©gandee vasan
 
 
 
 
 
 

 

 

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Optei, neste artigo, pela grafia ioga para o termo sânscrito, uma vez que esse já se encontra deste modo dicionarizado em português, sob a classificação de substantivo feminino, sendo assim também utilizado pela mídia impressa.  Entretanto, ao citar publicações nacionais e estrangeiras que tenham empregado a grafia com y, assim a reproduzi (e.g. Iniciação ao Yoga), assim como quando o termo veio acompanhado de outros em sânscrito (e.g. Bhakti-Yoga).

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Escrever sobre a ioga, classificando-a e reduzindo-a ao plano intelectual, pode ter suas vantagens didáticas, mas a teoria é insuficiente para dar conta de um sistema que os próprios adeptos costumam chamar de "prática".

 

Tenha em mente que a ioga surgiu num contexto muito distante do nosso, física e cronologicamente, e as nossas classificações usuais (filosofia, religião, terapia, ginástica...) não definem adequadamente o termo. Mas, então, o que vem a ser ioga?

 

Comecemos pela etimologia. "Os verbos juntar (português), yoke (inglês), jungo (latim) e joch (alemão) derivam da mesma raiz sânscrita e têm, portanto, o mesmo significado da palavra ioga, isto é, juntar, jungir, comungar, unir, integrar, reintegrar, ligar, religar... O vocábulo ioga deriva da raiz yuj (unir) e mais o sufixo ghyan, significando completar. Portanto, o que for feito para completar a junção de coisas afastadas e rejuntar as fragmentadas pode ser chamado de ioga", explica o professor Hermógenes1. Gharote completa que podemos interpretá-la como a união com o divino, ou mesmo a "integração da personalidade em todos os níveis possíveis: físico, mental, social, intelectual, emocional e espiritual"2. O autor acrescenta ainda que o conceito de integração tem 3 significados:

 

"1 - unir todas as partes;

2acomodar cada parte em seu devido lugar e perspectiva;

3governar estas partes de forma adequada"3.

 

Não podemos, porém, destacar o termo ioga do contexto onde ele surge, ou seja, da Índia antiga e suas linhas de pensamento. Em Yoga, imortalidade e liberdade, Eliade busca situar melhor a definição: "Quatro conceitos fundamentais e vinculados entre si, quatro 'forças propulsoras' nos introduzem diretamente no coração da espiritualidade indiana: karman, maya, nirvana e yoga. Pode-se escrever uma história coerente do pensamento indiano, partindo de qualquer um desses conceitos fundamentais, o que, necessariamente, levará a falar dos outros três. Em termos de filosofia ocidental diremos que desde a época pós-védica a Índia procurou compreender sobretudo: 1o - a lei da causalidade universal, que solidariza o homem com o cosmos e o condena a transmigrar indefinidamente — ou seja, a lei do karman; 2o - o processo misterioso que gera e sustenta o cosmos e, desse modo, torna possível o 'eterno retorno' das existências — maya, a ilusão cósmica, suportada (pior ainda, valorizada) pelo homem durante todo o tempo em que está cego pela ignorância (avidya); 3o - a realidade absoluta, 'situada' em alguma parte para além da experiência humana condicionada pelo karman; o Ser puro (...) o nirvana, etc... e, por último, 4o - os meios para se atingir o Si-próprio, as técnicas adequadas para adquirir a liberação (moksa, mukti) — a soma destes meios é que constitui propriamente a ioga4."

 

Poderíamos resumir então a ioga como um conjunto de técnicas que irão ajudar o homem de hoje, citadino, atarefado com o turbilhão da vida moderna, a obter um estado maior de controle e relaxamento, tanto do corpo quanto da mente. Essas técnicas poderiam, a princípio, resumir-se à realização de posturas físicas (na verdade, psico-físicas), exercícios de respiração e meditação e, também, à observação de algumas regras na vida diária (os yamas e nyamas, algo como "não roubar", "não matar", "não cobiçar o alheio", etc... ou seja, preceitos velhos, conhecidos do mundo judaico-cristão).

