©l.m, g.g & s.g.
 
 
 
 
 


 

O sol do outono deita sobre os telhados uma luz cada vez mais dourada e tênue. As primeiras lufadas de vento frio assustam os paulistanos, que já começam a sentir saudade antecipada das últimas descidas pela Imigrantes até a praia, dos últimos mergulhos nas piscinas dos sítios de Arujá, Itapecerica — e começam também a se preparar para o inverno cada vez mais à vista, o qual, segundo o homem do tempo, deverá ser duro como há muito não se vê. Numa casa humilde da zona leste, um pai de família começa a pensar seriamente em trocar o velho chuveiro elétrico por um novo. Numa mansão do Morumbi a preocupação é com a limpeza da lareira. No Centro, mendigos redescobrem os redutos mais protegidos contra a intempérie, insuportáveis durante o verão.

Daqui para frente, nas lojas da Santa Ifigênia, os aquecedores elétricos lentamente voltam à moda. Na 25 de março, os agasalhos assomam nas vitrines. Nos shoppings, os sobretudos denunciam a troca iminente de estação. Nas lojas de produtos de beleza a maquiagem vem com outro rótulo e a vendedora garante que, além de enfeitar, o batom resguarda os lábios do vento gélido e implacável. Há uma moça acanhada que prefere a transparência discreta da manteiga de cacau. Na Angélica, um cachorro de madame, na primeira tarde fria, estréia um agasalho colorido e desconfortável, enquanto, curioso, persegue com o faro o pé de um passante.

A dona de um café, nos Jardins, está preocupada com uma fresta entre as portas de vidro que, ao deixar passar dois dedos de vento noturno, já vem incomodando os fregueses. No Jardim Leonor existe uma sombra fria, atrás de uma casa fria, que abriga a morte fria de uma criança inocente. Para os lados de São Bernardo, uma sorveteria vende menos picolé. Um casal frígido busca um resto de calor, nas noites do Ipiranga. Um só cobertor já não basta para duas irmãs na Penha. Um milionário pobre de espírito, dentro de um carro de luxo, sai à caça de um programa, na Augusta — na calçada semi-escura, a presa, seminua, faz descer o decote, sensível ao sexo, insensível ao frio.

A manhã de outono é diversa daquelas que vinham acontecendo. Às cinco há mais silêncio, às seis há menos cantos de pássaros, às sete, enquanto a janela estremece pela ação de um vento migrante, o velho sonha com a propaganda antiga: "Quem bate?". A brisa arrepiante responde: "É o frio...". Às nove o movimento é célere, os carros passam correndo. Não se iluda com o paulistano das nove, preocupado e insone, ele em nada difere do paulistano do verão ou do frio. Somente o sol não engana e surge meio inclinado, batendo de frente nos vidros, mole, fraco, sonolento. O sol de outono é vadio.

Uma escola no Brás e outra em Cidade Ademar testemunharão graves crimes. Um será ao meio-dia. Outro, depois do almoço. No primeiro, uma servente será ferida. No segundo, um jovem precocemente calvo se despedirá da vida. Ao exalar o último suspiro, uma nuvem feia e úmida escurecerá seu rosto, mas não conseguirá cerrar seus olhos abertos. No pátio, Lucineide, 16, verá quando o corpo do amado for jogado na gaveta do carro do IML. E ficará impressionada com o que acabará presenciando: ao erguerem-no do chão, o sol saltará de entre as nuvens e os olhos do cadáver, vivificados por um feixe de luz, ainda cintilarão. Ela, por não se esquecer da última cena, do epílogo, ficará três dias em vigília e pensará em suicídio. Será salva pela mãe e por um vira-lata bonzinho.

 

 

 

 
 

Ah, se eu pudesse adivinhar o que acontecerá comigo. Ah, se eu pudesse antever o que será de mim no outono, no inverno, no ano que vem, na eternidade sem você. Enquanto de nada sei, pressinto sua imagem no trânsito, caminhando entre as pessoas, falando ao celular, comprando uma entrada de cinema, lambendo um sorvete de coco, bebendo um guaraná. Ah, se eu pudesse explicar por que não segui sua sombra, por que não persegui seus passos, por que não segurei suas mãos, por que não lhe dei aquele beijo, por que não selei nosso amor, por que não a guardei em meu peito, folha, vento, sombra, sonho. Ah, quisera compreender por que não estás em meu ninho e por que sigo tão sozinho no outono de São Paulo.

 
 
 
[Escrito no outono de 2001]
 
 
 
março, 2007