IDENTIDADE

 

Nasci primogênita

no quarto dia do segundo mês

em pleno Carnaval

de um ano que deu

excelente safra.

 

Não que eu não sofra,

não que eu não corra

contra o tempo,

mas este me é relativo

quando mergulho em teus versos

e encontro poesia

submersa em mim.

 

 

 

 

 

 

O SEIO ESQUERDO

 

Aconteceu.

Ninguém espera

E, na primavera,

Foi-se o seio esquerdo.

 

Foi-se o toque,

Ficou a sensação fantasma

Foi-se o alimento,

Ficou o vazio no peito.

 

Como ser mulher, sem o seio esquerdo?

Como ser mãe, sem a mama esquerda?

Como ser profissional, sem o outro par?

Como se olhar no espelho, nua?

 

O seio direito, encabulado,

Só e pendurado,

Emoldurando o luto

Do parceiro canhoto.

 

Está faltando o outro.

São dois,

Originalmente dois.

Há que ser dois.

 

Nunca mais seus dedos

Apertando a carne macia e rosada

Nunca mais sua boca

A brincar de trincar e arrepiar

Nunca mais a dança sensual

Dos pares no banho

E entre lençóis de cetim.

 

Há um imenso vazio

Bem maior que a mama

Que atinge camadas profundas

Da própria natureza fêmea.

 

Há a ausência constante

Lembrada todo o tempo

Pelo traço da cicatriz

Dessa ferida que não fecha.

 

Há a dor, os ductos, os lutos

Mágoa infiltrante, ingrata, infeliz

Dias vividos sem perceber

E para quê viver?

 

Olhos que nunca repararam

Agora recusam-se a olhar

Não tem remédio

Não tem escolha

 

Tem alopécia, náusea e dor

Tem quimioterapia

Tem agonia

Solidão de espinho e flor

 

Tão falso o enchimento

Disfarça a roupa

Como peruca da alma

Que dribla olhares piedosos

De mulher barbada de circo

Que extirpa seus próprios caroços.

 

Os dias arrastados, as horas contadas

Quando volta ao normal?

Quando se acorda do pesadelo?

Ou tentar esquecê-lo...

 

É tão desigual, tão caolha

Fica sem sentido, tão velha

Um robusto, imponente, desejável

Outro, um traço doente, indelével, lamentável.

 

Luta diária e desanimada

Para sobreviver — corpo sem jeito

Mulher sem peito, que cala o grito

Tempo finito, seio bonito

Que se foi.

 

 

 

 

 

 

FONTE

 

em algum lugar

não cabe o todo

há muito mais de mim

em cada poro

ainda há o choro

o consolo

ignoro

 

 

 

 

 

 

CARA A CARA

 

Hoje estou de esvaziar garrafas

e ser rebocada de sarjetas.

Perdoem-me os clássicos e parnasianos,

os acadêmicos e venusianos,

mas já estive em todas as eras,

em todas as guerras.

Atirei nas entranhas,

queimei ervas estranhas

e fui "superstar".

E não queria estar na tua pele

e nem na minha alma.



 





RE-VOLVER

 

No peito-húmus,

um músculo ávido de palavras.

Revolver a terra,

adubo em gotas,

versos irrigados.

 

O verbo cala,

o solo seca,

racha-se a criança —

migalha de pão dormido.

 

Fome e chão,

pisa descalça

em brasas da indiferença.

Pele e sangue ressequidos,

aridez de lágrima,

espinho e barro

a maquiar a pele,

manchas de verde e amarelo.

 

Chora a pátria,

pétrea de matas pálidas,

alopécia de cores,

extensas clareiras.

 

Terra vermelha

coberta do pó,

rugas no mapa,

pistas de pouso —

Clan-destinos.

 

Onde o branco,

a pureza,

a promessa?

 

Traída a terra,

ouro de tolo,

sorriso de icterícia,

parcos dentes

de mastigar solidão.

 

Céu de anil,

nuvens sanitárias,

homem esquálido

a plantar pesticida.

 

Traída a terra,

clamor rouco e abafado,

fumaça dos charutos cubanos,

pendurados nas bocas patronais,

sem lei e sem letra.

 

Traída,

 a terra lamenta por seus filhos,

amamentados de esmola,

de enteados cuspindo confeitos,

mordendo,

 com presas de ouro,

o amanhã e a decência.

 

Traída a terra.

Punhal enterrado no seio,

mãe órfã de rebento raquítico.

Abre-se a fenda,

engole o que resta:

homem e praga,

riso e lágrima,

orgulho e carbono.

 

Num futuro fóssil,

tropical tupiniquim,

semear e colher...

Milagre!

 

 

 

 

 

 

MODELO

 

(Dedicado a Sylvia Plath)

 

A beleza é estéril e fugidia,

mesmo que se tente, a todo custo, aprisioná-la

por trás de espelhos fictícios,

que mintam reflexos do passar dos dias.

 

Ela é frágil, uma ninfeta,

que nada sabe de frutos e raízes,

nem nada entende de luas e silêncios.

 

Enruga a cada amanhecer

com o desespero do apego,

com a vaga ocupada pelo recém-chegado,

com o luto por mais uma linha do tempo na pele.

