CONCERTO Nº 5

 

Continuei subindo com minha boca sedenta. Parei no umbigo. A ponta da língua amplificava, em meu cérebro, paisagem maravilhosa de cratera selenita. A pontinha da língua detectou sutil ruga que sublimava meus sentimentos.

Saí da cratera. Subi mais. Lentamente. Agora, eu mordiscava. A língua, parece, se envergonhou. Recolheu-se medrosa. Fechei os olhos e meus lábios passaram a fazer biquinho com beijos platônicos aqui e acolá. Desisti dos saltos aleatórios e me fiz ventosa. Como sanguessuga implacável avancei à minha direita, porque pressenti que, logo adiante, encontraria bojo acolhedor. A carne morocha e lisa, ao final do percurso, se intumescia.

Delícia! Havia chegado ao seio esquerdo da garça.

Graça! Garça! Foi assim que a pintei em minha mente quando a vi, de pé, na frente do palco, com o violino e o arco nas mãos. Pernas longas de garça. Tronco esguio. Os cabelos negros, compridos, soltos, chicoteavam de vez em quando os ombros candidamente redondos. Os longos fios não se revoltavam totalmente porque uma fita vermelha os continha em torno da cabeça. A larga fita emoldurava a testa ousada, se aprofundando sob as orelhas, nefertiteando a bela composição facial.

Comprida, ela agradeceu os aplausos do público e deu os últimos retoques na afinação do instrumento. O maestro aguardava pacientemente. O público também. A corda sol estava baixa. A mão esquerda foi à cravelha. O braço direito levantou-se para friccionar o arco na quarta corda. A axila se escancarou para mim pedindo algo.

Afinação perfeita. Graça! Garça! A primeira frase do Adágio de Mozart parecia sair daquela abóbada axilar. A minúscula concha acústica projetava o primeiro acorde perfeito maior arpejado. Meus olhos seguiram adiante, curiosos, varrendo a pele dos ombros. Chegaram ao monturo levemente coberto pela renda sensual: do mamilo gorducho só se via o formato sob a seda.

Rodeei-o. Vagarosamente os lábios alpinistas resolveram explorar a poma perfeita. No topo, um caulículo cor de rosa me aguardava. Era uma semente rechonchuda. Por um breve momento pensei num pêssego temperamental que tivesse expulsado seu caroço.

Resolvi parar para começar tudo de novo. Reiniciaria o ritual a partir da sola do pezinho esquerdo. Recordei-me das pernas longas. Pernas abertas totalmente de graça. De muita graça! Pernas de garça.

Havia sido longo o caminho para chegar até o pomo. Por isso desisti do ritornelo e resolvi seguir adiante. Lábios sôfregos lá em cima, entreabertos, de há muito me chamavam em quase silenciosos melismas. Os pequenos gemidos tinham o mesmo contorno das sensuais apojaturas inferiores do outro Adágio: o que antecede o Tempo de Minueto do final.

O pescoço da garça também era longo. Fechei os olhos e transportei-me aos aposentos de Nefertite. Escolhi um tempo em que Akenaton e seus soldados estivessem bem longe dali. O longo pescoço permitia-me desfilar meus lábios contínua e ritualmente até a orelha perfeita. As dobrinhas desta também eram perfeitas, macias, doces. Nas curvas sinuosas senti alguma organização fractal. Mais um gemido melismático ecoou no quarto quando fiz a curva na dobrinha superior.

A fila era sinuosa mas não era muito grande. O estreito e longo corredor serpenteado que levava ao camarim era um tanto quanto abafado e deu para sentir o bolor do velho teatro. Chegou a vez da velha emperiquitada que estava à minha frente. Fiquei nervoso. Deu-me vontade de esganar a esnobe senhora quando percebi que ela era parente da solista e que a conversa entre as duas ia ser longa.

Mas, enfim, chegou a minha vez. Ao despedir-se da velha chata a linda concertista sentou-se de novo à mesa, preparando-se para mais um autógrafo. Senti-me um qualquer. Mas ela levantou o rosto e fixou seus olhos nos meus. Levantou-se. Cumprimentei-a quase que niponicamente, apertando sua mão virtuose e curvando-me totalmente submisso, estonteado com a beleza de seu rosto que irradiava sublimação.

