Enquanto me preparavam para morrer, acendi um último cigarro e  fiquei pensando se seria mesmo verdade aquilo que dizem, que ao bater das botas a gente revê a vida inteira em frações de segundo. Logo em seguida descobri que sim, era verdade, meia verdade ao menos, pois, se não passei pela tortura de rever minha novela de cabo a rabo, sofri pra caralho com o remake dos capítulos finais, os mais angustiantes.

 

Eu tinha 33 anos e não fazia porra nenhuma. Quer dizer, eu bebia, me drogava e chorava sempre que possível. Sozinha ou acompanhada. De preferência, acompanhada. Quando não reunia a platéia em torno da piscina lá de casa, armava meu circo numa festa ou nalgum bar. Em uma ou noutra situação, invariavelmente abria o espetáculo fingindo ser o que nunca fui, uma mulher bacana, gentil e ilustrada. À medida que amiudava os intervalos entre o uísque e a cocaína, caía na real e no chão imundo dos banheiros, revelando minhas particularidades insanas a quem quisesse ouvi-las e a quem não quisesse também.

 

Não nasci dona de piscina. Devo o ócio da riqueza à exuberância de minhas curvas. Foram elas que cegaram Leleco Andrade, o coroa milionário que cometeu a besteira de casar comigo. Durou dois anos esse meu primeiro casamento. Teria durado menos se o bobalhão, apaixonado, não tivesse se esforçado ao máximo para prolongar nossa agonia. Ou mais, se meu advogado não fosse tão bom. Do segundo casamento seria sacanagem reclamar. Quílvio era um marido tranquilão, mão aberta, fácil de lidar. Pena ter um nome esquisito. Pena ter embarcado naquele vôo Manaus-Brasília. No entanto, foi graças ao trauma da viuvez que conheci o homem da minha vida, o único que realmente amei e quis pra pai dos filhos que nunca tive. Responsável por meu acompanhamento psicológico, Júlio me ajudou a superar o abalo emocional, mas extrapolou as obrigações profissionais e mudou pra minha cama tão logo larguei o luto e ele a esposa, uma broaca neurótica que se dedicou de corpo e alma a infernizar nossa relação. Uma noite, no auge do que eu julgava auge, Júlio me deixou e voltou pra desgraçada. Tomada por um puta desespero, desespero de unicórnia procurando chifre em cabeça de cavalo, enchi a cara, bebi quanto pude e aguentei antes de perder de vez o controle. Pela manhã, os empregados me encontraram desacordada no meio de uma poça de sangue. Tudo em torno estava quebrado, rasgado, espatifado, estraçalhado.  O que eles não sabiam, não tinham como saber, é que eu me estragara por dentro também.

 

Não foi aí que decidi morrer. Não. Foi muito mais tarde, nove  inúteis anos mais tarde, quando já havia esgotado todas as tentativas de me prender à vida pelo único cordão que sempre embalara meus sonhos e que eu própria havia desatado, continuando a respirar só porque não conseguia arrancar do coração a estaca de esperança que o mantinha batendo. E, ridículo isso, foi para perpetuar a estaca que tomei a decisão de morrer.

 

O acaso contribuiu. Era véspera de ano novo. Parada num cruzamento, cantarolando uma bosta qualquer, eu esperava o sinal esverdear, em dúvida se baldeava na capital da Porrônia ou seguia direto pro reino da Esbórnia. Um chato parou ao meu lado. Esticou o focinho de hiena:

   

— Oooi, belezura! Muito prazer seu em me conhecer!

 

Belezura? Puta que o pariu! Fiz que ia fechar o vidro da janela.

  

— Qualé, gata? Tá com medo? Eu sou bonzinho, sou um anjo!

 

Como ainda não tinha bebido nada, reagi com a educação possível, levando o dedo à garganta numa mímica de vômito:
   

— Detesto anjos. A carne é dura, demora pra cozinhar e tem muita pena no cu.