 

A ioga não é exclusiva de sábios ou místicos do Oriente; pode ser aprendida por jovens ou idosos, saudáveis ou com alguma enfermidade, homens ou mulheres. Não é uma religião, tanto que há católicos, judeus, budistas, etc., que a praticam pelos mais diversos motivos. Não é uma ginástica, apesar de proporcionar bem-estar e vigor físico ao praticante, tampouco, algum tipo de medicina, embora auxilie no tratamento dos mais variados males, como veremos adiante; nem somente uma filosofia, pois a ioga demanda prática.

 

É muito arriscado ainda pontuar datas quando o assunto é a cultura indiana antiga. A cronologia da História dessa terra e de seu povo carece muitas vezes de dados concretos, resultado talvez das várias invasões pelas quais passaram (e as conseqüentes destruições de muitos sítios arqueológicos) e da própria tradição oral, veículo de toda a literatura védica transmitida pelos brâmanes antes da existência da escrita. Portanto, a origem da ioga será sempre hipotética. Alguns autores calculam sua idade entre 3000 e 5000 anos. Segundo a mitologia indiana, a ioga teria sido criada pelo deus Shiva — do qual foram encontradas imagens em diversas posturas iogues nas escavações arqueológicas feitas no vale do Indo.

 

O primeiro texto a sistematizar a ioga é chamado de "Ioga Sutras de Patanjali". A palavra ioga já havia aparecido anteriormente na literatura indiana, mas é nesse tratado de 196 aforismos que o autor se detém na prática como tal, sem mencionar porém as diferentes linhas ou escolas hoje conhecidas e sem sequer descrever as famosas posturas. Os "Ioga Sutras" surgiram há aproximadamente 2000 anos e pouco se sabe sobre o seu autor, a não ser o fato de que algumas correntes afirmam ter sido ele também o decodificador da gramática do sânscrito, com o nome de Panini.

 

Outro texto de vital importância para a compreensão do sistema da ioga é a "Bhagavad Gita". Originalmente, este livro é uma obra literária, o 63o capítulo do Mahabhárata, o grande épico indiano (e o maior poema épico já escrito, do tamanho aproximado de 15 Bíblias), que conta a história do surgimento daquele povo — mas, filosoficamente, revela-nos muito sobre as bases da ioga e do próprio pensamento indiano. A "Bhagavad Gita" narra o momento exato da guerra de Kurukshetra, quando o arqueiro Árjuna tem de se defrontar com seus próprios parentes e amigos:

 

"Postado entre os dois exércitos

nesse instante Árjuna viu

seus pais, seus avós, seus mestres,

seus tios, seus irmãos, seus filhos,

os seus netos e o seu sogro,

seus entes queridos todos,

bem na frente dos seus olhos"5. (I, 26)

 

Com tal visão, não era de se esperar que o arqueiro quisesse competir. Krishna então inicia um diálogo com seu discípulo, e dessa conversa é tecida a "Bhagavad Gita". Krishna explica a Árjuna os seus deveres e obrigações, principalmente no 6o capítulo, chamado de sankhya-yoga. Nele, Krishna aconselha a renúncia aos desejos dos sentidos, a cessação dos ofícios materiais, a eqüanimidade, a solidão, a meditação, a moderação e a busca do samadhi. O estupefato Árjuna, ao término da "aula", objeta ao seu mestre:

 

"Ó destruidor de Madhu,

esse sistema da ioga

que acabas de descrever

parece-me impraticável,

pois o natural da mente

é ser instável e inquieta.

A mente é instável e inquieta, Krishna,

agitada, turbulenta,

obstinada e muito forte.

Controlá-la me parece

ser ainda mais difícil

do que controlar o vento"6. (6, 33-4)

 

A importância deste capítulo justifica-se pela própria importância do sankhya, que não pode ser dissociado da ioga. "Vejamos agora as filosofias sankhya e ioga, que na Índia são consideradas gêmeas — dois aspectos de uma única disciplina. O sankhya oferece uma exposição teórica básica da natureza humana, enumerando e definindo seus elementos, analisando a forma de sua mútua cooperação no estado de aprisionamento (bandha) e descrevendo sua condição quando desembaraçados ou emancipados na liberação (moksa). A ioga trata por sua vez especificamente da dinâmica do processo de livrar-se das ataduras e delineia as técnicas práticas para se obter a liberação ou isolamento-integração (kaivalya). (...) Realmente vê quem considera a atitude intelectual do conhecimento enumerativo e a prática da concentração como sendo uma mesma coisa. Em outras palavras, os dois sistemas se complementam reciprocamente e conduzem a idêntico fim"7.