Gaguejei inicialmente, mas logo me recompus para construir frases elogiosas quanto à sensibilidade daquela garça sensual. Falei de sua técnica, de seu fraseado, de sua interpretação, de sua incorporação completa do espírito mozarteano. Meus olhos desceram de seus olhos rumo ao nariz afilado. Baixaram mais ainda até os lábios carnudos entreabertos e tive que me recurvar outra vez para disfarçar o volume repentino que se formava em minha calça: intumescimento inoportuno.

Elogios rasgados poderiam dar a entender bajulação. Então resolvi atacar com crítica velada. Eu era sincero. Lamentei a cadência que ela incluíra no segundo movimento e ela não demonstrou desagrado por minha observação. Pelo contrário, concordou dizendo que também não gostava.

Falei-lhe de cadência maravilhosa que eu tinha em meus arquivos, escrita por Pierre Lantier. Os lábios carnudos se abriram em sorriso luminoso. A voz maviosa da garça abriu-me de imediato um clarão de estratégia marota: ela já ouvira falar da cadência de Lantier e, há anos, buscava meios de conseguir uma cópia. Fui além. O sorriso luminoso dessa vez aconteceu em meus lábios: comuniquei à bela violinista que eu tinha uma gravação da cadência na interpretação do próprio Lantier.

Era verdade. Na minha coleção de fitas de rolo lá estava o importante documento sonoro: a gravação que eu fizera com meu velho Grundig, em 1950, no Conservatório de Paris. A fita não era rebobinada a mais de duas décadas, mas estava boa.

As penugens que saiam por trás da fita atrapalhavam um pouco minha exploração lingual. Peguei delicadamente a ponta da fita vermelha e fui abrindo caminho. As penugens, num débil sopro, se afastaram da curva interna superior. Ao leve sopro e à leve carícia de minha língua, corresponderam imediatos novos gemidos rosáceos. A mão da garça, aquela mesma cujos dedos compridos se esculpiam sobre o espelho do violino, apertava minha parte tumescente que latejava. Minha língua mais uma vez titubeou e recolheu-se porque fui acometido de dúvida perturbadora. Percebi que os lábios, todos eles, se abriam mais ainda. Senti que ela queria levar a apropriação de sua mão a seu interior, mas eu não sabia por onde.

As aberturas e as introduções sempre me intrigaram. Na hora do concerto público elas dão início à obra. Mas as grandes platéias desconhecem o fato de que os compositores sempre deixam a abertura para o final. A introdução também.

Logo a morte de seu pai, em maio de 1787, Mozart começou a compor sua ópera Don Giovanni. Quatro meses depois a obra estava pronta. Mas poucos sabem que a Abertura só veio a ser escrita em outubro, durante a viagem do compositor e Constanze, rumo a Praga, para os ensaios e a estréia da obra.

A Introdução do Concerto Nº 5, em lá maior, para violino e orquestra, também foi deixada para o final do trabalho. Só depois de se impregnar da temática inteligentemente desenvolvida nos dois movimentos, Mozart se debruçou sobre os pentagramas para escrever a introdução em que despedaça, em staccato, os arpejos do acorde perfeito maior alternados de ágeis cascatas de semicolcheias. Esses detalhes musicológicos afloram aos olhos de qualquer curioso que tiver a oportunidade de percorrer as entranhas de Viena e Salzburg, visitar bibliotecas secretas e consultar manuscritos.

Consegui convencê-la a acompanhar-me até minha casa quando falei de minha biblioteca e de minha coleção de manuscritos e gravações raras. Uma frieza invadiu meu corpo, desintumescendo toda minha existência, quando ela informou-me que sua tia a acompanharia. A velha emperiquitada que quase esganei também colecionava partituras raras e certamentetambém se interessaria pela visita.

As duas arregalavam os olhos enquanto folheavam, com delicadeza exagerada, os amarelados manuscritos de minha coleção. O original de 1950, em que a pluma de Lantier se revelava trêmula, arrancou uma esnobe interjeição da velha de presença importuna.

Peguei meu celular e liguei para meu amigo Adilson, avisando que uma amiga estaria em sua loja de reprografia dentro de poucos minutos para tirar cópia de uma partitura preciosa e antiga. A cópia teria que ser feita com o maior cuidado, com o original sobre o vidro. Reavivei a memória de Adilson sobre o original de minha certidão de nascimento que sua máquina amassara na semana anterior, quando as roldanas da copiadora puxaram e engoliram o papel.