 

A beleza é estéril e fugidia,

não faz vigília nas noites de febre,

não traz nos olhos promessas de eternidade.

 

Ela é cruel e assustadora,

tem encantos e mistérios,

é desejada e invejada,

mas é traça nas gavetas emperradas do inverno,

como gás invisível e inodoro,

ceifando os sonhos e memórias de verão.

 

 

 

 

 

 

MULHER COM "H"

 

sou bem homem

na mente e na mentira

conto o que sinto

e sem um pinto

sou pistoleira

no fundo, pioneira

 

medindo forças

na queda de braço

perdi o cabaço

 

 

 

 

 

 

CALCANHARES

 

sonho de Aquiles

teu toque

eqüino

o ponto fraco

na relva

resvala

livre no pasto

teu banquete

é o rabo

.

.

.

.

.

.







A FLOR DO TEU SEXO

 

Abaixo do teu umbigo

tem uma flor apressada

que germina

com a rapidez da paixão

e cresce rija

ao menor toque

da minha mão.

 

Abaixo do teu umbigo

tem um hibisco

formoso e rubro

que dura pouco

mas que é tão intenso

em seu esplendor

que sempre me semeia

a cada floração

com as gotas do teu amor.

 

 

 

 

 

 

ERUPÇÃO

 

Vulcão em meu corpo,

lavas-me,

levas-me por todo o espaço,

devastação em versos,

inverso do prazer.

 

Tenor, em solo fértil,

erétil,

tua boca é flauta,

teu ventre, violoncelo.

Regendo o oboé,

arrancas notas,

acordes em despertares.

 

Vem o magma,

escorrendo lento por entre os sulcos,

e lambes labaredas,

afundas em meu colo,

como o poeta em letras.

 

Emerges feito trunfo,

glorioso patrimônio,

demônio,

profano e louco,

a me queimar desejo aos poucos.

 

Então me derreto,

antes sólida certeza,

incrustada no passado,

para sedimentar em teus braços,

eternamente rocha...

 

 

 

 

 

 

O VENTO DE NERUDA

 

(Homenagem a Pablo Neruda)

 

O vento é um doce pássaro

de asas abertas, de bicos pontudos,

Rondando-me e atraindo-me,

tentando me afastar de ti.

 

Não, não quero ir!

Quero abraçar a vida e o amor,

passar meus dias em teus braços,

caminhando lado a lado.

 

Guarda-me em teu peito,

silencia meu compasso,

apenas por uns instantes,

até que ele não mais sopre e me esqueça.

 

Faze de teu corpo meu albergue,

enquanto a tempestade busca outros caminhos,

outros amantes,

outros rochedos.

 

Ouve o som da revoada!

É o vento me querendo,

me caçando,

tentando me levar pra longe.

 

Não, amado, não deixa!

Cobre-me com teu corpo,

abraça-me com teu amor,

aquece-me com teu calor,

que ele passará e pousará

noutro corpo sem alento.

 

Vai, esquece o vento!

Deixa que parta,

que me procure louco,

vendavais e tormentas,

por entre vales, montanhas, oceanos,

que eu me enterro em teu sorriso,

e durmo tranqüila, protegida,

por um instante.

 

 

 

 

 

 

INDOLENTE

 

Em andrajos,

a alma perambula

pela manhã

[que boceja]

entre gorjeios afetados

e mais uma cigarra

que estourou de cantar.

 

Não era dia de morrer.

O nascente não sentiu

o lamentar

dos silêncios inesperados.

 

Não, nada mais incômodo

que partir

sem deixar

saudade.

 

 

 

 

 

 

LÓGICA

 

Não vejo sentido algum

em nascer e morrer.

 

Às vezes me sinto

completamente ridícula

por estar vivendo

sem entender o motivo.

 

É como criança

que decora a população

da Malásia

e não faz a menor idéia

do que vai ter para comer

no almoço.

 

 

 

 

(imagens ©image source)








Lílian Maial
(Rio de Janeiro-RJ). Médica, escritora e poeta, publicou o livro de poemas Enfim, renasci!, em 2000. Tem participação em dezenas de antologias desde 1999. Autora premiada de concursos de poemas, de contos e crônicas, sendo que sua classificação com três poemas sobre o mar fizeram parte da antologia Mar & Amor, em 2001. Integrante ativa do MIP (Movimento Internacional Poetrix), da qual é representante regional no Rio de Janeiro, teve seus poetrix publicados, em 2002, na Antologia Poetrix, com lançamentos no Ceará, Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro. Filiada à REBRA (Rede de Escritoras Brasileiras), já participou de quatro antologias lançadas pela rede, através da Editora Scortecci, de 2002 a 2006, com lançamentos nas Bienais do Livro de São Paulo. Filiada à APPERJ (Associação de Poetas Profissionais do Estado do Rio de Janeiro). Tem seus trabalhos divulgados em vários sites nacionais e internacionais e é colaboradora de várias revistas eletrônicas. Escreve os blogues Lílian Maial Sonetos, Lílian Maial Poetrix e Cara a Cara.