 

Além da literatura védica e de outros textos posteriores (como o Hatha Pradīpikā e o Gheranda Samhitâ), linhas filosófico-religiosas como o Budismo e o Jainismo absorveram muito da ioga e a ela trouxeram também alguma contribuição. O que se conhece hoje como ioga é provavelmente o resultado da fusão de todos os ensinamentos dos textos até aqui mencionados e, pode-se dizer que, na evolução dessa prática, alguns aspectos considerados mais relevantes prevaleceram enquanto outros jamais serão conhecidos.

 

Para um hindu tradicional, as orações, o banho matinal no Rio Ganges, o preparo devocional do alimento, as relações pessoais, tudo está inserido no contexto da ioga, ainda que ele não pratique nenhum asana. Ioga é a união com o criador (entre outras definições) e deve estar presente em todos os aspectos da vida. Assim, ressaltamos que as posturas psico-físicas que geralmente conhecemos como ioga são apenas um aspecto do sistema proposto por Patanjali, que se compõe de oito passos:

 

1. Yamas – Basicamente,  são normas referentes ao comportamento do praticante em relação à sociedade. São elas: ahimsa (não-violência, não matar), satya (falar a verdade), asteya (não roubar), brahmacharya (controle sobre os impulsos sexuais) e aparigraha (ausência de ganância, de acúmulo);

2. Niyamas – São normas referentes ao comportamento individual, que consistem em: sauca (pureza, interna e externa), santosha (contentamento), tapas (austeridade, esforço), swadhyaya (estudo e investigação sobre o ser) e ishvarapranidhana (submissão a uma força superior);

3. Asanas – Posturas físicas que estão intimamente ligadas à concentração e meditação. Revigoram o organismo e mantêm a coluna saudável, tão importante para a prática meditativa. Devem ser executadas dentro do conceito de estabilidade e conforto, pois, se houver desconforto, não é um asana;

4. Pranayama – literalmente, é a pausa nas fases de inspiração e expiração (na respiração). São exercícios que ajudam o praticante a controlar seus impulsos respiratórios e obter melhor concentração;

5. Pratiahara – controle dos sentidos ou isolamento dos estímulos sensoriais da mente, buscando a atenção;

6. Dharana – concentração perfeita;

7. Dhyana – meditação contemplativa;

8. Samadhi – algo como meditação profunda.

 

Sendo esta a proposta de Patanjali, consideramos que a idéia, algumas vezes defendida, de que a ioga pode vir a ser tão somente uma ginástica, aliada a contorcionismos exóticos e perda de calorias, merece ser revista. Há obviamente uma melhora geral do organismo através da prática dos asanas, como já expusemos no início deste trabalho, mas não podemos perder de vista que na base dessa atividade psico-física há uma vasta filosofia, da qual a prática não pode prescindir, sob pena de incompletude, ou de se tornar inconsistente. Ainda que só se observem os yamas e niyamas, ou que se esteja buscando apenas o samadhi através da meditação, a ioga é em si um sistema que se propõe a cuidar de todos os aspectos da vida do praticante, sejam eles físicos, espirituais, morais ou psíquicos.

 

A escritora norte-americana de origem indiana Marina Budhos publicou no Yoga Journal8um artigo, dividido em duas partes, dedicado à adoção da ioga pelos estadunidenses (e, conseqüentemente, o processo de torná-la uma moda no mundo ocidental) e como os próprios indo-americanos avaliam essa situação. Um dos primeiros depoimentos é de Rina Agarwala, cuja família veio do Rajastão: "Nos ensinaram ioga sem rótulos. Era parte da vida diária, não podemos separá-la em aulas. Era um dos elementos do puja que meu pai fazia pela manhã. Eu tenho muito respeito por aqueles que fazem ioga, mas às vezes eu acho que é como tirar o malai — o que quer dizer tirar a nata do leite. Você perde uma porção de nutrientes"9. Para muitos indianos, prossegue a autora, a idéia de ioga como ginástica não só é estranha, como também uma ofensa, uma diluição da intenção pura da prática. Citando outros depoimentos, um pensamento unânime vai se formando: "Tudo o que me foi ensinado — não competir, não focalizar a questão da postura perfeita, não me esforçar demasiado, descansar sistematicamente. Aqui o importante é suar numa academia, o que para mim é a antítese da ioga", avalia Siddhartha Jube, um indiano estarrecido com o sistema ocidental de ioga. E acrescenta: "Sou extremamente crítico da maneira como a ioga é praticada aqui. As pessoas só querem melhorar o físico, parecer jovens. Confunde-se a ioga com exercitar-se e com a busca da beleza eterna. As pessoas na Índia não têm corpos lindos nem abdome perfeito"10.

