O
que Cuba representa para você, hoje? Pretende voltar a Havana algum
dia? Eu me
esforço para que Cuba não seja uma representação, mas um fato. O fato de
meu nascimento, o lugar projetado de minha morte. Lugar: e como tal
invariável, uma vez que sujeito a mudanças; nesse sentido, devo falar de
um processo. É lugar geográfico e espiritual, história e a história de uma
família (a minha) e de uma vivência (a minha até os vinte anos de idade,
mas prolongada no tempo até agora, em que, com quase sessenta anos de
idade, continuo fazendo e recebendo essa história). Cuba:
recordação e uma linguagem. Recordo,
de fato, mais sua linguagem que seus aromas, suas paisagens, suas cores.
Uma música muito íntima, espécie de elegia tropical. Os judeus ortodoxos
rezam movendo o corpo, às vezes com certa violência, para a frente, para
trás e para os lados (esse movimento se chama shukeling). Eu movo o corpo de
dentro para fora com dois movimentos aparentemente contraditórios, que
procuro dia-a-dia harmonizar: um movimento cubano, outro judeu: posso
dizer jocosamente que combino o mambo com o shukeling, não como corpo
dançarino, mas como corpo
devoto. Uma dupla devoção: pela nação que me viu nascer e pela cultura
"outra" que me acolheu desde criança e (ato voluntário) me acolherá na
hora de minha morte, morte judia e no seio do que é judaico. Esta
amálgama, que implica um desenraizamento diaspórico (o galut que nós judeus conhecemos
tão bem) e uma dupla visão do cotidiano (a ancestral, judaica, e a
novo-mundista, cubana) tem nutrido há quarenta anos os meus poemas. "Roupa
velha" é o nome de um prato cubano feito com uma carne de segunda
desfiada: eu sou em meus poemas, em parte, essa roupa velha, caftán judeu (kappoteh, se diz em iídiche,
palavra evidentemente espanhola - capote) todo puído e, por outro lado
(são os fiapos cubanos) carne saborosa misturada com arroz branco (dupla
coloração, espécie de prato mulato). Uma mestiçagem. Mestiçagem que de
algum modo define o mundo de hoje, cujo caminho evidente é o pluralismo,
tão desejado por mim, a partir de uma perspectiva aberta, de diálogo e
tolerância: perspectiva dupla, judia e cubana. A poesia, em todos, se
nutre cada vez mais da multi-referencialidade. A poesia se nutrirá cada
vez mais do pluralismo ecumênico. O tema
do regresso a Cuba é tortuoso para qualquer cubano que tenha vivido a
maior parte de sua vida fora de seu país. Tortuoso e doloroso. Falamos
desse país com a consciência de que não sabemos nada do país atual. Os
jovens cubanos que tenho conhecido, na maioria poetas e intelectuais, são
muito diferentes dos jovens de minha época. Por um lado, porque os jovens
de hoje mudaram em relação aos de minha época e, por outro lado, porque
eles têm vivido uma experiência duríssima que me custa muito compreender
(no sentido de que eu não a vivi, como se costuma dizer, na própria pele).
Eu os sinto ariscos, distantes, pouco carinhosos, talvez austeros e secos se comparados com
aqueles com quem cresci num país que é puro carinho. Só posso dizer que
para mim já não há regresso definitivo; que não regressaria sob as atuais
condições de monopólio político (não aceito, essa é minha intolerância, o
fanatismo religioso nem o político); que a realidade me diz que aí não
represento nada, que minha casa já não está lá, e, portanto, não está em
lugar nenhum. Seus
poemas foram escritos num exílio não apenas geográfico, mas também
lingüístico e cultural. Como foi a experiência de escrever em espanhol num
país anglo-saxão? A mudança para a Espanha, de certo modo, é um retorno ao
berço de seu idioma?
