O filme que eu mais queria ver na vida era Os Incompreendidos (Les 400 coups, de 1959). Eu  era adolescente, ganhava o próprio dinheiro e tinha um programa numa rádio pirata. Naquele domingo, entretanto, a Cinemateca resolveu passar este primeiro filme do Truffaut, exatamente no horário do programa. Devo ter ido amargo ao ar.

 

Meses depois, fechada a rádio, fiz cursos de locução, aprendi a montar programas e ouvi muitos outros. Queria ser um repórter do mundo da música alternativa. Juntava uns trocos para comprar o New Musical Express e o Melody Maker. Tirei minha primeira nota baixa no colégio.

 

Anos se passaram, deixei de assistir a video-clips, embarquei numa de faquir, reneguei o mundo do pop/rock e comecei a gostar de jejuns. Continuei,  porém, a ouvir rádio. Culpei por isso as eleições, os tsunamis e  as Copas do Mundo. Às vezes, aprendo algo sobre câncer de pele ou fico sabendo daquele curso de reciclagem de lixo no final de semana. Ouço a previsão do tempo, descubro se há uma greve no metrô ou que é bom passar longe dos aeroportos. Hoje, sei conversar sobre futebol com o porteiro. Tendo me rendido às rádios on-line, pude manter-me nômade mesmo em São Paulo, Buenos Aires ou Nova Déli. Há a variada Apna Radio, que toca música indiana, paquistanesa e do Punjabi, e também a BBC, que me mantém informado sobre tudo o que acontece no mundo. Aliás, é a única emissora que conheço que permite aos seus locutores anunciarem que são vegetarianos, quando o são, sem que isso comprometa seus contratos publicitários.

 

Não foi então com surpresa que recebi  um convite para apresentar outro programa, numa emissora  cheia de figurões do mundo da auto-ajuda e alguns outros  charlatões. Nada do Sonic Youth ou Pixies de outrora. Aliás, nem é um programa musical. Um pouco sobre yoga, uma pitada de meditação, dicas para uma vida mais saudável. O meu trunfo é ter levado comigo Sigur Rós e Durutti Column. Hoje eles são a música de fundo do meu horário.

 

Antes de irmos juntos a Índia no começo do ano, entrevistei no ar a Monja Coen. É deste encontro que retiro alguns dos seus ensinamentos budistas abaixo.

 

 

Índia

 

Uma grande expectativa. Comecei a querer ir a Índia há trinta anos, e precisei de todo este tempo para concretizar este sonho. Quando queremos alguma coisa, ela não precisa acontecer imediatamente, vai sendo construída e, quando o momento é correto, acontece. Essa minha ida a Índia é muito emocionante, estou deixando a expectativa de lado para quando chegar lá. Não tenho procurado nem muitas informações, acho que o mais importante é a nossa experiência, o nosso contato direto.

 

 

Nazaré Uniluz

 

Foi uma bênção, eu não conhecia e fiquei muito surpresa. Algumas pessoas já haviam me falado "ah, eu já fui a um lugar chamado Nazaré", mas ninguém nunca me deu nenhum detalhe. Não só me surpreendeu por ser um lugar muito bonito, mas eu voltei dizendo aos meus alunos que o único problema era o "barulho" do local: sons do vento, das folhas, dos pequenos insetos, passarinhos, etc. Tão diferente da minha casa de meditação, que fica bem numa ladeira aqui em São Paulo, com ruídos de muitos carros. Em Nazaré Uniluz temos o Som. E o Som nos faz bem.

 

A comida vegetariana era ótima, começávamos com uma salada maravilhosa (...) e me impressionou muito o fato de serem quartos de dormir individuais: são simples, têm uma cama, mesinha, estante, um banheirinho ao lado, é tudo muito limpo, o chão é rústico, mas é o essencial que precisamos para ter conforto, tranqüilidade, sem extravagância, excessos,  luxos. O "luxo" que temos em Nazaré Uniluz, que é a simplicidade,  é o que  nos coloca em contato com nós mesmos com mais facilidade. Achei isso muito precioso, não há nada que se compare, eu fiquei muito feliz em ir lá e ser bem atendida. É o karma benéfico que nos coloca todos juntos.