 

Poderíamos prosseguir citando incontáveis depoimentos de pessoas criadas num ambiente impregnado de ioga e que vêem no modo como o Ocidente se apropriou dessa prática algo muito distinto do que conheceram em seu ambiente de origem. Um dos entrevistados conclui: "Competição, comércio, colchonetes, travesseiros, almofada para os olhos, cobertores, tijolinhos, cordas, bermudas, camisetas, roupas de ioga... A ioga se tornou algo que temos de possuir"11.

 

Embora Budhos deixe claro que a Índia não é o lugar mais espiritualizado e pacífico do mundo, com suas ruas abarrotadas de gente, cores, cheiros, ruídos, lojas, além de, periodicamente, ser palco de manifestações violentas, muito do que se quer vender como Índia no Ocidente nada mais é do que uma invenção do próprio Ocidente. E para entender as origens dessa invenção faz-se necessária uma pequena digressão sobre a História da Índia.

 

Após a Independência, em 1947 — até então a Índia era governada pelos britânicos —, muito do mecenato governamental desapareceu. Krishnamacharya, considerado o pai da ioga moderna, foi forçado a fechar sua escola em 1950, devido à falta de patrocínio do maharaja local (em Mysore). Mudando-se para a atual Chennai, reuniu novamente um grupo considerável de seguidores, dentre eles, seu filho Desikachar e outros dois alunos notáveis, B.K.S. Iyengar e Sri K. Pattabhi Jois. Nos anos 60 e começo dos 70, esse trio passou a visitar periodicamente os Estados Unidos, e consideramos que muito do que lá se conhece como ioga se deu em decorrência das viagens que eles empreenderam.

 

A ênfase na perfeição das posturas e do físico encontrou naquele país adeptos fervorosos  e — sem questionar a qualidade ou intenção daquela prática, o que fugiria muito da proposta deste capítulo — veio a resultar na variedade de iogas modernas que hoje conhecemos.

 

Esses inúmeros desenvolvimentos da prática iogue devem ser examinados criticamente e, tendo em vista, de um lado, que as práticas humanas são muitas vezes revistas e transformadas, à medida que migram de seu contexto original para outra cultura. De outro lado, em que pesem as modificações, essas práticas se autodenominam "ioga" e, portanto, não poderiam, a rigor, abandonar os princípios fundamentais sobre os quais originalmente se desenvolveu a ioga A própria multiplicidade de línguas faladas na Índia evidencia o quanto os contatos interculturais operam transformações e adaptações, sendo que mesmo o sânscrito não é exatamente uma língua nativa "sagrada", mas um idioma indo-europeu. Todo o norte da Índia é fruto de invasões, que vão dos arianos, passando por muçulmanos, até se chegar aos ingleses.

 

Entretanto, há um público para o qual a ioga parece ter deixado a aura de modismo que praticantes menos comprometidos lhe emprestaram, para se firmar em definitivo como uma técnica que, exercida com regularidade, pode tanto auxiliar na cura das mais diversas enfermidades, como levar ao samadhi (iluminação).

 

É muito limitador ver a ioga apenas como auxiliar da medicina, ainda que médicos céticos do mundo todo tenham apresentado estudos que comprovam a melhora de muitos pacientes portadores das mais variadas enfermidades, após começarem a praticá-la assiduamente. A partir do final dos anos 90, a imprensa tem publicado matérias de capa, confirmando os benefícios do relaxamento, dos asanas e da meditação. Dentre elas, destacamos a que cita o trabalho do dr. Herbert Benson, de Harvard, que constatou que "60% das consultas médicas poderiam ser evitadas caso as pessoas usassem a sua capacidade mental para combater naturalmente tensões que são causadoras de problemas físicos. A meditação (...) figura entre as maneiras mais efetivas de fortalecer a mente"12. Problemas como estresse, infertilidade, nível baixo de anticorpos, dor, ansiedade, terapias pré e pós-cirúrgicas, problemas na coluna, enfermidades cardíacas e respiratórias, hipertensão arterial, pós-menopausa, disfunção hormonal, entre outros, são tratados com o auxílio de ioga e meditação (embora a ioga não exclua meditação) em renomados hospitais de Nova York, Universidades americanas e até em hospitais públicos de São Paulo, como afirma a mesma matéria.

