©richard elkins
 
 
 
 
 
 
 


Antes do outono

Bem poderia estar frio hoje. O outono já está aí mesmo, as águas de março já abrandaram o clima. A gente já sente que o corpo adivinha e... Aliás, adivinha, não. Sente os sinais da natureza como um todo, vai mudando até nossos hábitos. De modo que, no outono, a saudade do frio, que atacou também nos quarenta graus à sombra, agora chega de vez. Poderia estar frio. No sertão, de frio raro, qualquer friagem faz tremer. Minha mãe veio do sertão para me visitar. No inverno paulista. Para piorar o que a aguardava, eu ainda morava num sítio em Itapecerica. Da Serra. Foi uma tortura. Ela não conseguia dar um passo normal. Virou um filhote de pardal, aos pulinhos, escondendo-se de um canto a outro do ninho. Da cama para a sala, raríssimas vezes. Havia um lago bem em frente soprando uma incansável brisa gelada em direção às frestas das janelas. Só no inverno a gente nota o quanto aquelas frestas existem. Pediu imensas desculpas, disse que as saudades ainda estavam vivas. E que continuariam, ela e as saudades, se matando mutuamente. Mas que tinha que fugir o quanto antes daquele frio. Se possível, daí a quinze minutos — foi o que pensei. E senti-me derrotado. Tinha espalhado aquecedores pela casa, abasteci-a com uma pilha de bons cobertores. Abraçava-a, aquecia-a. Tratei-a como ela me tratou quando criança. No fim, tive de me conformar em morrer também de saudades. O inverno está chegando e eu já me fecho, vestindo o pijama de flanelinha da infância. Quem dera estivesse friozinho hoje.

 


Química da rotina
"Todo remédio é um veneno", dizia minha vó. Apoiava-se, pendurava a bengala no braço que segurava o apoio.  Aos poucos, escorregava o braço até que desviasse o peso para o cotovelo. Pegava o vidrinho, abria-o, depositava uma pílula na mão. Arrastava-se até o filtro. A água ia enchendo o copo. Tomava o veneno. E sobrevivia.

 


Piada nova
"Um russo, um brasileiro e um americano estavam numa nave espacial...".

 


Coisa de computador
O rádio, o cinema, o telefone, as cartas e sabe-se lá o que mais, vão virando, aos muitos, coisa de computador. A gente está voltando a viver mais tempo em casa, as distâncias vão acabando. Aos poucos, cumpre-se a profecia. Estamos virando uma aldeia. Imensa, porém, aldeia. Em Pirapora, nalgum momento do passado, privei-me por dois dias de freqüentar o Zanzibar. Em casa, aguardava até a noite a chegada de um telefonema. A telefonista tinha prometido fazer o possível. E, todas as vezes que liguei reclamando, apenas reiterou que estava fazendo o possível. Não só ela, como todas as colegas que atuavam nas outras bases por onde trafegava meu pedido. Durante dois dias, tentaram fazer com que um telefone negro, largado no chão da sala de um apartamento no bairro das Laranjeiras, no Rio, tocasse. Por incrível que pareça, quando conseguiram, eu me encontrava no Zanzibar. Não agüentava mais ficar olhando para as paredes enquanto ouvia um disco ou lia um livro ou tudo ao mesmo tempo. E fui ver as morenas na cachoeira. Numa das bordas das corredeiras, a água formava uma cortina que ocultava uma pequena plataforma. Os casais penetravam, sob a cortina, para a invisibilidade. Gostava também de sumir por ali, pra curtir o barulhão, ver a luz do dia filtrada pelas águas do São Francisco. Numa dessas vezes, ao sair, escolhi o mesmo ponto por onde adentrava um sujeito. Nos trombamos, os óculos escapuliram-lhe e quase foram levados pela correnteza. Alcancei-os e os devolvi ao dono, já de cara desconsolada. E cego. A amizade perdura até os dias de hoje. Não há como passar por Belo Horizonte sem dar um abraço no Zé Maria, sair pra apreciar uma cachacinha. Mas, naquela vez em Pirapora, tive foi que abandonar a cachacinha às pressas para atender o telefonema. Vieram chamar-me correndo. A telefonista ficou eufórica quando atendi. Aquilo parecia representar, também para ela, um grande feito. Completaram a ligação. Do outro lado da linha, atendeu a voz quase irreconhecível de Sidney Miller. Quando me identifiquei e ouvi a risada, não tive mais dúvidas. Apesar da transmissão precária, a gargalhada familiar identificava mais do que claramente o compositor — sábio, doce e amargo amigo. Berrou que eu era um cara de muita sorte. Quase entendi que era de morte. Isso eu já sabia. Mas queria dizer que era de sorte mesmo. A prova é que havia se mudado daquele apartamento logo depois que fui embora do Rio. Isso fazia uns seis meses. E que havia passado apenas para recolher umas coisas. Relatamos as mútuas saudades. Custamos a acreditar que estávamos nos falando. Nos despedimos felizes. O mundo ainda não era tão pequeno. E as distâncias mediam dias e dias. Tive mesmo muita sorte. Se a ligação fosse completada alguns minutos depois, o telefone negro teria estrilado à toa. O som teria rebatido pelo apartamento vazio, gritando uma saudade que, no futuro, acabaria também virando coisa de computador. E jamais soaria tão forte de novo.