   

O cara ficou puto, me xingou de piranha e avançou o sinal vermelho, quase atropelando uma grávida que atravessava a rua. Com o susto, a bolsa rompeu e ela entrou em trabalho de parto. Meti-a dentro do carro e corri para uma maternidade. "Atendam que eu pago", avisei e fui aguardar na sala de espera, entre uma coleção de papais ansiosos e outra de revistas velhas. Abri uma. Os Vulcões do Hawai. Tesouros Perdidos no Fundo do Mar. A Vida Sexual das Lesmas. Vencendo a Morte. É, vencendo a morte. Empresas americanas congelavam e mantinham congelado o corpo de doentes terminais interessados em apostar numa ressurreição futura, quando a medicina estaria tão avançada que seria capaz de devolver a existência aos mortos e curar a enfermidade que os remeteu pro bebeléu.

 

Tudo mudou depois que fechei (e roubei) a revista. Se graças a mim, a grávida teve um parto normal, graças a ela eu tive um réveillon anormalíssimo, sóbrio, bem doméstico, pesquisando na Internet temas como eutanásia e criogenia, a técnica  de resfriamento utilizada para conservar corpos congelados. De madrugada, quando levantei do computador pra dar a primeira mijada de janeiro, mijei sabendo exatamente o que queria que fizessem comigo. Restava descobrir o quem, o como, o onde. O quando não. Quando era já. Arrumei as malas e peguei um avião pros Estados Unidos. Depois de bater na porta de cinco empresas especializadas em criogenia, encontrei uma no Arizona cujo diretor ouviu minha proposta sem corar ou indignar. Doutor J.J.Wood trocara a medicina pela direção da Phoenix Life Extension Foundation, uma arapuca criada pra tomar dinheiro de trouxas como eu, gente que comprava terreno na lua e acreditava em ressurreição e coelhinho da Páscoa. Tudo muito bem organizado. O candidato assinava um contrato permitindo que, após a constatação de sua morte clínica e cerebral, o corpo ficasse congelado numa espécie de freezer, sob a responsabilidade da Phoenix. Em troca, pagava uma taxa anual de manutenção do direito e uma apólice de seguro de vida no valor de 120 mil dólares, tendo a Phoenix como beneficiária.

 

— Para atestar nossa seriedade, saiba que já ultrapassamos a barreira de mil contratos assinados, com onze pacientes internados — era assim que eles chamavam os cadáveres, de pacientes — Só não tenho certeza se o que a senhora pretende pode ser feito. Não me refiro a empecilhos éticos ou legais, esses podemos contornar. O caso é que precisaríamos de algum tempo para tentar desenvolver a técnica adequada ao seu peculiar projeto de eutanásia libertadora voluntária. Tempo e... recursos. Os custos seriam altos.

 

Escrevi sete números numa folha de papel. 

 

— Essa quantia é suficiente?

 

Se olhar de cobiça matasse, o homem teria caído durinho.

 

— Só tem uma condição. Quero ficar “internada” no Brasil.

 

— Sem problema. Desde que a senhora tenha um local seguro.

 

— Acho que tenho.

 