Escrever
em espanhol vivendo em Nova York desde 1960, e sobretudo escrever poesia
(que exige, em quase todos os casos, escritura na língua materna), foi
muito difícil. Perdi muito espanhol, não o falei durante mais de uma
década; submergi no inglês, na vida nova-iorquina, numa época em que havia
pouca imigração latino-americana. Essa perda foi algo atroz e quando saí
desse atoleiro não só recuperei um idioma perdido, mas também trouxe (daqueles fétidos fundos sem idioma para a
poesia) uma linguagem renovada, mais consciente, multiplicada e aberta,
carismatizada. Meu espanhol é um espanhol marcado: na infância pelo
iídiche, na adolescência pelo inglês, na velhice pela irradiação da Morte,
que é a carência de idioma, a não necessidade de falar. Um bom amigo,
Jorge Guitart, cubano como eu, e como eu muito aberto ao inglês (em seu
caso, além disso, é um
lingüista especializado na fala do Caribe espanhol), me disse certa
vez que eu empregava as preposições e o subjuntivo, em muitas ocasiões, de
um modo nada castelhano, de um modo "estranho". (...) "Suas preposições
soam como iídiche, seus subjuntivos à fala agramatical, assintática,
desordenada, dos judeus da Europa Oriental que imigraram para Cuba nos
anos 20 e 30" (meu pai, cujo espanhol afetou profundamente minha
infância). Essa multiplicidade herdada e depois, por desenraizamento,
vivida fez com que minha relação com o idioma fosse ao mesmo tempo
defensiva (conservá-lo) e ofensiva (atacá-lo, mulatizando-o com espelhos
partidos que provêm de outros idiomas: digamos que um pouco
joyceanamente). Por um lado, me incomoda muito o mau uso do idioma, sua
vulgarização (todos esses solecismos fáceis e cômodos), tendo a um certo
purismo; por outro lado, tudo bem, que a língua flua com os tempos, que se
expresse como possa, que diga o que tenha vontade. (...) PERSONA, que quer
dizer etimologicamente larva e máscara, é também o per-sonare do latim. Pois bem:
para mim, o idioma é larva, só que nunca sei que bicho sairá da crisálida;
é máscara porque se traslada para os poemas, e todo traslado é
mascaramento. E é per-sonare no
sentido de eco e eco de ecos, que ressoa interminável nos poemas, nos meus
poemas, e sobretudo nos dos demais poetas que configuram a história da
poesia, uma história não só de poetas através dos séculos mas sobretudo de
poemas, pois estes são a verdadeira história da poesia, seu "per-sonar"
verdadeiro. Ter me mudado para a
Espanha não significou muito do ponto de vista do idioma. Este é um mau
momento para a criação na Espanha. Não noto riqueza espiritual nem vontade
de risco (portanto, não há crescimento). O idioma está esclerosado. Aqui
gostam de imitar "com raiva" e "com desprezo" o inglês, coisa que lhes
parece muito chique e que acreditam ter um grande valor publicitário:
imitam mal, muito mal. Todo mundo quer aprender inglês, quase ninguém o
aprende, muito menos o ama (isso nem lhes ocorre): o resultado é que o
espanhol se torna spanglish,
não é "ni chicha ni limonada".
Logo haverá uma reação, porque este é um grande país, com uma forte
tradição lingüística: apenas está nas mãos de novos-ricos fofos que não
entendem nada. A relação com o idioma na Espanha neste momento me parece
prepotente, diurna, atônita. Estamos seriamente pensando em ir viver em
Miami, porta aberta para toda a América: uma América com países como Cuba,
México ou Brasil, onde o idioma, a literatura, a inquietude profunda, o
estado de alerta e de alarma ante o mundo atual são fortes, estão vivos:
vive-se a ruptura da modernidade, sua ruptura ecológica, visceral, moral.
Questiona-se tudo, e, sobretudo, há interesse por tudo. Uma voracidade
ecumênica. Na Espanha só se ouve
falar da desgastada
Europa, uma Europa que, para mim, se converteu em um museu que eles
mesmos, se não mudarem, um dia arrasarão (again). (NOTA:
o poeta vive hoje em Miami, nos EUA.) O
que levou você a ser poeta em vez de ocupar-se de profissões mais
rentáveis, como senador, magistrado ou gerente de alguma multinacional?
Isso é
um mistério. Por que, na penumbra da sesta, em meus quatorze anos de
idade, em Havana, me fecho em meu quarto e, depois de cochilar e de dar
rédea solta a minhas fantasias sexuais, sinto a necessidade de escrever?
