©mark oatney
 
 
 
 
 
 
 
 

 


 

Em tempos de pandit exilado, conforto-me na leitura de Jean-Claude Carrière. O seu Dictionnaire amoureux de l'Inde me ensina, em um país estranho, a olhar como estrangeiro a própria terra. Nesta espécie de diário de viagens, catalogado alfabeticamente, são várias as histórias que reencontro. Para o presente artigo, introduzo a bizarra gênese de Ganesha.

 

Deus hindu, filho tão somente de Parvati, nasceu sem pai. Sua mãe porém era consorte de Shiva, o deus todo poderoso da destruição. Este, ao retornar à sua casa, encontra o bom e fiel Ganesha a tomar conta da entrada. Parvati havia ido banhar-se e pedira ao filho que não deixasse entrar ninguém. Como não se conheciam, os dois varões iniciaram um combate. Longa foi a luta, exércitos foram convocados, mas Ganesha se manteve imbatível e protetor. Aproveitando-se, porém, de um vacilo, Shiva colocou-se atrás do rapaz e cortou-lhe a cabeça.

 

Possuída por uma fúria descomunal, ao ver o filho decapitado, Parvati ameaçou destruir todas as forças celestiais. Receoso, então, de ser o culpado por um mundo em desordem, Shiva ordenou que se fixasse naquele corpo incompleto a cabeça do primeiro ser vivente que passasse. E eis que era um elefante.

 

Ganesha, híbrido de humano e animal, é o escriba do Mahabharata, que lhe foi ditado-lhe por Vyasa. Como caneta, usou a ponta de uma de suas presas, que sempre leva nas mãos. Em função disso, é protetor dos escritores, poetas e de todos os que se dedicam aos estudos. Como remove os obstáculos, muitos ladrões também lhe são devotos. Dançarino, apesar de seu peso, é um grade piadista e benfeitor.

 

Seu nome quer dizer "O Senhor das Gentes", e é também conhecido por "Ganapati".

 

Curiosamente, seu veículo é um rato. Gosta de quitutes e quase sempre aparece adornado por flores. É o convidado mais popular, quando iniciam-se negócios,  e está sempre presente nos lares indianos. Não foi então com muita surpresa que tomei conhecimento do caso a seguir, narrado por um amigo brasileiro:

 

Depois de tudo planejado cuidadosamente, só me faltava uma autorização judicial para que o meu sobrinho de treze anos pudesse viajar comigo. Entretanto, três dias antes da data da partida, ouvi da servidora da Vara da Infância: — Ora, são necessárias duas semanas de antecedência para a autorização.

 

Duas semanas, o tamanho do problema. Mesmo sendo funcionário público, fui tratado sem nenhum privilégio. Comecei a imaginar uma ferrugem chamada burocracia, corroendo minhas preciosas férias, meus merecidos trinta dias, que logo seriam quinze, de acordo com as contas dela.

 

Após setenta e duas horas de insistência, informaram-me que nada sairia antes do fim de semana. Inconformado, apelei. Resolvi fazer um trato com Ganesha, aquele deus hindu com cabeça de elefante, o que remove todos os obstáculos.

 

Ganesha, o guloso. Prometi-lhe  um mundo de doces se ele me fabricasse, me falsificasse ou forjasse uma autorização para aquela sexta-feira mesmo. Fiquei imaginando aquele elefantinho, com seus quatro braços gordos, andando pela repartição, batendo carimbos e coletando as assinaturas necessárias. Tudo sozinho.

 

Vela acessa. Incensos. Fé. Ao final da tarde, um último telefonema. Do outro lado da linha, um pequeno milagre! E ao chegar esbaforido ao guichê rodoviário, só havia duas passagens restantes.

 

Ganesha, o infalível. Foi assim que começou minha vida de macumbeiro indiano.

 

 

 

 

junho, 2006