Devo minha tumba a Leleco. Na partilha de bens do divórcio, ele me empurrara a Fazenda da Fumaça, uma propriedade imprestável que de fazenda só tinha o nome, não passando de um conjunto de morros pedregosos onde até capim bravo recusava crescer. Mantive sua posse por pura inércia, preguiça de vender ou talvez porque monastério melhor não existia para chapar em paz de vez em quando. Fora lá que a família Andrade enriquecera, explorando a concessão de uma mina de ouro. O esgotamento dos veios reduzira o emaranhado de galerias subterrâneas a um útero estéril. Contratei um empreiteiro para reabrir a entrada lacrada do túnel principal, colocar o antiquado elevador da mina em condições de uso e restaurar uma das galerias horizontais, construindo na extremidade dela, 600 metros abaixo da superfície, um pequeno refúgio isolado da humanidade. Pronto. Já tinha meu mausoléu. Faltava o outro pronto, o da Phoenix. Enquanto JJ e sua equipe torravam um terço da minha fortuna, um escritório de administração financeira reuniu os dois terços restantes em um fundo destinado a preservar futuro afora a Fazenda da Fumaça. Foi um período de euforia, esse dos preparativos. Eu sorria o tempo todo. Dormia sorrindo, acordava sorrindo, bebia sorrindo, comia sorrindo, sorria sorrindo. Não desfiz o ar besta de contentamento nem quando JJ desembarcou no Brasil com quatro ajudantes, duas toneladas de equipamentos e um sacal e incompreensível blábláblá técnico, que, no fundo, ele poderia ter resumido em uma frase: "Seu corpo ficará mergulhado dentro de um tambor contendo 200 litros de nitrogênio líquido e seu sangue, extraído, será substituído por gás liquefeito". E daí? O negócio era a coisa funcionar. Se funcionasse, podiam encher as veias de leite condensado, vodka, malte escocês, o caralho! Obcecada com uma morte sem sofrimento, eu só queria saber, só me interessava saber, se haveria algum tipo de dor. Até então, opinião de leiga, julgava que me aplicariam uma injeção de morfina e depois outra com uma substância letal, como cianureto ou cloreto de potássio. Nada disso. JJ podia ser um filho da puta ganancioso e sem escrúpulos, mas era também um perfeccionista. Temendo inutilizar sua Gioconda, danificando irreversivelmente meu organismo com uma morte violenta, ainda que indolor, ele decidira me congelar... viva!

 

— Lógico que a sedaremos antes. Não sentirá nada no instante do óbito. A vantagem do método é que a falência gradativa de seus órgãos aumentará a chance deles serem preservados sem danos significativos, principalmente o cérebro, o que pode ser de grande valia futura.

 

Num primeiro momento, a idéia me assustou, mas àquela altura eu não tinha mais nada a perder, só a ganhar. Topei.

 

 

...................

 

 

Então, a morte é assim, uma grande ausência? Nada aqui, nada ali, nada dentro, nada fora? Que delícia!

 

Acomodada à ausência. Tranqüila.

 

Resisto à força que teima em perturbar a acomodação, desmanchar a tranquilidade.

 

A força continua a investir. Descubro, não é  resistência o que ofereço, é desejo de resistir.

 

A força penetra no campo de ausências e me desloca para um ponto que não é para um lado nem é para baixo, então só pode ser para cima. Para o céu? Não, o céu não. Suicidas não vão para o céu.

                                                                                             

Vão sim! Tive um lampejo do céu. É muito frio. Tem luzes. E cheiro de... de...

 

Tive outro lampejo do céu. Estava fresco agora. Vi Deus pelas costas. É magrinho, velhinho, careca e um rabo de cobra sai da orelha Dele.

 

Não era Deus. Era um santo. O céu é cheio de santos e santas. Todos velhinhos, muito velhinhos.

 

Acho que não é o céu não. Ou o céu tem relevos e distâncias e teto e paredes?

 

Virei uma égua com antolhos. Só tomo consciência dos santos quando estão bem na minha frente.

 

Quem será esse de barba branca? São Pedro? E aquele outro, o negro, São Benedito? A mais assídua, ar vivaz e inteligente, só pode ser Santa Teresa de Ávila. A corcundinha impressiona pela expressão resignada de quem sofreu muito. Uma mártir. Santa Bárbara.

 

Eu quero ouvir e quero falar com meus santinhos, mas nada em mim me obedece.

 

Obedece sim! Senão os ouvidos, então a imaginação, pois ouço ou imagino ouvir murmúrios.

 

Uma onda de energia flui em meu interior. Vinda de fora. Alguém me esfrega? Tem mãos me esfregando!

 

Sabe quando a gente tem febre alta e delira? Sabe quando a gente está de porre, porradona mesmo? Quando apaga, acorda, apaga, acorda? Foi assim que fiquei, não sei por quanto tempo, muito, até acordar de vez, aparentemente antes da hora que eles julgaram que eu acordaria, pois apanhei desprevenido o santo de vigília, um que batizara de São Tomé (parecia sempre cético). Deu sede, passei a língua pelos lábios. São Tomé viu, arregalou os olhos incrédulos e saiu gritando.  Acho que só não correu devido à velhice, medo de quebrar os ossos. O melhor é que ouvi os gritos dele, eu podia escutar além dos murmúrios, afinal! E ver o que quisesse, sem a canga dos antolhos! O que quisesse também não, o permitido no ângulo de visão correspondente aos movimentos do pescoço. Pouco, mas o bastante para entender que aquele lugar definitivamente não era o céu. As luzes celestiais não tinham nada de celestiais. Uma delas estava queimada.