Não sei, nunca saberei. Certamente, nem me lembro quando começou. Mas
recordo que passava as horas metido na cama lendo e escrevendo, que
comecei a conceber esse "sofrimento" e essa "distinção" como vocação (de
mártir, de santo, de excluído e diferente). E que, num dado momento, minha
vida tinha se definido. Sabia claramente aos quinze anos de idade que
passaria toda a vida lendo e escrevendo (como as crianças): não só o
sabia, ardia de desejos de seguir essa vida, de ir por aí a ler e
escrever, de não fazer outra coisa, de tornar minha vida monástica e ser
um monge da escritura e da leitura, ler vinte e quatro horas por dia,
escrever trezentos e sessenta e cinco dias por ano. Desde adolescente fui
troglodita, omnívoro e grafômano. Um obsessivo. Que
poetas influenciaram mais o seu trabalho? Influências, mil: todo
bom poeta me obcecou, me
influenciou em um dado momento. Posso dizer que sou descendente de Lorca,
Vallejo, Quevedo, Góngora, Rilke, Brecht, Celan, Baudelaire, Rimbaud,
Mallarmé não, Martí sim, Lezama por que não?, de Akhmátova, Mandelstam,
San Juan de la Cruz, Pound, Eliot, Stevens, e quem não? Creio que ocorre
comigo um fenômeno bastante estranho e que explica em parte o caráter
proliferante de minha escritura, seu caudal. Aquilo que em um momento dado
estou lendo se converte ipso
facto em influência momentânea. Se estou lendo, digamos, Tolstói, sai
um poema tolstoiano; se leio Carlos Martínez Rivas, faço um poema
rivasiano. A historia de todos os meus poemas está nos livros que fui
lendo, dia-a-dia. Neles e, claro, em outros dois lugares: o de minha
própria individualidade, com sua história; e o do mistério que não se
explica e que forja poemas a partir de um ein sof (imanência; em si)
cabalístico. Você já escreveu mais de 5.000 poemas, um feito muito raro na poesia do século XX. Aliás, você próprio já definiu sua obra como sendo um verso único, "o maior verso da história da literatura". Fale um pouco sobre o seu método de trabalho: você escreve todos os dias? O que vem primeiro, o tema ou algum verso, alguma palavra? Planeja o poema antes de executá-lo? Você tem o hábito de reescrever os seus textos, ou a primeira versão é sempre a definitiva?
Com efeito, escrevi uns 5.000 poemas desde
1970 até hoje. Agora, corrijo todos esses poemas, já que os guardo em meu
computador. Assim, em um par de anos saberei exatamente quantos poemas
escrevi, pois descartei muitos: só conto os que não descartei. Meu
cálculo, ainda algo impreciso, é de haver escrito uns 5.000 poemas, give or take. Como os escrevi? Sem
dar-me conta. Nunca me dou conta de que os escrevo. Eles se fazem. E em
curtíssimo lapso de tempo. Por longo e complicado que seja o poema que
escrevo, raras vezes me toma mais de uma hora. A média são vinte minutos.
E eles se fazem (eu os faço?) de uma sentada; quero dizer, de súbito, sem
deixar para amanhã nem para depois. Às vezes eu os escrevo caminhando, às
vezes em um metrô, às vezes sentado na postura de lótus, outras movendo o
corpo como um velho rabino ortodoxo, de pé; escrevi poemas dando aulas,
entre uma aula e outra, em reuniões do professorado, falando com minha
mulher Guadalupe, em pequenos povoados mediterrâneos, no inverno enquanto
nevava ou em pleno verão no calor asfixiante da costa atlântica dos EUA;
eu os escrevi cantarolando, ou no maior silêncio, um silêncio na verdade
sagrado. Escrevi defecando, purificando-me, dormindo. Cheguei a escrever
dormindo, despertando de repente, sobressaltado e tendo de anotar, mais ou
menos, os restos de um interminável poema. E, no entanto, apesar de sua
dificuldade, não creio que seja possível dizer que minha poesia é
incoerente. Difícil, sim; incoerente, não. Vou polindo e entalhando antes
de publicar (é o que faço agora, aproveitando o "ócio" da aposentadoria
(jubilación), essa alegria (júbilo) de não ter mais que ir
ganhar o meu pão no dia seguinte). Poemas sem planejar, sempre