Para convencer minhas duas visitantes com relação a meu cuidado e às minhas preocupadas recomendações, tratei de caminhar de um lado a outro da sala enquanto falava com Adilson. Afastei-me então suficientemente de minhas curiosas ouvintes, para, em voz muito baixa, dar as últimas instruções a Adilson: — Faz as cópias muito lentamente. Segura a velha na tua loja durante uma hora no mínimo! Tenho assuntos importantes e reservados a tratar com a sobrinha dela que está aqui. Alega a necessidade de esmero e lentidão. O original é precioso e ela tem que ficar esperando. Oferece conforto, sucos, poltrona, biscoitos, livros, revistas, café…

Livros estavam amontoados por cima das fitas. Eu olhei para a fita que me interessava. Fingi não vê-la. Levei a mão ao queixo. Fiz-me de pensativo. Levei um dedo aos lábios. Um dos livros tinha a orelha aberta encobrindo a fita que eu buscava. Levei a outra mão à orelha. Ela fez menção de ajudar-me na busca. Arranquei a fita do emaranhado. Ela sorria percebendo o grande achado. A fita de rolo se escancarou aos nosssos olhos pedindo para ser tocada. O rolo da fita guardava preciosidades de néctar musical. Ela apertou o rolo contra o peito, demonstrando ansiedade, paixão, expectativa e desejo.

A campainha insistente acabou me acordando. Era a velha de volta. O som de um violino vinha de longe. Reconheci a cadência de Lantier. Levantei-me assustado e dei-me conta de que estava de meias e nada mais. A campainha insistiu durante o minuto em que me vesti.

A amável senhora devolveu-me as partituras originais toda risonha e grata. O violino continuava a soar dietro la scena. Vinha do banheiro.

A belíssima virtuose gastou cerca de dez minutos para descrever suas impressões sobre a cadência que ela tanto buscava. Disse que a reverberação do banheiro amplo dava colorido especial à peça. Disse que descalça podia melhor sentir a ressonância das cerâmicas no chão. Disse que os seios libertos vibravam a cada reflexão dos acordes nas paredes. Falou da dificuldade na execução das cordas duplas do décimo terceiro compasso e que um acesso de raiva justificava a calcinha jogada no chão da sala. Disse que estava nua porque o vestido cheio de rendas impedia que sua pele recebesse as reflexões sonoras que os azulejos das paredes produziam. Disse que a fita vermelha tinha sido jogada a esmo, talvez no quarto, quando, ao ler o trinado do final, sentiu vontade de desgrenhar os cabelos.

 

 

(Menção honrosa no concurso de contos "4º Literaturwettbewerb Xicöatl Wolfgang Amadé Mozart", Salzburg, Áustria, 2005, promovido por YAGE Verein für Lateinamerikanische Kunst, Wissenschaft und Kultur)









no gramado

 

no chão repleto de capim-cheiroso

me tocas, me lambes, não me dás trégua

parece que estás em eterno gozo

augè levàicasni amu ed egua            

 

com esta tua dança me arrepio

arfante eu viro o jogo em cada mama

lamento muito se teu corpo esguio

amarg atsen otrofnocsed agrama

 

o mato espeta mas ficas de quatro

um grilo e um sapo se arrumam em fila

nos olham como quem vai ao teatro

alibis ortuo atnac mu snob sibila

 

os insetos cessam a melodia

e eu brocho com moleza progressiva

então noto que o som em demasia

aviva em acisùm :res uem aviva

 

o cd-player que se abre em sorriso

trarei à grama, cansou de motel.

no próximo encontro sei que preciso

levar ed ocsid eleuqa ravel

 

 

 

 

 

 

quando levas

 

 

eu gozo

quando levas

a tarde pensando em mim

quando levas

rahlo ecod on soirètsim

 

eu gozo

quando levas

as botinhas ao motel

quando levas

oproc on emerc osotiel

 

eu gozo

quando levas

uma quadrinha de cor

quando levas

ahniclac anif e asor

 

eu gozo

quando levas

o nosso amor muito além

quando levas

acob á ohlarac uem

 

 

 

 

 

 

demora

 

ao chegar liga o rádio e vai ao bar

observa os vinhos e todo o estoque

música caipira passa a buscar

(outra morena prefere ouvir rock)

dou-lhe sexo sem pressa, devagar

!razog a aromed ale omoc

 

a loura diz que somos belo par

leva seus discos e quer que eu os troque

diz que Mozart é melhor pra se amar

prefiro Ravel mas vou a reboque.