  

Senti que podia me mexer e me mexi. Devagar, aos poucos. Os dedos primeiro, depois as mãos, um braço, o outro. Ia experimentar com as pernas, dobrar os joelhos, quando o ruído começou. Vinha de longe, vago, confuso, foi encorpando, avivando, adquirindo nitidez, ganhando ritmo, harmonia, melodia, virando música: "Chegou a turma do funil, todo mundo bebe, mas ninguém dorme no ponto, ai, ai, ninguém dorme no ponto...". Meus santos ressurgiram, cada qual mais absurdo que o precedente, metidos todos em fantasias, um de arlequim, uma de colombina, outro de pierrô, uma odalisca, um índio, um pirata, o diabo a quatro! Parados ao meu redor, envergonhados, gestos tímidos, tentavam sorrir. Alguns até conseguiam. Um sorriso sem graça, forçado, ensaiado. "Nós é que bebemos e eles que ficam tontos!". Vestida de baiana de escola de samba, Santa Teresa de Ávila pousou suas mãos sobre as minhas e disse, emocionada:

 

— Bem-vinda de volta à vida, Eva!

 

Demorei a responder. Demorei mesmo. Antes, precisei engolir o espanto, abafar a surpresa, desembolar a língua e reaprender a falar. Sílaba a sílaba:

  

— Me... euuu... nooo... me...  nã... nã... ão... é... E... Eva...

 

A santa sorriu (os dentes dela pareciam postiços), e reafirmou, como se quisesse me convencer do óbvio:

 

— Eva. 

 

— Eva! — secundou a santaiada, assentindo com a cabeça.

 

Do resto da cena guardei somente a salva de palmas, fragmentos de "perfeito", "sucesso total" e a recomendação do magrinho careca que eu confundira com Deus: "Eva reage bem aos estímulos, mas agora precisa repousar". Havia um lagarto empoleirado no ombro dele. Então era de lagarto, não de cobra, o rabo que saía da orelha divina! Batizei a dupla. São Jorge e o Dragão.

 

Devem ter me aplicado algo porque mergulhei numa nebulosidade gostosa, não intensa quanto o nada tão querido da minha amada ausência, embora igualmente reconfortante. Alguém me esfregava quando saí do mergulho. As mãos de antes. De Santa Bárbara. Entendi a esfregação. Fisioterapia. Massagens para reativar os músculos e a circulação do sangue.

 

— On…de... es...tou?  Que... quem... são... vo... cês?

 

— Terá as respostas no devido tempo, Eva.

 

— Meu... no...me... não... é...

 

— Fique quietinha, relaxe... 

 

Não sei o que Santa Bárbara fez com os dedos ou com seja lá o que for que usou, mas retornei ao conforto da nebulosidade. "Dorme filhinho do meu coração, pega a mamadeira e vem entrar pro meu cordão...". Ei, já estou dormindo, o que querem com essa música? Que eu acorde? Eu acordo. "Mamãe eu quero, mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar! Dá a chupeta, dá a chupeta, dá a chupeta pro bebê não chorar!". Aquilo era tão maluco que senti vontade de rir. O riso saiu em forma de gemido. O gemido alarmou Santa Teresa e São Benedito, que acudiram apressados, ela farfalhando os parangolés de baiana, ele tropeçando na capa de xeque árabe. Ficaram aliviados ao me ouvirem dizer:

 

— O ano... Que... que ano é? — já deduzira que tinha sido ressuscitada, queria saber quando. 

 

— Estamos no século 22, Eva.

 

— Tu... tudo isso? Pu... puta que pariu!

 

Santa Teresa sorriu com doçura. Tive certeza: dentes postiços. 

 

— Por... por que estão... vestidos assim?

 

— Assim como? — perguntou o santo.

 

— Assim... desse jeito.

