©john coulter
 
 
 
 
 
 
 
A pesquisadora chegou vinte minutos atrasada e disse que era por causa do trânsito, como se eu fosse besta. Eu sabia que aquilo já era parte do teste, pois quando eles testam a gente, tudo o que perguntam é camuflagem para distrair nossa atenção e reparar em outras coisas: as que interessam para eles. Por isso eu não achei ruim e fiz um comentário do tipo:
 
— Nesse horário o trânsito é horrível.
 
Depois ofereci um copo d'água e isso a desarmou. Comentar que naquele horário o trânsito de São Paulo é horrível e oferecer água num dia quente são duas coisas normais que qualquer pessoa faria, e eu fiz! Hehe!
 
A pesquisadora comentou que a casa era a minha cara e eu respondi muito obrigada. Daí ela começou a mexer nos meus bibelôs e mudou um deles de lugar, para ver se eu teria um ataque histérico e começaria a correr pela casa com uma faca na mão. Eu não fiz nada disso. Disse que ela podia levar o elefantinho. Era um presente. Ela respondeu que era muita gentileza minha, mas não podia aceitar. Perguntei se era por causa das normas da USP e ela disse que não. Então eu coloquei o elefantinho na mão dela e disse:
 
— Leve.
 
Isto provava duas coisas: que eu não tinha asco de pegar na mão dela e que eu lidava bem com perdas. Quando ela me deu as costas e foi xeretar nos meus livros eu ocupei o lugar do elefantinho com um esquilo, que ficava mais para trás, na mesma mesinha.
 
Ela perguntou se eu morava só e eu disse que havia um animal na casa. Eu sabia que se me referisse à Valentina  pelo nome, perderia pontos. Ela perguntou que espécie de animal. Daí ela se sentou na beirada do sofá duro e eu no sofá mole. Eu tirei meu chinelo e cruzei as pernas, para mostrar que não tinha medo dela. Respondi a uma série de perguntas que não vêm ao caso porque, como eu disse anteriormente, eram perguntas de fachada para reparar se meus olhos viravam para a direita ou para a esquerda antes de responder. Respondi a tudo olhando bem na cara dela, sem piscar. Com isso ela teria que rever seus critérios científicos. Hehe!
 
Chegamos nos hábitos alimentares e a coisa começou a ficar tão chata que, sem querer, eu ofereci um café. Eu nunca devia ter oferecido um café. Ela aceitou e me acompanhou até a cozinha. Agora ela ia ver como eu fazia o meu café. Dei as costas para ela e comecei a falar da minha infância. Eles gostam de infância. A jarrinha de vidro da minha cafeteira havia quebrado na semana anterior e eu estava usando uma xícara grande no lugar. Só que eu gostava de tomar mais de uma xícara, de modo que quando uma estivesse quase cheia, eu rapidamente a tirava e colocava outra. O café continuava pingando. Daí eu despejava as duas xícaras na garrafa térmica e dava no mesmo que a jarrinha de vidro. Por isso eu não fui até a Barra Funda comprar uma jarrinha nova. A jarrinha velha quebrou enquanto eu lavava louça e levei um susto. Eu levei um susto porque a filha da vizinha gritou meu nome pela janela, mas até aí, isso podia ter acontecido com qualquer um.
 
— Esse pintinho te marcou muito?
 
O pintinho a que ela se referia foi o da minha infância. Para ser mais específica, ele é o sujeito da minha primeira lembrança. Eu tinha quatro anos de idade e um pinto amarelinho. Ganhei o pinto na feira. Mamãe disse que era para eu devolver o pinto para o japonês porque aquilo ia crescer e virar um frango e a gente morava em apartamento. Não era permitido. Eu respondi que não ia devolver porque era presente e se dependesse da boa vontade dela eu nunca teria bicho algum. No fim eu fiquei com o pinto que nunca virou frango. Ele morreu esmagado pela porta de incêndio que fechou na cabeça dele. Minha vida começa aí. Antes disso é uma mancha escura.
 
— Muito interessante...
 
Ofereci bolo de cenoura com recheio de chocolate para a pesquisadora. Ela aceitou. Perguntei se ela gostaria de um pouco de mel para acompanhar e ela também aceitou. Perguntei se não achava que era demais, recheio de chocolate e mel. Ela disse que não.
 
— E geléia de morango? — perguntei.
 
Ela não entendeu. Expliquei que além da camada de mel, ela podia acrescentar mais uma de geléia de morango.
 
— Ou você acha que daí fica demais?
 
Ela respondeu que daí era demais. Uma vez li numa revista que os pesquisadores devem se manter neutros. Pelo menos com os do Smithsonian é assim. Ela tinha emitido duas opiniões pessoais: que minha casa era a minha cara e que adicionar mel e geléia de morango no bolo de cenoura com recheio de chocolate era demais. Isso, sem falar do elefantinho, que era interferência no habitat do entrevistado. Eu não podia esperar muita coisa daquela pesquisadora. Enfim... Agora não tinha volta. Ela queria ver o armarinho do meu banheiro e eu disse que isso era um clichê.
 
— Pode até ser clichê, mas é muito instrutivo.
 
Fui junto. Ela não tocou em nada. Anotou várias coisas. Durante todo o tempo em que ela olhou para meu armarinho, eu olhei para a cara dela. De tanto em tanto ela me dava um sorrisinho, que eu não retribuía.
 
— Eu sei que essa parte é meio constrangedora.
 
Os do Smithsonian nunca falariam isso. Do armarinho do banheiro ela foi para a lavanderia ver as roupas no varal. Depois pediu para eu abrir a gaveta de talheres e por último olhou a cama onde eu dormia. Eu disse que ela podia bater na parede, se quisesse. Ela respondeu que não fazia parte do procedimento. Mesmo assim eu esclareci que não havia nenhum ponto oco em nenhuma parede e que ela podia anotar isso no bloquinho dela. Era fato que eu mesmo havia comprovado.
 
— Você poderia falar um pouco mais sobre aquele pintinho?
 
Se nessa hora eu olhasse para cima e para a direita, era sinal que eu estava tentando puxar uma lembrança do passado. Mas como vinha fazendo até então, falei tudo o que tinha para falar sobre o pinto olhando bem para ela, sem piscar, em pé e parada no meio da sala. Para isto não há associação. É uma posição teatral, jamais usada no dia-a-dia. Seria muito bom para a USP. Para eles aprenderem. Hehe! Eu disse que a partir daquele dia passei a me vestir de amarelo dos pés à cabeça, até os oito anos de idade. E como eu disse isso sem piscar e com os olhos vidrados, ela não teve meios para saber se era mentira. Ficou em silêncio. Eu teria continuado, dizendo que sentia muita dor quando, diariamente, às onze e meia da manhã minha mãe me mandava tirar o pijama amarelo e vestir o uniforme da escola: azul e branco. Mas ela não quis ouvir. Disse que era suficiente e foi embora. Assim que o carro virou a esquina eu fui para a rua. Tive que correr feito louca. A loja do chinês dos elefantinhos fecharia em quinze minutos.
 
 
 
 
 
 
Índigo Girl é autora de Saga Animal (Hedra), Caixinha de Madeira (Altana) e Festa da Mexerica (Hedra). Seu site: www.jhendrix.net/indigo