernand Léger. Com roteiro de Picabia e partitura de Erik Satie, Entr'acte homenageia as féeries de Méliès e as comédias de perseguição. Através de uma sucessão de gags e disparates visuais, o filme parece preparar "o grande espetáculo do desastre, do incêndio, da decomposição" ou "restabelecer a roda fecunda de um circo universal nos poderes reais e na fantasia de cada indivíduo" (Cf. TELES, 1977 : 135), como preconizava Tzara.

O interesse por objetos técnicos e máquinas conduziu o pintor Fernand Léger às experiências cinematográficas. Além de homenagear Charles Chaplin com um fragmento do desenho animado Carlitos cubista (realizado pelo próprio Léger em 1920), o curta-metragem Le ballet mécanique tem como personagens um chapéu de palha, pernas artificiais, sapatos, discos, garrafas e outros produtos industriais.

 

A idéia do filme me veio para me assegurar do valor plástico desses novos elementos numa expressão móvel. As repetições das formas, os ritmos vagarosos ou rápidos permitem possibilidades extremamente ricas. Um objeto pode, sozinho, tornar-se um espetáculo trágico, cômico, espetacular. Era a aventura no país das maravilhas. (...) O verdadeiro cinema é a imagem do objeto totalmente desconhecido aos meus olhos. (Cf. SADOUL, 1993 : 47-8)

 

Sob a influência das próteses de visão e de deslocamento, o dadaísmo proclama "a VITALIDADE de cada instante // a antifilosofia das acrobacias espontâneas" (Cf. TELES, 1977 : 142). E, como a comédia burlesca, elege o riso, a sátira e a velocidade como elementos constitutivos de uma nova arte, de uma percepção adequada à realidade caótica da civilização técnica.

Tais influências atingiram também o surrealismo, embora o riso gratuito e o ritmo alucinante do cinema cômico tenham-se convertido em armas estéticas e políticas ainda mais poderosas, como nos filmes Un chien andalou (1928) e L'âge d’or (1930), de Luis Buñuel. Num ritmo equivalente à "escrita automática" dos poetas surrealistas, a fina lâmina do humor negro utiliza "truques" e gags visuais para dissecar o olho e a razão ocidentais, mergulhando no inconsciente, na poesia e no sonho.

Para além das vanguardas artístico-literárias, o cinema desempenhou um papel fundamental no treinamento perceptivo do homem comum. Ao traduzir para situações dramáticas ou cômicas as experiências e temores da civilização das máquinas, o cinema permitia ao público enfrentar o universo mecânico, reordenando os sentidos, atitudes e relações de acordo com as dimensões espaço-temporais advindas da aceleração artificial. Enquanto representação das mudanças em processo na sociedade industrial, as situações inventadas e controladas com rigor maquínico ofereciam aos espectadores um repertório de ações, objetos e lugares que antecipava experiências reais no espaço urbano.

Automóveis e trens, fábricas e ruas, edifícios e parques de diversão forneciam o cenário adeqüado à pantomima mecânica do dupe, para utilizar o termo de Charles Baudelaire (Cf. BENJAMIN, 1991 : 37). Vítima dos choques e das tensões diárias da metrópole moderna, os personagens acabam por desenvolver técnicas, habilidades e percepções que, talvez pela semelhança com o maquínico, lhe permitem, senão superar, ao menos sobreviver à tecnologia — e, quem sabe, até mesmo questioná-la.

As denominações dos filmes primitivos — canned drama e machine-made theater —, assim como o uso sistemático na ação cinematográfica de locomotivas, bicicletas, navios, aviões, bondes, automóveis e outras máquinas, demonstram que a civilização técnica encontrou no novo medium não apenas uma forma singular de expressão artística, mas também um aliado da sua concepção produtivista. As massas populares acolheram o cinema não apenas como um divertimento barato e acessível, mas também como um passaporte para a modernidade e o progresso. Assim, objetos e personagens participam da velocidade tecnológica perfazendo movimentos que são a própria representação do ritmo do novo mundo maquínico.