inesperados. Poemas escritos, se não todos os dias, ao menos com um ritmo
cuja periodicidade pode, estatisticamente, conhecer-se: mais ou menos um
poema a cada dois dias. Assim como o pintor pinta todos os dias, o
escultor esculpe todos os dias, o romancista escreve diariamente, eu,
poeta (?), faço poemas todos os dias, e por
escrito. Ao contrário de outros poetas contemporâneos, que privilegiam a síntese, a concisão, os seus poemas são longos, pletóricos, recordando por vezes Góngora. Porém, o seu discurso não é linear, convencional; você cria uma sintaxe própria, em que a elipse e o uso do parêntesis quebram a lógica rotineira. Você faz pequenas colagens verbais, associando idéias conhecidas para criar o desconhecido, o sugestivo, o mutável. Fale um pouco sobre sua técnica de composição. Talvez esses poemas
longos que caracterizam uma parte de meu trabalho não sejam mais do que
superposições de poemas curtos, um
cordão de haicais. A
palavra sutra tem em sua origem
relação com sutura e ambas com
a palavra fio. Rezar (sutra) é
suturar com fio a ferida, estancá-la. Talvez esses poemas não sejam longos
senão na aparência. Por isso gosto de dizer que meus poemas longos são
brevíssimos, já que se compõem de um só verso. Pode ser longo, pode ocupar
inclusive três páginas, mas não deixa de ser um só verso. Nesse sentido,
esses poemas são mais breves que um texto de Ungaretti. Em parte gracejo,
claro, mas estou convencido de que tudo se constrói com base em tijolos,
de modo que esses longos poemas são edifícios compostos por numerosos
tijolos, melhor ou pior cimentados. É curioso que não se costuma
considerar, na métrica, a existência do poema de um só verso. Há exemplos
na história da poesia, mas passam desapercebidos. Já o dístico ou parelha
tem existência, o poema de um só verso, não: como se o um só, o uno, só
pudesse ser associado à presença divina (no judaísmo há uma tradição
ortodoxa que chama a Deus pelo nome de Uno): isso não nos diz respeito,
parece dizer a métrica, isso não se faz. Bem, eu o faço, descobri em mim
essa necessidade, a de estender o verso solitário ad infinitum, como se através dele
buscasse a esse Uno que é Deus: meu verso nomeia constantemente, não cessa
de nomear, como se buscasse encontrar por acaso o nome do Verdadeiro, o
nome do Inominável. Sei que é impossível, mas também é impossível deixar
de fazê-lo. O seu vocabulário é extremamente rico. Você utiliza neologismos, arcaísmos, expressões coloquiais próprias de Cuba, nomes de plantas e árvores e - o que fica muito evidente, lendo seus poemas - termos próprios dos ofícios do sapateiro e da costureira. Segundo Eduardo Milán, você procura "uma origem que não seja de ouro", e o resultado é uma autêntica mitologia pessoal. Sua pesquisa vocabular é resultado de suas experiências pessoais? Uma riqueza de léxico em
espanhol é algo natural em um idioma que, além de sua enorme riqueza, o
segundo quantitativamente depois do inglês, tende à utilização sinonímica,
ao adágio e ao provérbio, à amplificação retórica, à enumeração de modo
consubstancial e sem forçar: o espanhol se regozija no espanhol, goza
cativando-se no espelho da retórica, desfruta a empolação, rouqueja e
gargareja sons como o jota ou o erre, dos quais desfruta tanto que, estou
seguro, inconscientemente, o falante do castelhano busca palavras que
contenham tais sons. Some-se a isso o fato de que não existe um espanhol, mas uma vintena de
espanhóis: primeiro, na península, onde o idioma se enriquece pelos
acréscimos de cada região, província, cidade e inclusive povoado; e depois
a América: apenas o México dá para uma vida de aprendizagem e
enriquecimento léxico. Duas culturas cruzadas, interpenetrando-se, cada
uma desconfiando da riqueza própria e da alheia, tomando palavras
emprestadas, roubando-se às escondidas perífrases e modismos, refazendo-os
para dissimular a simbiose, a ansiedade da influência ao pedir emprestadas as ditas palavras.
