Roberto chegou na última hora da tarde, quando as luzes do mosteiro começavam a declinar as sombras, desenhando ogivas no pátio. Logo após tocar a campanhia, saiu do portão um jovem baixo, usando hábito, branco e de magreza incomum. Informou a Roberto que já o esperava. O sorriso discernia afabilidade ou certo cinismo, disfarçado pelo rosto aparentemente amável, que despertava interesse. Pegou as malas das mãos de Roberto e pediu que o acompanhasse. Entrou por um avarandado que descortinava o vale, cercado por morrotes, em cujos topos tremulavam coroas de álamos. Além das luzes que, na intuição de Roberto, deveriam ser as da estrada, serpeavam os trilhos do trem. Atrás deles, muito distante, como algo que procurava afastar, com toda força, com todo sangue, velava o rosto da Senhora Fiúme, sua mãe. Há quanto tempo que ela permanecia acordada, aguardando-o, era o que o fazia ceder, pensar que a longa ausência não poderia mais prosseguir, daí por diante. Mas se deixasse se entregar a esse outro sentimento, menos puro, mais ingênuo, seria descerrar a trégua, espantar as cinzas das batalhas há muito iniciadas, perder, enfim. Porém, o que ele havia ganhado, de fato? Procurava pensar, enquanto o monge andava vagarosamente, talvez cansado pelo peso das malas, atravessando o vale que anoitecia. "Um gato poderia ser mais trôpego?", pensou. "Acerando as unhas em toda minha fraqueza, sondando meus terrores inúteis". Ele se lembrou de que não adiantara fugir, que, afinal de contas, nada acontecera em cinco anos. Enquanto vivera com Rosa Fiúme, sua mãe, tivera certos presságios, algumas esperanças. Suas tentativas sempre frustradas de conquistar as mulheres, mas, mesmo assim, prosseguia, não recuava. E depois? Nada mais ocorrera. Ninguém surgira nesse tempo, porém, se tornara muito mais forte a figura de Rosa. Todas as vezes que acordava, suando, trêmulo, assustado, procurava-a. Devia estar em algum cômodo, no seu encolhimento, na posição de vencida, com seus olhos de penosa castidade, com o ar de santa, e a dor, essa prolongada e nunca revelada dor no seio, o câncer de sua verde astúcia, a malícia dos animais noturnos, sem nunca se saciar. Aparecia em sonhos, na casa escura, exceto que seu corpo não estava presente, só os traços mantinham-se coesos na respiração de Roberto, como se ele aspirasse o cheiro que mantém os mortos em constante vigília, um odor de tulipas extintas. No último ano, porém, desaparecera totalmente, de seus sonhos, do despertar, das horas. Por fim, já não conseguia conceber nem mesmo um traço, ou fragmento de voz, nada que, por mais ínfimo, escavasse a terra sob a qual o esperava sua mãe, com o abraço de fêmures cruzados, o afago despido de carne. O beijo do pó.

E porque, enquanto cruzava o avarandado, soube que além dos trilhos do trem dormia a casa de Rosa? Decidira passar uns dias no mosteiro. Sim, mas por quê? Para descansar, já que esperava uma semana tranqüila, uma cela para deitar-se, a capela, algum hóspede, por certo, para travar contato? Ou uma hóspede. De certo que não, não alugavam estadia para mulheres. Só então, depois de um ano de ausência, ela retornava, a silhueta de Rosa debruçada numa janela, um desenho recortado por tesouras na paisagem dos álamos, que ladravam como cães, enquanto as corujas espiavam do cimo dos morrotes o jovem Roberto, vestido de terno e calças de percalina, os cabelos já riscados por cãs, seguindo o monge minúsculo ajudando-o com as malas. As corujas falavam alguma coisa para Roberto, algo que não compreendia de todo, vindo do mais distante esconderijo da noite que tecia seu mantel incógnito. O sol se vestira por trás do vale, sua última luz iluminava as folhas dos álamos, curvando-se como ondas do mar tormentoso, dentro do qual Rosa Fiúme rugia o fel espesso, humor da espera nunca alcançada, de um verde de folhas cortadas pelo vento, ondas do oceano e do zimbório de estrelas, desenhando a estrutura de Zéfiro, o colosso. Um ponto se edulcorou, aceso no fim do vale, vela que carrega uma criança, olho que se dilata, ou um simples gato venusino, aquele que espetava o coração de Roberto, vinte, trinta anos.