Tanto na dinâmica das vanguardas históricas quanto no interior dos movimentos sociais, a incorporação das máquinas se dá sob o signo do paradoxo. Excluídas as louvações fascistas de Marinetti, as máquinas são, simultaneamente, um paradigma e uma questão. E embora tal incorporação tenha resultado na estética cartesiana que caracterizou os epígonos das vanguardas históricas, isso se deu antes pelo arrefecimento do signo crítico que as norteava, em particular nos seus encontros com as máquinas — ora amigáveis, ora inamistosos. 

 

Entre Ítaca e Tróia. Ainda no século XIX, a literatura brasileira incorpora a máquina como símbolo da modernidade, não sem controvérsias, como se pode depreender da análise de Máximo Barro acerca dos reflexos das primeiras imagens cinematográficas sobre a intelectualidade nacional (BARRO, 1995 : 29-31).

Enquanto em 1909 alguns imortais da Academia Brasileira de Letras se escandalizavam com a atração de Anatole France por um dos cinemas de Pascoal Segretto, ocuparam a pena de Arthur Azevedo tanto as lanternas mágicas, panoramas e dioramas quanto as primeiras exibições das vues de Louis Lumiére e das féeries de Méliès, mesmo o autor camuflando-se sob pseudônimos para usar o cinema como paradigma em relação a outros agentes de modernização ou comentar as películas em cartaz. Em suas crônicas, também Olavo Bilac empregou o cinema como termo de comparação com os fatos sociais da época — e foi além, escrevendo alguns roteiros cinematográficos.

Mas foi talvez João do Rio o pioneiro na percepção do papel que a máquina-cinema desempenharia na mudança de comportamentos e mentalidades, como ressalta Barro:

 

Em 1907, apareceu o seu livro mais importante: "Cinematógrafos", onde faz no preâmbulo um longo ensaio sobre as características modernizantes que o cinema introduzia, cremos que única no mundo, naquele tempo, junto com Papini. Sua pena desabrida trata os adversários com a ferocidade de quem participa de uma Guerra Santa. "Alguns estetas de atrasada percepção desdenham o cinematógrafo. Estes estetas são quase sempre velhos anquilosados. O cinema é bem moderno e bem agora". Reivindica para o cinema a primazia do ensino e cultura que só terão arrimo depois de 1919. Criou o HOMUS CINEMATOGRAPHICUS. (BARRO, 1995 : 31)

 

Descontados os exageros típicos das práticas beligerantes, o cronista (também fascinado pelo automóvel e pelo fonógrafo) vislumbra nas máquinas poderosos agentes de modernização, entendendo especialmente o cinema no sentido que alguns anos mais tarde Benjamin traduziria em termos políticos, sociais e culturais (V. BENJAMIN, 1983 : 3-28).

As máquinas fascinavam o intelecto e o sentimento dos atores da cena finissecular como perspectiva de um fogo purificador capaz de, através dos devaneios e da aceleração dos acontecimentos históricos, consumir a barbárie engendrada pelos paradoxos da modernização. Como se tais máquinas fossem os sonhos da razão que produziriam os monstros necessários para devorar a face inumana da metrópole.

Neste sentido, cinema e trem desempenham o mesmo papel que, na crônica "Três aspectos da miséria", João do Rio atribui ao jornalista: guia dos paradoxos da cidade, das ruínas que sustentavam la belle époque, das cloacas do espaço urbano-industrial.

 

Nas peças francesas, há dez anos já aparece o jornalista que conduz a gente chique aos lugares macabros; em Paris, os repórteres do Journal andam acompanhados de um apache autêntico, eu repetia apenas o gesto que era quase uma lei. (JOÃO DO RIO, 1997 : 158)

 

E como o escritor, também o cinema primitivo nutria uma cumplicidade (mesmo que aparente, porque público pagante) com os miseráveis e os párias produzidos no Brasil pelo primeiro surto de industrialização. Também o cinema empenhava-se na trajetória do documental ao estético.