faço tantas carícias que perco o ar

!razog a aromed ale omoc

 

a mulata vai a qualquer lugar

aceita qualquer canção que eu coloque

pergunta se eu agüento pernoitar

se arrepia toda ao mais leve toque

fico a noite toda a lhe fustigar

!razog a aromed ale omoc

 

a magra e branca modelo do mar

na praia fitou-me em raios de choque

no motel ela me excita no olhar

fica em cima por mais que me sufoque

new age é sua música de amar

!razog a aromed ale omoc

 

a bela negra bunduda do lar

cabelos ruins mas longos em coque

correta no adoçar e no salgar

perfeita em pastéis, em massas, em nhoque

sou duro atrás, por baixo e ao galopar

rijo por qualquer ângulo que a enfoque

!razog a aromed ale omoc

 

 

 

 

 

 

Sagedan Saleb, a jovem e doce árabe

 

quandi vi seu largo sorriso

anigav aus iezilatnem

alcei vôo até o paraíso

anidrus me odnahlugrem

 

eu beijei os seus lábios espessos

soibal sednarg sues iema

bem ornados de vis adereços

lausnes atimes adaodnema

 

segui um tanto cambaleante

soies os evel odnacot

embora tonto fui adiante

ojesed olep odarutrot

 

satsoc ed uocif uorig ale

sagedan saleb sa ietsiva

eram duas montanhas e um vale

que então se afogaria em saliva

 

augnil etneconi ahnim ietliva

adentrando a caverna secreta

golpeei a vergasta furtiva

odimeg osoivam rivuo eta

 

agrev artuo a uiv ale sam

arfante tateando com mão-boba

assumiu papel de cortesã

eteira o atnedes uohnacoba













na banheira

 

sei que firo quando sob o edredom

me esgarças, mordes, me dás no divã

soicifiro suet so oriferp otnatne on

megassamordih ed ariehnab an

 

meganacas atse es somairirros

negasse morte e existência malsã

me enlaça morde e me amarra em cirros

megassamordih ed ariehnab an

 

ali a inábil bebe-me em muitos goles

ali enrabo a musa em bom combate

ali em nádegas brancas me engoles

ariehnab an ale moc anrom edrat

 

aipse egnol ed meuq êv a asoria

seca e lacônica em cada mensagem

séria e taciturna no dia-a-dia

megassamordih ed ariehnab an ágeim

 

 

 

 

 

 

cum shot

 

larga testa atset agral

narizinho arrebitado

lanis de santo graal

deusa vista de lado

aumenta meu apetite

o sêmen berra e jorra

odatiberra ziran

pescoço de nefertite

é maquiagem que borra

esperma no rosto maçã

no rosto pequeno sinal

anigav opit soibal

 

 

 

 

 

 

canto de relaxar

 

não olha, não mexe, não tira,

os lábios eu mesmo alcanço

meus dedos são hábeis na lira

entrega teu corpo ao balanço

no vento, em ondas e abrolhos

reage, entrega-te ao toque

sohlo suet erba megaroc

 

espera, tu gemes à toa

eu ouço o teu balbucio

teu âmago te atraiçoa

percebo que és gata no cio

aceita o delírio bem louca

libera-te mexa-te joga

acob a erba aroga

 

concentra o baloiço do mar

pra quê esta cara de dor

é pleasure que quero te dar

eu canto alegre o amor

so happy em loas eternas

relaxa bem frouxa e suave

sanrep sa erba somav

 

 

 

 

 

 

depilada

 

a doce pele com sons resulta

o idílio pede uma musa euterpe

que apalidece na fenda oculta

adaliped ecov oriferp

 

eu te quero lisa e bem macia

a ti cubro em dança de titã

até cabe uma coreografia

atecob aut ad azeicam

 

anima-me olhar o fruto lírico

amei guardar a cópia xerox

a mim dá a pensar vôo onírico

ahnidapsar meb atoxox

 

bem moderado sou cão raivoso

meus dedos rosnam em alvoroço

abro reino e o mar em dedos ouso

mordo o durazno rumo ao caroço

 

à deriva um vale cor-de-rosa

o odor leve faz-me in love grogue

o dedo leva a língua gulosa

adaduleva avluv an ozog

 

 

 

 

(imagens ©chromacome)











Jorge Antunes
(Rio de Janeiro-RJ, 1942). Maestro, compositor, um dos nomes mais representativos da vanguarda musical brasileira, precursor da música eletrônica no Brasil, artista plástico, ativista cultural e político, ganhador de vários prêmios nacionais e internacionais. Mais em sua página pessoal, aqui.
 
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