 

A revista Time dedicou, em menos de dois anos, duas capas ao assunto. Na primeira, propôs-se a explicar as várias correntes de ioga e publicou uma interessante comparação entre os aspectos místicos e científicos da prática — enquanto a primeira parte se centrou nos pranas (energia vital) e no alinhamento dos chakras (centros de energia), a científica merece ser reproduzida na íntegra: "Exercícios respiratórios têm demonstrado relação com a diminuição da pressão sangüínea e dos hormônios de estresse. Alongar o corpo através de várias posturas promove uma drenagem melhor nos vasos linfáticos, o sistema de 'limpeza' do corpo. A manutenção das posturas pode aumentar o tônus muscular, que promove bem-estar físico e protege os delicados ligamentos contra lesões"13.

 

Voltada ao tema da depressão, a capa da Time de 17 de fevereiro de 2003 traz uma modelo em Padmasana (postura de lótus, meditação), propondo-se a explicar: "How your mind can heal your body", ou seja, "como sua mente pode curar o seu corpo". Contrariando o dualismo entre mente e corpo proposto por Descartes, a ciência e a medicina modernas assumem técnicas orientais como aliadas, sem deixar de lado os tratamentos mais tradicionais, como a utilização de drogas e eletrochoques, por exemplo.

 

Atualmente, 15 milhões de norte-americanos e 5 milhões de brasileiros (sem levar em conta o êxito da ioga na Europa) são devotados a essa prática. Os hippies de outrora deram lugar aos yuppies, homens de negócios, advogados, astros de cinema e televisão, modelos, atletas, médicos, surfistas, gestantes, crianças, etc.

 

Os corpos de músculos salientes e bronzeados não se assemelham muito às imagens dos iogues cabeludos, esqueléticos e cobertos de cinzas, que às vezes se encontram às margens dos rios ou em florestas indianas. É certo que o comprometimento e mesmo a prática do homem ocidental atarefado e do oriental inteiramente devotado são distintos, mas a própria diferença entre ocidental e oriental não deve ser tão destacada, uma vez que no caso específico da Índia, a rotina nas grandes cidades como Mumbai ou Delhi não é muito diversa da rotina do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Encontram-se mais academias de ioga na extensão que vai da Vila Mariana ao Sumaré, passando pela Avenida Paulista e suas alamedas, do que no percurso  proporcional que vai de Assi Ghat e Raj Ghat em Varanasi, pelas escadarias do Rio Ganges.

 

Essas discrepâncias atenuam-se, porém, quando vamos à fonte da ioga em seus textos clássicos. Bastaria, por fim, saber que ioga significa "união" e que yogascitta-vrtti-nirodhah (I:2, Yoga Sutra de Patanjali) é um dos seus aforismos mais importantes, algo que definiria a prática como "o cessar das flutuações da mente".

 

Retomamos, a partir dos textos clássicos, a questão das várias "ioga". Citando Rojo: "Ouve-se falar de vários tipos de ioga, dando a impressão de que são processos completamente diferentes, pairando inclusive a idéia de que alguns possam ser mais importantes que outros. Contudo, estes métodos não se contradizem, cada um deles conduz ao mesmo objetivo. Para compreender melhor esse ramos, tem-se de pensar em ioga como meio e como fim. Como meio, existem várias iogas, como por exemplo o 'Karma Yoga', o ioga da ação (...), o 'Raja Yoga' enfatiza mais a meditação enquanto a 'Hatha Yoga' ressalta as técnicas de preparação do corpo como base para a prática da meditação (...) Entenda as várias iogas como caminhos que levam ao topo da mesma montanha"14.