 

 

Sesshin

 

A palavra em si quer dizer unificar a mente, tranqüilizar. Na verdade, a nossa mente já esta unificada, mas não percebemos, nos achamos separados, reclamamos da vida e das coisas. Então nós tiramos um tempo, alguns dias, e vamos fazer coisas diferentes das que fazemos cotidianamente. Não vamos levar conosco as nossas preocupações, e não levamos celulares, computadores, rádios, nem mesmo livros, na verdade, a gente se senta (meditação) para olhar para si mesmo, e a base do sesshin é que a gente perceba a nossa própria mente. A mente observando a mente.

 

 

Jornada

 

Acho que a nossa caminhada espiritual começa já na infância. Não tive bem um dia específico de início, mas havia uma procura, um questionamento. Eu cresci numa família católica e então havia a obrigatoriedade de ir à igreja aos domingos. Eu comecei a questionar os adultos, se eles faziam aquilo que pregavam, e com treze anos eu disse a minha mãe que não iria mais à igreja. Mas ao mesmo tempo eu me perguntava "O que é Deus, onde é que está? Por que estamos aqui, onde nascemos, por que nascemos e por que morremos?". E isso ficou até os meus vinte e oito anos de idade, sem que eu seguisse nenhuma religião. Nessa época eu comecei a praticar meditação, plena atenção, sozinha, com livros e programas de televisão. Fui morar na Inglaterra e lá havia muito interesse na Índia e nas meditações, e isso foi despertando em mim uma vontade de meditar, mas ainda sem orientação de ninguém e muito por minha conta. E levou anos até que eu encontrasse a comunidade zen budista em Los Angeles, onde fui morar, e lá comecei sistematicamente uma prática meditativa e espiritual.

 

Eu quis me ordenar monja. O meu mestre era japonês, e depois de muita insistência minha e três anos de assiduidade, ele concedeu. Eu vi um panfleto de um mosteiro japonês feminino e disse que queria ir para lá, e ele disse que eu só poderia, se fosse ficar muito tempo pois não se aceitavam turistas espirituais. Ele escreveu à abadessa comunicando o pedido e ela informou que no mínimo eu deveria ficar cinco anos. Eu concordei, achando que era muito fácil, e que a vida monástica era muito simples. Quando cheguei ao mosteiro no Japão, a Superiora me perguntou: "Você pensa que todos são seres iluminados aqui, que já estão num estágio superior? Somos humanas e temos nossas pontas. A prática é colocar uma porção de pedras num recipiente fechado e sacudir. As pedrinhas vão batendo umas nas outras, as que tiverem mais pontas vão ferir mais e ser mais feridas e o resultado da prática é que a gente fica redondinha, não fira ninguém e não ataque ninguém e nem se importe com os ataques dos outros".

 

Eu achei que era fácil, mas nos primeiros dois anos eu sofri muito pois tinha toda uma expectativa de que era muito simples e houve uma dificuldade cultural, de língua, de gestos, atitudes corporais, que foi um pouco difícil, mas depois que eu entendi, comecei a me adaptar. Havia o sutra da flor de lótus e, quando eu estava muito triste, subia para a biblioteca e o traduzia. Isso me deu muito ânimo. Depois de 2 anos, eu não queria mais sair de lá, e acabei ficando 12 anos.

 

Voltei ao Brasil em 1995, fui morar no bairro da Liberdade e trabalhei no templo da rua São Joaquim, então, de certa forma, fiquei com um pezinho no Japão. Eu me sentia mais japonesa do que brasileira nesta época, e aos poucos fui me abrasileirando de novo. O que fiz neste templo foi abrir as portas a não-japoneses, pois o templo era muito fechado. Acabei saindo em 2001 e abri uma sala de meditação, sem essa separação de nacionalidades (japoneses ou não). Ensinar a meditação sem diferenciar a quem.

 

 

Serviço

 

 

 

 

 

junho, 2007