borboletas equilibram-se no espaço

À Nina e João

Eu vendo minha impermanência
feita nos círculos que crio,
a cidade que ando, a cidade que não ando,
o sono desperto na idéia do grafite frio,
e penso:


Yvo era um tipo de ombros estreitos,
desconfiado de si para além de qualquer outro.
Quando pediu à máscara esquecida na mesa

para ter poder — e mais do que isso, para irmos ao ponto — ser respeitado,
o fez de maneira cômica e descrente.
— E para que poder para mim?
Mas quando voltou-se para a rua,
depois de passar a chave na porta da Rua dos Douradores,
deixando o cargo de guarda-livros para o dia seguinte,
foi cumprimentado com delicadeza incomum pelo forte e espalhafatoso senhor Go.
Disse, mesmo, interessado, enquanto parecia enrolar os bigodes:
— Lhe foi bom o dia hoje, senhor Yvo?
Yvo lhe respondeu que sim e,
como não esperava tamanha corte vinda do senhor Go,
desvencilhou-se de maneira breve e apressada,
parecendo, mesmo, seco para quem o visse pelo outro lado da calçada.
A sensação era bastante estranha e,
antes que houvesse tempo de Yvo olhar para trás,
para confirmar que era o próprio senhor Go quem o havia entrevistado,
o senhor dono da loja de relógios correu em sua direção.
— Senhor Yvo, estava nesse instante, mesmo,
conversando com o senhor Go sobre o senhor,
disse a Yvo o dono da loja de relógios apertando-lhe a mão fraternalmente
— Trouxeram-me uma peça hoje que imagino que o senhor há de gostar.
Existe uma pequena história sobre ela
e se o senhor me dá o prazer,
hei de lhe contar.
Yvo inclinou a cabeça levemente procurando os olhos do dono da loja de relógios.

 

 

 

 

 

 

chuva

 

No parapeito baixo
da janela rosa,
algumas gotas cantoras
subiam depois de tocar
a terra branca e a grama nova.

Aproveitando o dia claro,
outras gotas davam à chuva
aulas de brincadeiras infantis
girando em torno de si próprias e
depois deitadas com as horas do meio-dia
no pequeno jogo de descobrir.

Com as asas molhadas sob o sol,
o carteiro assobiava,
fazendo um bico dentro
[da caixa de correspondência,
que era uma sorte
ninguém saber o que há depois da morte
se não era bem capaz de aparecer um filha da puta
dizendo que sabe de que maneira
se deve viver.

 

 

 

 

 

 

pés pequenos e prontos para dançar a qualquer momento

Alguma coisa já dita antes da Terra:
todo o problema é decalcar as palavras da abundância
o inferno não conhece a fúria como palavra
o corpo não conhece o sexo como palavra
o silêncio, o escuro, o tempo,
o azul, o amarelo e o vermelho
não sabem das palavras.

 

 

 

ano 2006. dentro da noite. luz em resistência

 

"a noite com Talita e o jogo da amarelinha, uma encruzilhada de linhas, ignorando-se umas às outras"
J. Cortázar


— Essa euforia na ponta dos dedos tem relação com o final do dia?
— Tem.
— A carne da noite?
— Olha, não sei o que você quer que eu revele com uma isca tão obscura como "carne da noite" mas, sim, é sobre a noite.
— Uma entrada no silêncio e na solidão de uma calçada escondida sob as árvores dentro da noite. Entende o que eu chamo de carne da noite?
— Silêncio e solidão?
— Apesar da cidade inteira do lado de fora.
— Qual a cidade inteira? Porque você vê 30 ou, andando muito mesmo, 50 ruas, você fala em cidade inteira?
— Daqui eu vejo que ela existe, nós sabemos que ela existe... Não para mim ou para você ou cada um dos outros mas, como idéia, ela existe.
— Vamos deixar isso para sua primeira pergunta: ela é para mim, você e os outros, coisas totalmente diferentes feitas das mesmas informações. Ajudei?
— Pelo menos diminuiu a minha — e a sua, ou não? — sensação de perda de tempo.
— Mmm... Só?
— Liberou-me.
— Do quê?
— De dúvidas.
— Sobre o que?
— Minhas próprias energias plenas.
— Você sempre usa essa linguagem obscura?
— Só quando estou tentando criar uma verdade.