 

Antonio Blay concorda: "Definimos, anteriormente, a ioga como a ciência da união, da integração humana. Nesse sentido, todas as espécies de ioga têm esse mesmo objetivo. O que determina e qualifica as diferentes técnicas não é o seu objetivo, mas seus meios, os instrumentos e mecanismos que empregam, de maneira predominante, para chegar àquele"15. Destacamos a seguir algumas classes ou sistemas de ioga:

 

1. Hatha-Yoga

 

Talvez a técnica de ioga mais conhecida no Ocidente, a hatha-yoga é vista, por muitos daqueles que não a praticam, como uma simples ginástica. O professor Hermógenes assim a apresenta: "A fim de beneficiar a matéria, as energias, as emoções, os pensamentos, a sensibilidade e a conduta moral, finalmente, tudo aquilo que constitui o homem, tem de operar com diversos procedimentos, manobras e técnicas. Seus principais componentes são:

 

a) asanas — posturas do corpo que agem terapêutica e corretivamente sobre todos os sistemas, órgãos, tecidos e funções orgânicas (...);

b) pranayamas — (...) exercícios respiratórios conscientizados e voluntários;

c) bandhas — controles musculares;

d) mudras — gestos para controles neuromusculares;

e) nidras — técnicas de relaxamento;

f) kriyas — técnicas de purificação do meio interno;

g) mitahara — nutrição pura, leve e energética;

h) dharma — conduta ética (...);

i) dhyana — mente concentrada;

j) mantras — sílabas ou palavras de poder"16.

 

2. Karma-Yoga

 

Swami Vivekananda explica do seguinte modo o termo: "A palavra karma deriva-se do sânscrito kri, fazer, toda ação é karma. Tecnicamente, essa palavra quer dizer: os efeitos das ações. Metafisicamente é usada com o seguinte significado: é o efeito provocado por nossas ações anteriores. Porém em karma-yoga só tratamos da palavra karma como equivalente da ação. A meta da humanidade é o conhecimento: este é o ideal unívoco da filosofia oriental"17. Blay acrescenta que a karma-yoga "emprega a atividade externa, a vida ativa, com renúncia progressiva ao objeto da ação"18.

                         

3. Bhakti-Yoga 

 

A raiz do termo está ligada à idéia de devoção, mas uma devoção a Deus ou a alguma força superior. Também se encontram aí as noções de serviço ao próximo e de prema, o amor divinizante. É a ioga devocional, tão bem encarnada pelos Hare Krishnas, que se auto-intitulam devotos.

 

4. Rája-Yoga

 

É a ioga cuja prática utiliza o domínio interno dos mecanismos da atividade mental, segundo Blay. Formada por oito componentes (ashtanga) já citados neste trabalho (dos yamas ao samadhi).

 

5. Jnana-Yoga

 

Jnana pode ser traduzido como "sabedoria", sendo então essa a ioga do conhecimento abstrato e do discernimento, que busca nos liberar da roda de nascimentos e mortes através da eliminação de ajnana, ou seja, ignorância.

 

6. Mantra-Yoga

 

Trabalha basicamente com os sons, tanto externos quanto internos, e com a combinação deles. Nesse sistema, todo som tem um significado, assim como a repetição de orações para os cristãos, muçulmanos, budistas, hindus... Além do possível aspecto devocional, a repetição de mantras leva também a um estado de concentração plena, segundo seus praticantes.

 

Há ainda outras linhas de ioga, como a mal-interpretada tantra-yoga (difícil de se definir, devido ao fato de haver se tornado uma "moda" pan-indiana a partir do século IV da nossa era, gozando de grande popularidade entre as mais diversas correntes, como o budismo, o jainismo, o hinduísmo — shivaístas e vishnuístas — etc., laya-yoga, sarva-yoga, kriya-yoga. Em suas bases, não se trata de sistemas antagônicos, mas suas peculiaridades acabam, não sem razão, por confundir o leigo. Aos ocidentais, sedentos sempre do saber cognitivo, mental, termino com a historinha de um soldado que, em batalha, ao ser atingido por uma flecha letal, cheia de veneno, fica se perguntando de onde ela veio, do que é feita, quem a teria atirado, qual o veneno utilizado, etc., e que dessa maneira, no meio de tantas perguntas, acaba por morrer antes mesmo de ter pensado em agir e buscar ajuda. No caso da ioga, agir na prática é o único caminho.

 

 

 

Notas

 

 

 

 

 

novembro/dezembro, 2006