A incorporação da máquina neste período se dá, portanto, como paradigma avesso do barbarismo das reformas urbanas e das primeiras chagas da indústria. Dá-se talvez pelas promessas de democratização do acesso aos bens culturais, pela busca de um modelo outro de civilização, pela ânsia de educar os sentidos e o intelecto à vida perigosa do espaço urbano, pelo fascínio da falta. Trem, cinema, automóvel, bonde, fonógrafo e outros maquinismos demonstram naquele momento o quanto a razão pode conduzir os nossos sonhos com a promessa de purificar os males advindos da industrialização bruta e abrupta.   

Tal como o cronista, o cinema escolherá os temas populares ("sangue, sexo e melodrama") e a mitificação do espaço urbano-industrial como leitmotiv. E mesmo quando empenhados em agradar os chiques, cronista e cinema não conseguem fugir do fascínio pelo barbarismo e pela periferia, pelo inumano e pelas fantasias da catástrofe. Elejam como centros provisórios dos mythoi ou da imago urbana as ruas urbanizadas, a residência burguesa ou os bairros periféricos, ambos realizam a tradução lendária da cidade pela ótica do avessismo, dos desastres e acidentes do processo civilizatório. Como afirma Antonio Candido acerca da primeira fase de João do Rio:

 

Mas de qualquer modo, nesses casos ele estava desafinando no coro de louvações do tipo "o Rio civiliza-se", que saudava a urbanização e o saneamento como feitos suficientes. Estava, na verdade, mostrando a ferida escondida pela ostentação. (CANDIDO, 1980 : 83)

 

A visão da cidade industrial como "paisagem conspurcada e híbrida" (STEINER, 1991 : 28), como ville tentacullaire, prisão, savana, selva, imensidão indiferente e caótica domina a cena finissecular, tornando-se uma temática recorrente que declinaria apenas com as mudanças que inauguram o novo século e mobilizam as vanguardas históricas: aceleração da marcha do tempo, advento da percepção dos processos históricos, irrupção da esperança na sensibilidade privada, transformações nos valores e na sensibilidade como promessas de um futuro messiânico.

No Brasil, o surto de industrialização paulista enseja um processo de modernização que parece assinalar o declínio do ennui finissecular em benefício de uma euforia iconoclasta que domina as primeiras manifestações do modernismo artístico-literário. Desta feita, não mais a Tróia conflagrada das reformas urbanas, dos bestializados, mutilados e excluídos, mas a Ítaca dos imigrantes que fazem a cidade e a história. As máquinas comparecem aqui não apenas como temática ou personagem, pois as mudanças que engendraram na sensibilidade e no intelecto participam agora da própria Weltanschauung dos poetas e escritores. Mesmo que sob a influência das vanguardas européias, notadamente o futurismo, o cubismo e o dadaísmo, realiza-se aqui uma aclimatação que, no que concerne à questão do metrópole moderna, parece empenhada antes na proposição baudelaireana de "tradução lendária" da cidade do que na afirmação de um jogo de suspeitas em relação à racionalidade que a engendrava.

Tanto o provincianismo cultural dominante e a defasagem de São Paulo em relação aos melhoramentos urbanos observados nas metrópoles européias quanto a ânsia pelas promessas da modernidade materializadas nos viadutos de ferro, locomotivas, telefones, arranha-céus, fordes, cinemas etc. são fatores importantes na mitificação da cidade, verificada tanto na Paulicéia precocemente desvairada de Mário de Andrade quanto na poetização dos postes da Light por Oswald de Andrade. Mesmo quando confrontados com uma paisagem ainda rural, será a máquina o vetor de instauração do espaço da nossa modernidade, como no poema "Noturno" de Oswald de Andrade: "Lá fora o luar continua/E o trem divide o Brasil/Como um meridiano" (ANDRADE, [s.d] : 93).