Essa complexidade, em meu caso, se exacerba por ter crescido em dois
idiomas diametralmente opostos (o castelhano e o iídiche). Tenho raízes no espanhol de Cuba, mas com uma
consciência precoce de que esse espaço lingüístico não era unívoco nem
monocórdico, que fora do perímetro da fala da Ilha (que por sua vez se
compõe de várias falas, pois varia de acordo com as províncias, época,
classe social, grupo étnico etc.) existia, aguardando-me, um idioma duplo,
triplo, polifônico e multivalente. Aos vinte anos, a expulsão: e com esta,
a entrada em cheio no Mar Oceânico da língua. Agora converso com gente que
fala como porto-riquenho, dominicano, peninsular, andaluz, mexicano,
colombiano, argentino ou que fala spanglish. Em vez de proteger
minha raiz lingüística cubana, o que faço é aceitar o ladino diaspórico, o
esperanto que recebe de todos os idiomas a mestiçagem de vocabulários. E
aprendo, incorporo, torno-me vasilha porosa e receptáculo. Veja-se (isso
foi assinalado pelo crítico cubano Gustavo Pérez-Firmat) a enorme
quantidade de receptáculos que aparece em minha poesia: vasilhas, pratos, bacias, gamelas, tigelas, escudelas, ânforas, cálices
(enfim, toda a concavidade da Mãe): deve haver algum motivo. Converti-me
em uma semi-esfera disposta (desejosa) de receber o maná de todos as
linguagens. Minha relação com o espanhol no início do exílio se viu
reduzida pelo inglês; sentindo-se ameaçada, reagiu como mãe protetora,
opondo-se ao inglês, mas, ao mesmo tempo, dado o assédio da cultura
anglo-saxônica em que vivia e tenho vivido boa parte de minha vida, aquilo
enriqueceu meu sentido do idioma, retorcendo-o, abrindo-o,
transformando-o. A
transformação, como bem diz Eduardo Milán, procura uma origem que não seja
de ouro. Como poderia sê-lo? Minhas origens são obscuras, minha identidade
indecisa, minha filiação questionável. Falo como minha mãe ou como minha
avó? Sinto em espanhol ou em um substrato iídiche, rabínico, totalmente
alheio a esse espanhol? Estou fundamentado na fala decomposta do pai ou no
prístino idioma da mãe? Mamo espanhol no regaço materno ou nas empregadas
que tagarelavam em casa? Resisto à fala das ruas ou protejo um
conhecimento do idioma mais "elevado" e "culto" dos livros que comecei a
ler aos treze anos de idade na penumbrosa habitação da rua Estrada Palma,
em Havana, Cuba? Eu o protejo ou me protejo? E de quê? Todas estas
perguntas são retóricas: é evidente que participo de todos esses elementos
na hora de expressar-me. Assim, o vocabulário enriquecido torna-se arma de
ataque e contra-ataque, uma vez que é instrumento: utensílio de alfaiate,
apeiro de lavrador, ferramenta de mineiro. O menor
ganha altura, é maior. Bravo. Já era hora. Já era hora de enfrentar a
história com a divergência, a miscelânea, "o arroz com manga" e o solto
rebolado de todas as formas de expressão. Aqui está a verdadeira
democracia do futuro, que se sustenta na aceitação de todas as falas, sem
reprimir nem desprezar, sem supremacias idiotas. Quando a linguagem se
abrir a todas as tendências morrerá de um golpe o fundamentalismo, o
totalitarismo, nós riremos nos narizes dos politicastros castradores e
castrados, a castrada militância dos ignorantes que pretendem redimir os
ignorados, sendo eles os primeiros a ignorar. Lembro-me que, desde
criança, detestava a má retórica, o dizer fácil e pomposo, a falsa
exuberância, o barroco mesquinho. Eu o ouvia nos discursos políticos, nas
normas escolares, no lixo radiofônico e televisivo, e isso me tirava do
sério, estimulava em mim fantasias criminais. Sonhava em acabar com a
casta dos oradores e dos eloqüentes vácuos, e em seu lugar ver
instaurar-se um mundo de poetas, escritores maiores, gente respeitadora do
peso de cada palavra, conscientes de que cada palavra é um presente de
Deus, um alto dom. A fim de
escapar à cacofonia ambiente, pus-me a ler os clássicos e os modernos,
pus-me a escrever. Em
sua poesia há referências a temas e paisagens do Oriente, em especial da
China e do Japão. O seu interesse por essas culturas é estético ou também
filosófico? Fale um pouco de seu trabalho de tradutor de poesia medieval
japonesa. Kipling
diz, mais ou menos, que "East is East, West is West, and the two shall
never meet". Isso já não vigora. Hoje,
mais do que nunca, a abertura leva também ao reconhecimento do "outro"
oriental, outridade que é mesmidade, bifurcação nutritiva que alimenta e
recompõe os complexos fios das nacionalidades, culturas, etnias e
religiões (aí está, por exemplo, o fenômeno dos JUBU, Jewish Buddhists
(Judeus Budistas), com sua marca de extravagância bobalhona e sua marca de
profunda seriedade. Nesse caldo há e tem havido de tudo, porém, mais que
tudo, há futuro: e eu tenho vocação de futuro, tendência idealista e às
vezes utópica. Assim, vejo na conjunção Oriente/Ocidente não só um retorno
às origens, mas sobretudo uma confluência de vigorosas riquezas que augura
um mundo melhor e uma escritura muito mais rica (escritura que irá tanto
da direita para a esquerda como da esquerda para a direita e que será
tanto horizontal como vertical). Não
posso escrever se minha emoção mais íntima não se torna voraz,
totalizadora, carnal: quando comecei a entrar no mundo oriental descobri
que algo muito forte, e ao mesmo tempo muito delicado, encarnava em mim.