 

 

 

flanco aos teus

Pelo tempo e pelos olhares dos outros, senti involuntariamente envolvimentos e desvínculos que nunca tive. Esqueci do seu enterro. Houve gente chorando na calçada? Sem sentido, sem esperar o que, em frente ao velório, provavelmente? Houve conversas sobre quem iria nos carros de passeio, quem esperaria os dois coletivos recém-lavados e miseravelmente cotidianos? Então, não sem a dor que eu possa, por dúvida, estar escondendo aqui, olho que te deixei abandonar-se em uma última vez que eu não conhecia, não sabia sua — não queria ser depositário da sua miséria. Mas esse talhe não é comum e, aqui, alguém precisou ser comum por nós dois — um terceiro; ou melhor, dois terceiros porque mesmo isso esforcei-me em não dividir com você — preferi encarcerar-me na matemática infantil — olhando, se preciso, problemas como equações com enunciados sobre laranjas e bananas. Até quando é uma outra equação destas.

 

 

 

um pouco daquilo

Eu freqüento um bar do centro
Eu freqüento um bar do centro

Quando não falamos sobre lutas e drogas que não se pode usar
Alguém fala sobre bebidas e coisas certas para se comprar
É muito difícil se falar sobre outra coisa aqui

Eu freqüento um bar do centro
Eu freqüento um bar do centro

Você bebe e traga
Como as pombas na saída de descarga
Olhando o ar ruidosamente estúpido que existe aqui

 

 

 

eu te prenderei no meu iceberg

O que se vê sobre a
rua
na massa coberta
pela falta de sentido
em se apertar entre o escuro
da noite,
o branco e o vermelho das lanternas dos carros,
a desesperança
dos que vão
aos montes pelas estreitíssimas calçadas:
os grandes
acontecimentos, se há,
sobem parapeitos construídos com flores
durante o
dia e agitam-se em escarpados
a beira dos mares, soprando promessas
frias,
a noite, porque viver de verdade é algo duro.

 

 

 

 

pletora é...

Demorei um pouco no arquivo. Eu estava, mesmo, cansado. Quando voltei, ainda, me curvei um minuto inteiro embaixo da mesa antes de chamar o próximo caso. — Sr. Édipo. Expliquei o caso o mais rápido que pude erguendo o microfilme contra a luz sem fazer, no entanto, questão que o sujeito entendesse alguma coisa daquilo. — Sr Édipo, no seu caso o senhor, olha aqui, NÃO está cumprindo o SEU destino mas sendo atropelado pelo destino de toda a humanidade. É o que chamam de busca pela perpetuação da espécie. Quer dizer, o senhor está no meio do caminho do "crescei-vos e multiplicai-vos", que é como falam os velhos evangelhos, entende?

 

 

 

nomes de uma casa passada

 

À K. 

 

A.

Trancafio-me numa idéia para fugir de outra.

Sou acanhada. Quero ter apenas a justa medida do perfeito.

Um medo terrível de perceber, olhar, encontrar o que não quero.

Depois tenho culpa por não aproveitar o tempo todo que tive,

e, no entanto, não tive esse tempo; e,no entanto, devo conseguir esse tempo todo.

                                                                                                                                

S.

Vou olhar de dentro de meus óculos minha teoria que preparo para nascer.

Poderia estar com os meus (como efetivamente estou) com uma alegria pessoal e não numa  necessidade alheia que calculo abaixo de um bigode de sete dias tocada em mim.

Até quando teorias? Até quando a vontade de ser um desses livros do começo ao fim — interpretáveis mas definidos e estampados?

 

K.

Existe alguém de sorriso sempre amável? Vamos deixar claro o bastante que era um sorriso calhorda e imundo. A má-fé, onde guardava o que tinha de má-fé senão naquele sorriso, em todo seu corpo magro e quebradiço? E, ainda assim, dia a dia, eu tinha de engrossar um coro não sei se desatento, ou igualmente imundo, em seu desagravo. Só agora, escrevendo isso, vejo que foi ali que passei a me considerar um santo, um homem caminhando para o isolamento.

 

N.

