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Quando convidado a rascunhar uns artigos sobre cinema nesta prezada página cultural, não existia um Pandit ainda. Assim sendo, uns malogrados filmes foram resenhados e a sétima arte acabou dando lugar ao prolífico Nosso Homem na Índia. Entretanto, todas as lembranças que trago deste último inverno no Oriente não dariam hoje um artigo publicável. Quem escreve, sabe que ter a mente cheia de  recordações não necessariamente significa produzir textos decentes. Há de se lidar com um material bruto, recolhido aqui e acolá, disforme e desordenado. Buscar lapidar, esculpir, num processo único e ao mesmo tempo similar a outras artes. Não saberia explicar. Como não trabalho com ficção e arrisquei escrever somente um poema em toda a minha vida, não conheço o método daqueles que escrevem inspirados pela imaginação. Não sei que forças ocultas moldaram um formidável Bradbury em As Crônicas Marcianas ou, para ficar mais no meu quintal, quantas mentes humanas foram necessárias para a grandiosidade inventiva de um Mahabharata, de onde, costumo brincar, saiu tudo o que há no mundo.

 

Desta maneira, justifico minha entressafra literária e convido-os a uns escritos empoeirados, pré-pandíticos, do início dos anos 2000, mas que trazem em si termos familiares ao universo da Índia, embora as viagens a Cuba, ao Rio e shows de rock sejam o norte. Informais e descuidados. Arrisco uma publicação.

 

 

Do Rio a Havana

 

São Paulo é uma cidade da qual aprendi a gostar. O Rio de Janeiro, porém, me enfeitiçou logo de cara. Chegando, vi uma placa que dizia Se você ama o Rio, você também é carioca. Creio que a idéia é essa, se sentir carioca, com tudo de bom e ruim que isso implica. Fui a Macaé, uma cidade litorânea, compartilhar um pouco de yoga com um grupo que havia me convidado. Foi reservada uma casinha de frente para o mar, geladeira cheia de quitutes vegetarianos, gente muito simpática e hospitaleira. Eu estava me sentindo o próprio embaixador da Índia. Deduzi que eram tão amáveis, porque vivem perto do oceano, com uma natureza exuberante. Deus foi generoso. De volta à capital, bronzeei a segunda-feira nas areias de Copacabana. Andando pelo centro da cidade, me dei conta de que a arquitetura do Rio muitas vezes lembra Havana, com suas ruas estreitas e sobrados decadentes. O povo, que fazia a figuração do meu cenário, era muito cubano também. Acreditei e matei saudades. Quando me recompus, já estava no ônibus, de volta a São Paulo. Pessoas com cara de sono e poucos amigos no metrô da madrugada. Lamentei. O Rio foi um breve toque de humanidade.

 

 

Noites Brancas

 

Primeira Noite - Show do Monokini, sem dúvida a melhor surpresa de 2002. A banda deu o melhor de si e a voz da vocalista soava vencedora através das caixas de som. Foram só 6 ou 7 músicas, mas foi um dos melhores shows que vi. E depois, no momento das congratulações, me dei conta do quanto cada um estava inteiro, presente ao show. O baterista, dizendo que é o retorno, de um só fã que seja, que o faz tocar mais. Atenção plena. Fiquei ali traçando paralelos entre Índia, karma-yoga e a banda. A atitude era muito de curtir o presente, de curtir as pessoas que foram surgindo na estrada. Ninguém falava  de planos futuros.

 

Foi uma aula formidável. O mais bizarro era que havia uma projeção de um vídeo maluco dos Stones atrás do palco, de 68, num circo ou algo assim, e estavam todos lá, John Lennon, Yoko Ono, Marianne Faithful, vestidos com umas lonas de circo. Uma jam não imaginada, Monokini dando uma canja pros Stones.

 

Segunda Noite — Estava então na esquina da Consolação com a Alameda Santos, tomando um invariável suco de abacaxi num daqueles botecos, esperando o Monokini, quando olho para o lado e ali, no balcão, estavam Cadão Volpato e Thomas Pappon (ambos da banda Fellini), tomando umas cervejas.

 

Como já havia ocorrido em décadas passadas, puxei conversa com Cadão, que me informou que está com uma banda nova. Entre outras coisas, descobri que — apesar de todas as referências cubanas no terceiro disco deles — nunca foram à Ilha. Foi tudo porque o Cadão estava namorando uma brasileira-cubana na época. Fala de Havana com propriedade, entretanto. E eu, que no meu feliz exílio, andava pelas ruas havaneiras repetindo os versos de Valsa de la Revolucion.

 

Depois desta nostalgia à la Buena Vista, me despedi e fui ver o show. Antes, uma boa discotecagem. B-52's, Beastie Boys e Belle and Sebastian, só para ficar na letra B. O espaço era muito pequeno, a gente estava praticamente dentro do palco com a banda, mas o show foi competente e deixou todo mundo feliz. Saí realizado, voltei andando para casa, não pensando. Pequenos samadhis da madrugada.

 

 

Sitar SP

 

Da minha motoca, vejo no ponto de ônibus o Marsicano, grande tocador de sitar — um instrumento típico indiano. Cabelos compridos, mas calvo no topo, todo vestido de branco, momento Bombaim, batas e calças esvoaçantes e óculos escuros da Jannis Joplin. Continuei subindo avenida, pensando que poderia ter dado carona pra ele, eu que sou um fã e desconhecido. Parei no farol. Voltei.

 

Marsicano! Quer carona até a Paulista?

 

Vamos subindo a Augusta, e ele me diz que tem um encontro com uma garota num bar, mas que ela costuma atrasar, a ponto de o garçom vir dizer vai pra casa, acho que ela não vem.

 

Daí, começa a dizer o quanto é legal andar de moto, do visual das ruas, do vento na cara, e eu, claro, só faço elogios ao veículo. Às vezes, o táxi sai mais caro que o jantar, conclui. Ri desses motoqueiros de domingo, que compram motos enormes só para impressionar as garotas, mas que no fundo nem sabem pilotar. Olha a cara de idiota desse aí, aponta.

 

Quer saber a marca e o modelo da motoca, e elogia o esmero dos mecânicos japoneses. Reclama das lojas de disco na Augusta e proximidades. Não tem mais jazz nem nada nas prateleiras, é só Padre Marcelo.

 

Desce na Paulista. Agradece como  um velho amigo. Nem sabe meu nome, mas o que importa?

 

 

 

Serviço

 

CDs

Fellini — 3 lugares diferentes

Monokini — Mondo Topless

Marsicano — Impressionismos

 

Livros

Ray Bradbury — As Crônicas Marcianas

Dostoievski — Noites Brancas

(Recontado por Jean-Claude Carrière) — O Mahabharata

 

 

 

 

setembro, 2007