 

— Ora, é o seu jeito.

 

— Meu!?

 

— Pesquisamos os trajes e as músicas de sua época. Queríamos que despertasse num ambiente familiar.

 

— Só se for da família do Rei Momo — debochei — Isso é fantasia de carnaval! E dos anos 50!

 

Os dois se entreolharam com cara de bunda.

  

— Desculpe, cometemos um erro — disse São Benedito.

 

— Foda-se. Deixa pra lá. Que lugar é esse? Um hospital?

 

— Depois, Eva, depois.

 

Para o depois, que aconteceu no dia seguinte, fui levada numa cadeira de rodas até o centro do que parecia ser o picadeiro de um circo recoberto por um material semelhante à gelatina. Centenas de velhinhos e velhinhas ocupavam as arquibancadas. Enquanto saboreava o suco de laranja servido por uma santa copeira, fiquei imaginando como aquele rebanho de múmias caquéticas teria escalado as arquibancadas mais altas. A chegada de alguns retardatários matou a charada. Elevadores. Eles usavam elevadores. Outra coisa que me intrigou foi a alegria quase infantil da velharada, a estranha ternura com que me olhavam, mistura de fervor e admiração. Sentados na primeira fila, sem as fantasias, estavam São Pedro, Santa Teresa, São Benedito, Santa Bárbara, São Tomé e o restante dos santos meus conhecidos, inclusive São Jorge com seu lagarto dragão. Uma campainha soou. São Jorge se ergueu, tossiu e assumiu o papel de mestre de cerimônias:  

 

— Em nome da comunidade, eu a saúdo, Eva.

 

— Já disse que meu nome não é Eva.

 

Ele continuou como se eu sequer tivesse aberto a boca:

 

— Quer dizer algo antes de começarmos?

 

— Quero. Alguém aí tem um cigarro?

 

Silêncio absoluto.

 

— Tá bom. Esqueçam. Continue, Jorjão.

 

— Tentarei ser rápido e objetivo. Não queremos cansá-la além do necessário. Em primeiro lugar, saiba que não a trouxemos de volta da morte. Você não morreu. Passou por uma espécie de hibernação, uma experiência inédita que poderia ser denominada estado de suspensão da vida.

 

— Mesmo? Te amo, JJ! Seu escroto fodão!

 

Se gritar pro céu alivia, o poder de cura dos palavrões é ainda mais incrível. Só que minha euforia durou pouco, o tempo de São Jorge abrir os braços e me apresentar à totalidade da raça humana:

 

— Olhe em volta, Eva. Somos tudo quanto restou da humanidade. Não existe mais ninguém na Terra além das pessoas que está vendo aqui.

 

— Que onda, cara! Fala sério!

 

— Por favor, não interrompa.

   

— Então pára de dizer besteira, porra!

 

Minha bronca deixou São Jorge sem ação.

 

— A prova! Dê-lhe a prova! — gritaram das arquibancadas.

 

O santo gostou da sugestão.

 

— Abram o escudo! — ordenou.

 

Escutei um rangido seco e a cobertura gelatinosa adquiriu uma consistência vítrea, transparecendo a paisagem exterior. Como definir o que vi? Uma aurora boreal pintada por um Van Gogh delirante? Como não enlouqueci vendo o que vi? Nem dia, nem noite, um véu de trevas borradas por um trançado de clarões verdes, roxos, alaranjados, cor de sangue. Clarões de uma beleza tão assustadora e opressiva que me encolhi na cadeira, tonta como uma pulga diante de um elefante. 

 

— Convenceu-se agora? — perguntou São  Jorge depois que um novo rangido trouxe de volta a gelatina.

 

— O que é aquela coisa monstruosa lá fora?

 

— Sabe o que são prótons e elétrons?

 

— Mais ou menos. Já ouvi falar.

 

— Na segunda década do século 21, uma tempestade solar atípica multiplicou por mil o fluxo de prótons e elétrons vindos do sol. No choque contra os átomos da atmosfera terrestre, nosso campo magnético foi alterado e...