O reconhecimento de uma divisão rural/urbano implica explicitar a ânsia pela urbanização, uma vez que a poesia exige uma sensibilidade fundada sob a égide da máquina, uma vez que, embora habitando o mesmo espaço, "Locomotivas e bichos nacionais/Geometrizam as atmosferas nítidas" (ANDRADE, [s.d.] : 120). Basta notar as ressonâncias do vocabulário maquínico, como exemplifica o emprego do verbo "geometrizar", para constatarmos a nítida opção pela urbanidade. A própria poética oswaldiana, fundada sob o lirismo objetivo e antiilusionista, tem como princípio formal os shots, as tomadas cinematográficas, a fragmentação e síntese dos acontecimentos e da paisagem através do camera eye.

Seja através do cinema ou do trem, a educação dos sentidos e do intelecto pela vis tecnológica incorpora-se à produção literária do modernismo e conduz os processos de mitificação das cidades na medida da sintonia destas com a produção industrial da velocidade, da sua capacidade mudar "mais depressa que o coração de um mortal". Mesmo porque as lembranças não "são mais pesadas que rochas", pois o processo de urbanização se dá lentamente e a cidade ainda conserva características lúdicas e idílicas:

 

BRINQUEDO

 

Roda roda São Paulo

Mando tiro tiro lá

 

Da minha janela eu avistava

Uma cidade pequena

Pouca gente passava

Nas ruas. Era uma pena

 

Desceram das montanhas

Corochinhas e pastoras

Por dormir em meus olhos

Me levaram pra abrolhos

 

Os bondes da Light bateram

Telefones na ciranda

Os automóveis correram

Em redor da varanda

 

Roda roda São Paulo

Mando tiro tiro lá

 

Brinquedos de comadre

Começaram pela vida

Pela vida começaram

Comadres e mexericos

 

Roda roda São Paulo

Mando tiro tiro lá

Depois entrou no brinquedo

Um menino grandão

Foi o primeiro arranha-céu

Que rodou no meu céu

 

Do quintal eu avistei

Casas torres e pontes

Rodaram como gigantes

Até que enfim parei

 

Roda roda São Paulo

Mando tiro tiro lá

 

Hoje a roda cresceu

Até que bateu no céu

É gente grande que roda

Mando tiro tiro lá

(ANDRADE, [s.d.] : 154)

      

          A metrópole moderna era ainda um brinquedo, uma roda-gigante de luzes e cores; os tiros eram talvez estalos, foguetes ou apenas um refrão infantil; os gigantes eram raros e amigáveis, mais que a gente grande. Ítaca ainda era um sonho possível, principalmente porque as máquinas corporificavam as suas promessas de modernidade. Ainda não nos era possível vislumbrar a Tróia conflagrada que nos reservava a planificação maquínica dos abismos sociais, econômicos e culturais. "A cidade desencantada é a síntese dramática do desvario ou do extravio moderno. (...) A cidade como máquina é uma contrafação..." (PORTELLA, 1992 : 111)

 

   

 

Referências bibliográficas

 

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WHITMAN, Walt. Complete poetry and selected prose. Boston : Houghton Mifflin, 1959.
 
 
 
outubro/2005
 
 
 
FERNANDO Fábio FIORESE Furtado. Poeta, prosador e ensaísta. Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras/Teoria da Literatura e da Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), tem publicados Dançar o nome, (antologia poética bilíngüe português/castelhano em parceria com Edimilson de Almeida Pereira e Iacyr Anderson Freitas, Juiz de Fora: EdUFJF, 2000), Corpo portátil: 1986-2000 (poesia, São Paulo: Escrituras, 2002), Dicionário mínimo: poemas em prosa (São Paulo/Juiz de Fora: Nankin/Funalfa, 2003) e Murilo na cidade: os horizontes portáteis do mito (ensaio, Blumenau: Edifurb, 2003), dentre outros. Mais aqui.