Aqui, Sr. Roberto — a voz do monge como dobre de sinos.

Apesar de que não se ouviu o badalar costumeiro naquela hora, o órgão evocando a natureza virginal da Mãe de todos os homens, alçando-se aos céus, postergado incenso.

Há água, algumas frutas. O jantar é às oito.

O rosto do monge, como solto no ar, fino como papel, avaro como uma caveira.

E os outros hóspedes? — perguntou Roberto.

Nenhum, nessa época.

Mas ele já conhecia esse fato, apenas quis ouvir do monge as palavras que evocavam a dor, o vestir-se para as celas vazias, beber, comer, caminhar entre os álamos, erguer-se em sua citéria intimidade, quando se procura os corpos gentis.

E o virar-se para as frutas foi a moeda com que pagou o monge, a caridade disfarçada a uma caveira. Morriam ainda os seus passos pelo avarandado, enquanto as olhava.

Mas logo elas perderam o fascínio, as pêras sobre a cômoda. E aquela ânfora, cheia até a borda de água, de formas sinuosas como o pecado.

Roberto sentou-se na beirada da cama. O macio contato com o colchão acendia em sua carne a memória das mulheres, de Virgínia, principalmente, ou de Rosa Fiúme. Como uma lanceta, descendo dos braços anfractuosos de Zéfiro, as mãos esguelhadas de sua mãe pousaram-lhe nos ombros. As clâmides, por terem flores apétalas, possuem a aparência emasculada de uma mãe noturna, com o afiado senso dos espinhos, o predicado que concerne em "afirmar" ou "negar", sempre por escolher o odor intenso, entre as inúmeras armas com que se afia a blandícia. Ele jurara, por Virgínia, pelo corpo mais róseo que já conhecera, pela touquinha no topo dos arcobotantes e dourados cabelos, de tranças várias, e pelos olhos de rosa-chá, que iria curar-se de Rosa Fiúme. Um gato de sete vidas, descendo na hora do angelus, da vila que já o cercava por todos os lados, sem escapar dos agaves nem das mitenes que doavam aos braços de Virgínia o mais excessivo impudor, membros polpudos como salmões na desova; Roberto queria sorvê-los. Abaixo das mitenes, a pele de cetil, que poderia ter a cor daqueles arcos da igreja que separavam a vila do verdor do jardim, como um brasão protetor, tons de leite, que lhe guardava o desejo dos olhos de Rosa. Os lábios de Virgínia, que tanto rumor pronunciavam. Mas aquela foi a hora do silêncio, quando até os mais fervorosos amantes enregelam-se em luar: o aproximar-se de Roberto, o afastar-se de Virgínia. Mas seria preciso que um animal, como a raposa, o basilisco, aquecesse as presas num vocabulário antigo, feito de audácia, de furor. Diante de si, o afeto, nunca antes sentido, porque a mãe não era orvalho sobre a papoula, mas pedra seráfica. Agarrá-la apenas, carne rósea pelo sol, adamascado seio, o vinho das melenas. Então, por entre os agaves, a túnica escura abriu as asas; todos os vitrais da igreja se apagaram e Virgínia recolheu as mitenes, para o mais longínquo retiro de sua leveza. Em Rosa Fiúme o negrejante espectro. Em Virgínia a nuvem de março, ou dezembro.