 

E não sei mais o quê. Para quem mal conseguiu concluir o segundo grau, boiava nas aulas de física e se ferrou nos três vestibulares que tentou, as explicações do velhinho não faziam o mínimo sentido.  Só consegui entender que o troço lá dos ótons-étrons virou o planeta de ponta-cabeça, matando um punhado de gente.  Os sobreviventes acabaram se adaptando e chutaram a bola pra frente, porém, e aí vinha a parte pior, uma onda de radiação esterilizou todas as fêmeas de mamíferos, tanto os animais como os seres humanos. Nunca mais nasceu nenhuma criança e nenhum filhote de animal de sangue quente.

  

— Sem a reposição natural, as espécies foram se extinguindo — São Jorge acariciou o dragão — Quando os cães e os gatos deixaram de existir,  passamos a usar répteis como bichos de estimação. À medida que a população humana foi envelhecendo e reduzindo, o instinto gregário fez com que nos concentrássemos em determinadas regiões, depois cidades, comunidades e finalmente viemos todos para cá, os que sobramos.

 

— Então vocês são...

 

— A última geração. Éramos bebês de colo na época da tempestade.

 

A pulga continuava tonta ou eu não diria o que disse:

 

— Tudo bem. Se vocês se acostumaram a esse mundo de merda,  também posso me acostumar. Quero saber quando começarão meu tratamento.

 

Um burburinho confuso percorreu as arquibancadas.

 

— Ora, não tiveram o trabalhão de me reanimar só pra mostrar a paisagem nova, não é? Viram os registros da Phoenix, sabem o que tenho. Ou o que não tenho.

Pela cara deles, percebi que falava grego.

 

— Peraí, como me encontraram?

 

— Apesar dos esforços da medicina e da ciência, à certa altura ficou claro que caminhávamos para a extinção total. Representantes de todos os povos se reuniram então num congresso mundial e adotaram providências para amenizar nossos últimos dias. Durante o processo de abolição do sistema monetário, foram achados documentos referentes ao fundo de preservação da Fazenda da Fumaça. Através deles, chegou-se até seu corpo congelado. A partir daí, o mundo inteiro se mobilizou em busca de uma solução para reanimá-la. Os melhores cérebros. Todas as universidades e centros de pesquisas. Você virou o projeto máximo do planeta, Eva, nossa razão de ser, a última esperança.

 

— E... eu!?

 

— Prótons e elétrons têm uma energia quase infinita, mas não o poder de atravessar grandes profundidades. Protegido por seiscentos metros de rocha, seu corpo não foi afetado pela radiação que esterilizou as fêmeas. Demorou setenta anos, mas graças a Deus conseguimos tirá-la do estado de suspensão, pronta para ser fertilizada e dar prosseguimento à raça humana!

 

— Três vivas para mãe Eva! — comandou São Benedito.

 

— Viva! Viva! Viva! — explodiram as arquibancadas.

 

— Agora, três vivas para o bom Deus!

 

Os velhinhos tornaram a pôr os bofes pra fora. Quando o coro acabou, a vontade que tive foi de gritar Deus o cacete, um filho da puta é o que Deus é! Aí, lembrei que não se deve falar mal de quem não está presente e joguei a bomba em cima do clube de Matusaléns:

 

— Vão tomar no cu, idiotas! Sabem por que mandei me congelar? Porque numa noite de desespero, enfiei uma tesoura na boceta e matei o filho que trazia no ventre! Destruí meu útero! Não posso engravidar!

 

A dúvida continua. Baldeio na capital da Porrônia ou sigo direto pro reino da Esbórnia?

 

 

 

(imagem ©peha)

 
 
 
 
 
Jovany Sales Rey. Mineiro de Alfenas, mas radicado em Vitória, é dramaturgo e roteirista profissional de cinema e televisão. Gosta de investir na lavoura dos contos e de cometer atentados regulares à poesia (nos anos 80, chegou ao desplante de publicar um livro de versos, cujo mérito maior foi ter sido prefaciado por Drummond). Milita no movimento cultural, sendo o atual presidente da Federação Capixaba de Teatro. Há 13 anos assina uma coluna  de causos publicada em jornais de Minas e do Espírito Santo. No mais, é normal.