reflexões à beira do abismo
(poema para duas vozes de um mesmo ser)


Um:..........Como um pássaro insano
...............atraído estranhamente
...............pelo poder do perigo
...............vai à boca da serpente

Outro:......eu penso, à beira do abismo,
...............na contenda que me hospeda:
...............uma metade me prende,
...............outra me compele à queda.

Um:..........Como um calmo prisioneiro
...............que se entrega, mansamente,
...............aos laços da gravidade
...............— verticais e descendentes —
...............minha metade que voa
...............abre meus braços, me oferta,
...............aos ares largos e fundos
...............sobre as mãos da morte certa.

Outro:.......Como um pássaro cativo
...............guarda seus vôos latentes
...............e ao ver o cárcere aberto
...............não abre as próprias correntes
...............já sou a outra metade
...............e digo, à beira do abismo:
...............na queda os ventos da morte
...............em mim fariam batismo.

Um:..........Como alguém que enfim rebenta
...............suas internas algemas

Outro:.......e vê sumir, por encanto,
...............seu lento e louco dilema

Um: .........vejo as pedras que me esperam

Outro: ......e meus temores, ausentes.

Os dois: ....Fecho os olhos e sou pássaro
................sobre a boca da serpente.

Jaime Vaz Brasil nasceu no Rio Grande do Sul, em Bagé. Começou escrevendo letras de música e poemas. Depois, contos. É médico, psiquiatra e psicoterapeuta. Vive em Porto Alegre, onde é o diretor-técnico e docente titular do Instituto Fernando Pessoa, uma instituição que agrega ensino psicoterápico (pós-graduação) e atividades culturais. Muitos dos seus poemas foram musicados e gravados por compositores e intérpretes como Vitor Ramil, Ricardo Freire, Kleiton e Kledir, Lúcia Helena, Ivo Fraga, Pery Souza e Mário Barbará, entre outros. Em CD, possui várias gravações em festivais de música e foi autor das letras do CD "Milonga do Pendular Encontro", de Pery Souza. Seu livro Os Olhos de Borges também possui versão em CD, com os poemas musicados por vários compositores. E o livro infantil A Pandorga da Lua é acompanhado também de CD, com os poemas musicados e arranjados por Ricardo Freire. Tem poemas publicados em seu site: http://www.jaimevazbrasil.art.br

Livros Publicados: Punhais do Minuano (WS Editor, 2ª Edição, 1991); Caderno dos Espelhos (Editora Tchê!, 2ª Edição, 1993); Os Olhos de Borges (WS Editor, 3ª Edição, 1997, indicado ao Prêmio Açorianos de Literatura); Livro dos Amores (1ª Edição, 1999, vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura); Inventário de Cronos (WS Editor, 1ª Edição, 2002); A Pandorga da Lua (poemas infantis, WS Editor, 1ª Edição, 2003).

serventia

Uma grande rebelião
sem causa e também sem lema
não leva ninguém a nada.
Mas serve para o poema.

Um tombo dentro da alma
no arranha-céu dos dilemas
aos outros, talvez não sirva.
Mas serve para o poema.

Um roteiro que tropece
na escadaria do tema
talvez não sirva ao aplauso.
Mas serve para o poema.

Um barco em pleno deserto
que o braço-em-gesso não rema
não vai ao cais nem às ondas.
Mas serve para o poema.

Uma andorinha sem asas
leva no corpo um problema
e não traz verão no bico.
Mas serve para o poema.

Tudo o que dorme esquecido:
bilhete, foto ou emblema,
a muitos não tem prestança.
Mas serve para o poema.

Cada tristeza
e cada riso.
O sofrimento
com seus escudos.
Uma joaninha,
o impreciso:
ao poema serve tudo.

inventário do desamor

Deixo contigo meu sangue
meus livros e minhas horas.

E a dor cansada na insônia
contra o lençol das demoras.

Deixo a paz que eu encontrei
e me fugiu entre os dedos.

E a chave surda, sem uso
da gaveta dos meus medos.

Deixo perdido um poema,
e não por esquecimento:

mas pra que um dia eu te encontre
na leve pauta dos ventos.

Deixo contigo meu ventre
meus olhos, minhas entranhas.

Mas profetizo, em silêncio:
perde mais quem hoje ganha.

Deixo contigo meus beijos
meu suor, meu desabrigo.

Deixo roupas, documentos.
De meu, nada irá comigo.

Deixo a sombra, de teimosa.
Deixo as fotos, deixo a casa.

E ao poço mais infinito
só levo a alma, presa e rasa.

esconderijos

Sou vento.
Mas não habito as árvores,
na lixa das folhas.
(Sou vento dentro da raiz).

Sou fuga.
Mas não o túnel do preso
que gasta os dedos na pedra.
(Sou fuga no casco do plano).

Sou verbo.
Mas não a frase sentida,
o verso vivo e sangrante.
(Sou verbo em descaso, inútil e raso).

Sou fome.
Mas não a fome que some
entre a lâmina dos dentes.
(Sou a fome do que não busco).

Sou espelho.
Mas não o que me reflete
como animal e coisa.
(Sou cada espelho onde não me reconheço).

Sou abraço.
Mas no espaço onde amarro
o que nele escondo.
(Sou um abraço contido, com a mão no bolso).

Sou morte.
Mas no corpo tributável,
disfarçando o que pressente.
(Sou a morte do que já está morto).

Minha carne tarda
na alma que me falta.

lua sobre cavalo na areia


Vai o cavalo na areia,
sobre ele vai a lua.

Lua plural, luas gêmeas,
já que na terra eram duas.

Nos dois olhos do cavalo
uma lua em cada olho:

selo ao beijo das retinas
para a foto que recolho.

Dentro do olho e da lua
a luz branca se compondo

descreve o traço que engloba
os dois espelhos redondos.

A noite mira o cavalo
e enquanto a lua na praia

dança no colo das ondas
há um outro céu que se ensaia:

o cavalo fecha os olhos
na frente da lua cheia

mas grava ao solo os retratos
em seu galope de areia.

Este é o quadro em desenho,
o fio que amarra o instante:

na impressora dos cascos,
são quatro as luas minguantes.

grota.


©edgard de souza