Quando retornou à casa — pelo jardim os agaves de caules torcidos como os pescoços das górgonas — encontrou na cama de casal Rosa Fiúme, com o rosto transido pela dor virgínea. Pelo muito que esperara, sem forças para erguer-se, o corpo já não podia sentir, insensível o frio a apartava do mundo. Com as víboras de Lacoonte, as rugas do rosto talhadas pelos fachos de luz rendilhada das altas janelas — que perfuravam em muitas ogivas o salão, crescendo até o espelho nos fundos da sala como um espinhaço — Rosa Fiúme era o emblema da dor. Como pudera, por uma diversão "inocente" entre os agaves, esquecer que seu corpo só poderia se manter se o filho a aquecesse, a cobrisse com o mantô de todos os anos, sentasse e aguardasse a chegada do sono, que deveria pousar, qual pétala esquecida, sobre seus olhos? Sobre o espelho o reflexo da igreja, e das tranças cor de ouro puro, desaparecidas.

Roberto lutava por não perder totalmente Virgínia (se já não estava de todo perdida?), mesmo com a mais forte imagem do sentimento por Rosa Fiúme, feito de espectros negros, as ruínas dos agaves. Em meio à escuridão da sala, a luz no cimo da igreja deslizou pelo rendilhado nas paredes, acariciou a pátera com o remédio de sua mãe, os aros dos óculos, até que, descobrindo a repulsão nos olhos de Rosa, aí se deteve, como uma lente que os fizesse crescer, em exímia piedade por Roberto, desvelou-os, exumando-os da falsa prolixidade do sentimento, mostrando-os, cavidades desenhadas por pregos, não os dos martirizados, mas as dos engenheiros de cenários postiços, engodo e milícia das serpentes. Sentiu seus próprios olhos transpassados por uma outra dor, não a que Rosa Fiúme lhe doara por tantos anos, só o suplício daquela compaixão autêntica, construída no instante em que a velhice se mostra a mais astuta desculpa para o domínio. Dor bifronte, pois os olhos de sua mãe, sim, agora, em verdade experimentavam pela primeira vez a "dor", afastada por todos os mimos do medo, a avareza do sofrimento, como dois punhais que lhe fizessem brotar do mais fundo das pupilas os agaves, o rosa-chá, as mitenes, os cabelos coroados, um beijo que fosse, que pudesse sentir, uma delicadeza. Porém, a túnica negra, a mesma que separara Roberto de Virgínia, estendeu a sombra sobre Rosa Fiúme, querendo gritar, partir os espelhos, os vitrais, as víboras do rosto, para que escapasse a única palavra que pudesse defendê-la das sombras, afastado martírio: "filho".

Filho, fora por ele que viera até o mosteiro, àquela cela decorada como um quarto secular, com a ânfora de água e as pêras recolhidas, sábias, sequiosas? Uma cruz pendia sobre a cômoda, havia crucifixos como que perdidos pelo quarto. Roberto não acendera nenhuma lâmpada, continuava sentado na borda da cama, acariciando as pontas do paletó, experimentando apagar, através do tato, a silhueta na janela. Ainda estariam lá, os agaves? Não voltara à Virgínia. Se ela ainda vivesse, entre o jardim e a igreja, que estampa, harpia debruçada sobre os vitrais, deveria odiá-la? O semblante de Rosa Fiúme, encolhido como um mocho, numa bandeira heráldica fincada em seu peito. Em cinco anos, as tintas desbotadas. Olhou as pêras. Assumiam um certo brilho, como os que provocam corações quebrados. O seu coração. Todas as celas do mosteiro estavam vazias, exceto a sua, a do monge com rosto de cadáver. Zéfiro penteava as árvores, porque eram suas filhas. Nas estrelas, nenhuma luz desvelava a estrutura. As tintas se aqueciam de novo. Mas soprou uma réstia, as primeiras cinzas. Um tanto do verdor. Um tanto do sal.  

 

 

 

 

 

(imagem ©ellen i. schutt)

 

 

 

 
 
 

Leonardo Vieira de Almeida é escritor, Mestre em Literatura Brasileira e Doutorando em Literatura Comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Autor do livro de contos Os que estão aí (Ibis Libris, 2002), e de contos publicados no suplemento literário Rascunho, do Jornal do Estado do Paraná, no jornal Panorama e nos sites literários Paralelos, Bestiário e Cronópios. É também tradutor e mora no Rio de Janeiro.