
— Porque me lembro,
responde Za, com a cabeça nos últimos dois anos, que ao cabo contam com
outros tantos e totalizam sua idade de então treze anos. quando desses
seus treze anos, Za ainda não tem a cabeça nas atividades exercidas por
seu pai Az, que cuida de uma empresa que fabrica e vende gelatinas, e
que agora inova ao produzir gelatinas com sabor natural de abacaxi e
prepara uma grande campanha de marketing explorando também a
incapacidade dos outros competidores e dos que não podem comprá-la. O
avô de Za, cujo nome é também Za, diz a ele, depois de quinze anos, que
o boi-marmanjo está no pasto esperando a vaca-mu, cheio de proteínas e
enzimas, ou peptídeos, e dirige pela estrada de terra enquanto Za, o
neto, está ajoelhado no banco de trás, apoiando-se no pequeno beiral de
borracha preta da janela com seus dedos miúdos e rindo da marca de óleo
que seu nariz deixa no vidro. Za, ainda antes de se casar e ter Az,
corre todos os dias de manhã porque sonha-se velejador e acha que, como
todo esportista, deve prezar pela saúde e pelo condicionamento físico e
de lambuja, acrescenta, vai se acostumando com o vento batendo na cara.
É daí que vem seu sorriso que parece conviver com ele desde o nascimento
e seu cabelo propositalmente grande que o ajuda a sentir o vento. Sua
alimentação é somente de coisas que vivem no mar ou próximas a ele,
ainda que Za, o neto, viva a oitocentos quilômetros da baía dos
velejadores, conforme conta Az. Za come peixes como o namorado, o atum,
a cocoroca, o espada, as manjubinhas fritas, as postas de garopa, os
anéis de lula fritos, camarões, arroz com pitu e até robalo e salmão
crus. Caranguejos e siris Az diz que é muito prático para eles e embora
sejam saborosos prefere os filés, seguidos pelas postas com cartilagens
e espinhos, estas precedidas pelas lagostas e pelos camarões grandes,
mas empatando com os camarões menores. Za, avô, brinca, dizendo que
hierarquia é coisa dos militares e, ao que consta, não há velejadores na
marinha do país e que, ademais, ninguém da família é militar, embora
queira isso para si mesmo quando for mais novo. Imagina-se o peito
estufado por baixo do uniforme branco propositalmente justo, uma
credulidade verdadeira nos propósitos aos quais serve sua nova
juventude, segundo-capitão da esquadra de vela da marinha, molhando o
uniforme com a água salgada que espirra quando prensa e puxa o cabo pela
sua mão firme de marinheiro. Za diz que aquilo é bobeira, que há muito
que se fazer a oitocentos quilômetros do mar, pelo que o informaram, e
que comer bois seria mais prático. Todos estão sentados à mesa e engolem
a seco, porque no mar a água não deve ser ingerida, é o que testemunha
Az, cinco anos mais tarde, e então resolve voltar para a mesa com uma
garrafa de vinho branco seco para combinar com a decoração da sala e com
a sobremesa de gelatina de abacaxi natural, resultado de uma briga que
não conta princípio entre a natureza e a natureza, e da qual se prepara
para receber todos os prêmios que devem ser concedidos a inventores de
invenções desta proporção, embora cogite recusar alguns para bem de
manter seu orgulho com a fome que alimenta o brilho dos seus olhos e a
mesa de Za. Para bem dizer, Za, neto ou avô, conta com o mesmo brilho de
Az, filho ou pai, sem registro de nenhum ofuscamento por conseqüência da
recente invenção, a gelatina natural de abacaxi, vale dizer, sem nenhum
sinal de inveja. Invenção, mas não descoberta, porque esta última é a
derrota ou a assunção da pré-ignorância, e aquela a vitória, um passo,
para diante ou para trás, para cima ou para baixo, para o futuro ou para
o passado: um passo. E sendo vitória da natureza por cima da natureza,
não há que acusarem a empresa, nem Az, de humanismo ou capitalismo
exacerbado ou cego, nem de modificador das leis natureza, embora burle
algumas aos olhos de uns; é que na verdade sua invenção alcança uma
jurisprudência para hierarquia acima destas leis, que assim não valem
mais. É, portanto, muito mais do que vem a ser, como toda obra-prima, e
é inclusive combatida por Za. Isso por ocasião de uma palestra de Az,
que, sentado por detrás da mesa formada pela junção de pequenas mesas,
ao centro, com os braços muito bem apoiados nos cotovelos e as mãos
cruzadas, dois microfones ao centro, ele menciona a palavra hierarquia,
que, no justo momento em que é finalizada nos alto-falantes da sala de
conferência, ruboriza-lhe e lhe aparece na mente em todos os anos
passados e futuros como uma estampa em marca d'água na película do
tempo, na qual veleja Za, bradando contra os militares que não o aceitam
por ser velho demais, ou novo demais, ou que, aceitando-o, não o
permitem ingressar na esquadra de vela, ou recusam-se a criar a
moderníssima ou tradicional esquadra de vela da marinha — o que lhe faz
infeliz. A toalha branca da mesa do palestrante se empunha nos fios dos
microfones, toma os pés da grande mesa, iça-se vela e cabos e mastro, e
casco com os tampões, e veleja, sob um vento que zune na quilha e nos
cabos dizendo a palavra hierarquia bem pronunciada em todos idiomas,
inclusive no idioma dos animais e das plantas, e atrás se enfileiram os
filés, as postas com cartilagens e espinhos, que são ultrapassadas pelas
lagostas e pelos grandes camarões, os vinhos brancos, a decoração, o
amor, a felicidade, e assim vão dezoito anos, voltam vinte e três,
depois mais trinta e tantos, até serem mar e céu e tempo, flutuando em
uma gelatina com sabor natural de abacaxi ruborizada artificialmente —
Por que viver?
(imagem©m volk)
João Pedro (Itajubá-MG,
1983). Escritor e advogado, formado pela PUC-SP. Viveu algum tempo
em Istambul. Mora em Itajubá. Escreve o blogue Que Sei Eu Do Quê.
|