Por isso entrei nesse reino: porque senti sua encarnação; e que essa
entrada me levava a uma mudança profunda, a uma radical e muito suave
transformação. Li, pensei, padeci a transverberação laica: e dessa
experiência saíram montões de poemas, como só costuma acontecer comigo.
Integrei parte de minha vida à prática zen (sem mestre, por conta própria:
o que é um erro; como fazer psicanálise sem psicanalista?), procurei
conhecer esse mundo, sua arte, sua poesia, seu modo de encarar
historicamente a vida material e a vida espiritual. A rigor, recuperei
aspectos tranqüilos de meu corpo, vivências interiores foram apaziguadas:
e isso me disciplinou mais. Eu vinha de uma fase de muitas leituras
medievais, de sonhos e fantasias monásticas, e tinha passado por uma
segunda fase de leituras cabalísticas, de regresso ao judaísmo em seus
aspectos mais árduos e complexos. Estava, como se costuma dizer, feito pó.
O Oriente me fez subir à tona: limpou certos textos, disciplinou minha
mente, moderou o corpo, redirecionou a energia erótica. Tudo isso, a
partir da sensação de algo vivo, tem feito com que eu escreva uma série de
poemas mais lacônicos, mais silenciosos, que são como a membrana interior
que protege toda minha outra poesia, barroca, retorcida, verbalizadora. O
que dizer, senão que meu afã é espiritual? O que dizer senão que,
traduzindo os japoneses (Saigyo, Soseki, Akutagawa, Mokichi, por via
indireta, já que os traduzi do inglês) minha vida se tornou "outra"? E, é
claro, isso tinha de se refletir na poesia que faço. Não
está na hora de haver um maior intercâmbio entre os poetas e intelectuais
da América espanhola e do Brasil? Fiz
estudos graduados de literatura luso-brasileira e fiquei impressionado com
a riqueza extraordinária dessa literatura. Com os anos, e pelas
circunstâncias, fui afastando-me do idioma português (os brasileiros
sempre me diziam que eu tinha "sotaque português" e os portugueses sempre
me diziam que "o senhor é brasileiro") assim como de suas literaturas.
Porém, guardo o sabor de ter lido autênticas maravilhas nos poetas,
narradores, autores de viagens marítimas etc., dos portugueses e dos
brasileiros. O impacto que causou em mim, aos 26 anos de idade, ler sobre
a Semana de Arte Moderna de São Paulo foi tremendo. Reforçou a minha noção
do ano milagroso de 1922 ao qual não contribuíram apenas Eliot, Vallejo,
Joyce. Esta é uma zona de meu (des)conhecimento que quero remediar, à qual
quero voltar: reaprender o português, ler seus escritores, e sobretudo os
de hoje, que na maioria desconheço, como eles a nós. Ainda tenho a
impressão de que no Brasil se conhece muito melhor o que fazemos nós, os
hispano-americanos, do que nós aos brasileiros: e isso graças a escritores
como Floriano Martins, Jorge Schwartz, Josely Vianna Baptista e muitos
mais. Creio que é hora de estendermos um arco cordial, diferenciador e
fraternal, entre nossas literaturas. Seria bom para a poesia em geral e,
mais concretamente, para aquela que se faz nestes dois idiomas, de tronco
comum e ramo distinto. Qual
sua opinião sobre a atual literatura cubana? Nós,
cubanos, temos muito a contribuir na hora de dar forma a esta engrenagem.
Cuba conta hoje, dentro e fora da Ilha, com uma plêiade de poetas em
verdade extraordinária e que ultrapassa a rica tradição que parte do
século XVIII e chega, digamos, a Lezama e a Piñera. Depois deles, de
Baquero, de Eliseo Diego, de Arrufat, há um grande número de poetas jovens
(para eles, eu já sou um avozinho) que estão experimentando com tudo: a
sintaxe, o multiculturalismo, a meta-referencialidade, o poliglotismo.
Gente diaspórica, marginal, materialmente pobre, mas rica espiritualmente.
A eles corresponde a tarefa de unir poemas, poetas, poesia de todas as
esferas: e, claro, um primeiro passo lógico, saudável, é a cooperação
entre poetas de fala portuguesa e espanhola. Tradução: Claudio Daniel e
Luiz Roberto Guedes (Publicada, originalmente, no Suplemento Literário de Minas Gerais) |