O que preciso é assegurar que tenha algo mais para essas minhas medidas:

uma inflexibilidade festiva

um descontrole vaidoso

uma prontidão calculada

o egoísmo amadurecido

e uma paixão pelo silêncio e pelo tempo que ganha clareza no que virá.

Fábrica de epígrafes, queria falar como posso — mas é pouco, mas é cedo, mas é dissonante e ganancioso, é para que?

Se tentasse assim, aos poucos, ganharia — perdendo idéias demais?

 

I.O.

O poder das coisas não ditas: o barulho, o movimento e o futuro que elas fazem.

Encontrar uma própria voz e uma certeza clara de por onde vou sozinha.

Cada vez mais distraio-me com os cheiros e as cores que aparecem no caminho de uma tentativa de resposta. Então busco o sentido de uma palavra através de seu som e, repetindo-a de formas diferentes, o que consigo é tirar o sentido da palavra, do som e de mim mesma.

 

 

 

 

 

 

à angústia de rimbaud

 

É bem provável que a angústia me faça perdoar
quem dia-a-dia esmaga as próprias ambições.
Há algum porquê em aceitar, com todo o ser,
tornar-se um indigente?
Um fim cômodo é sobre o que sei.

E que um dia de êxito é o bastante
para se ver que não existe nada mais do que
apenas os próprios dias.

Mas há as palmas, os diamantes, amor, força,
todas as alegrias e glórias.
Há todas as partes e todo o mundo.
Deuses e demônios.
A juventude, meu eu.

Há magos e atores,
pessoas que levam presentes a crianças recém-nascidas
e a gente que se engana para acreditarem os outros.

Mas essa mesma angústia que nos torna gentis,
nos faz imaginar que correr para o nosso próprio fim
ou à confusão foi uma opção.

Correr e, sem mais nenhum fôlego,
acreditar que ainda há uma comprida travessa e música.

 

 

 

raio

Por que o receio?
Desnudei meu cérebro à luz do dia:
Ali estavam os tais heróis.
Era deprimente aquilo.
Haviam se afundado, sim,
em busca de uma dose violenta de
qualquer coisa, estavam, sim,
bebendo cerveja já choca
sentados em capengas bancos de madeira,
assistindo a uma cebola ser chutada no asfalto,
e quando o que tinha os pés mais inchados
[se levantou,
tinham longas e edificantes mensagens sobre a vida em que
sempre faltava o verbo, e voltou com um livro sem capa
(era "Uivo", de Allen Ginsberg), uma dor difusa
levou a mão em meu estômago e eu tive, assim,
um dó assustado até de mim mesmo.
Despedindo-se quieta, a angústia,
a pior das palavras, a tal catedral
sem esperança
— Esse é o tipo de luz que
Eu queria encontrar uma ficha, enfiá-la
numa máquina e, de caso pensado, inventar
uma cena.

 

 

 

kavidk

Num dia quente que leva o sol a recuar
meio passo atrás depois de ter visto
o que ele próprio faz aqui embaixo num dia como todos
cansado de gente trabalhando para cima e para baixo.

Um dia que tem desejo próprio: a metade do dia
seja sempre, num dia com gente levando flores nos braços
em cortejo silente.

Não é para meu túmulo ou para os dois velórios
que sei ter havido nessa semana.
Flores para surpreender.
— Os homens têm vontades semelhantes e poderes diferentes?

**

Ouve a história jogando com o ar.
Tem medo de ficar
e se desespera com a idéia de passar.

Chegamos ao sótão escuro,
quartos com papel-de-parede recém-aplicado,
pensões dirigidas por uma sra. Grubach
e também à sarapalha no mínimo tempo de inversão
do dijuntor de uma luz elétrica.

No chão castanho, sobre a grande pedra,
eu a vi doce domesticar o antigo crocodilo.
Eu lia ali: Eu sou a distância dos excessos
Mas sou o próprio excesso.

Ao homem — esse que depende de uma segunda realidade.
E ao telefone — essa invenção que pretende ser dela a missão
de introduzir um conflito novo.

 

 

(imagens ©nanette hooslag)

 

 

 

 

 

Jefferson Alves de Lima (São Paulo, SP, 1975). Está no espaço, no tempo e em seu primeiro livro, que insiste em ainda não ter nome. Está também no seu blogue, A Plenos Pulmões.