 

 

Teleorema
O mal da teoria da aldeia global é que a Globo pensa que é em homenagem a ela.

 

 

Mudando de conversa
Sempre fomos diferentes. Eu gostava da noite. Ela, do dia. Eu, bala sabor hortelã ou café. Ela, sabor morango, limão e abacaxi. Ah, e de maracujá. Aliás, maracujá fazia toda a diferença e semelhança. Explico. Embora divergíssemos quanto ao sabor das balas, adorávamos a fruta caiçara, tropical. E também da planta. Gostava de ficar apreciando aquelas flores amarelas, enramalhadas na cerca do jardim da casa. Enfeitando o breu da noite, evidente. Inclusive, uma caipirinha de maracujá era a única coisa no mundo capaz de me animar a curtir a luz do dia, num barzinho de praia, juntinho com ela, ouvindo as ondas. Nossas afinidades, porém, paravam por aí. Até que tivemos uma longa conversa sobre música e poesia. E política. E crenças. Discordamos sobre o placar entre Moisés e Maomé. Concordamos, porém, numa coisa. Política faz mal à religião. Incrível como uma boa conversa é capaz de arrumar tudo. Ainda mais quando há divergência sobre um assunto e ela acaba revelando uma base comum coerente, uma identidade, uma harmonia. As atitudes mudam. Depois disso, por exemplo, não importa que ela ache, e eu não, que a caipirinha está muito doce. A gente sempre se une no adoçante.

 

 

Chinelos da humildade
É muito estranho ser artista. Outro dia, na televisão, Cauby Peixoto estava sendo entrevistado. Fiquei sabendo que está morando num hotel, no centro de São Paulo. Que quase sempre mora em hotel. E que normalmente está vestido daquela forma, mesmo quando precisa apenas descer rapidamente à portaria. "Eu me visto como um artista. Eu sou um artista". Trajava um colete com brilhos e paletó de estrasses. No entanto, também afirmou que, quando não está à vista, veste uns chinelos velhos. Ontem, achei no bolso de um casaco que não usava faz tempo (chegou o frio, ótimo), um guardanapo de bar em que se lia um recado escrito com letra caprichada: "Gostaria que soubesse que somos seus fãs. Obrigado por tantas músicas lindas que acompanham nossas vidas!!!". Assim mesmo, com três exclamações. O apresentador Raul Gil, que freqüenta o mesmo restaurante que eu, toda vez que me encontra, diz que não percebo que sou um mito. Mas o que deseja mesmo dizer, tenho certeza, pelo jeito que sempre me olha, é que eu deveria aparentar mais ser um artista. De preferência, assumir vinte e quatro horas por dia meu papel. Não suportaria. Mas, depois de saber que até Cauby às vezes precisa trocar o estrasse por uns chinelos velhos, calço meus tênis surrados achando que ainda tenho chance.

 

 

Imundo fashion
A modelo da direita, veste quatrocentos vestidos. A da esquerda, um rei nu.

 


Amor a prazo
O amor não é fácil. Talvez por isso esteja desaparecendo. Ou se transformando numa coisa que não é mais o amor como conhecíamos. Ou pelo menos como achava que conhecia. (Aprendi que ninguém conhece, de forma concludente, o amor.) Hoje, aquele amor profundo e alegre, parece profundo, parece alegre. Mas é superficial e infantil. Ama-se a gostosura da cama, o sabor da mesa, a embriaguez do vinho. O casamento é só um detalhe. Na hora de se fazer amor mesmo, um está na internet, outro na novela. Dizem-se unidos, falam que são ligados, mas só se for no computador. Na hora de se conviver, mesmo, limitam-se a discutir as compras e resolver quem vai ao supermercado. Intimamente sabem que aquilo tem prazo de validade. É mais um produto. No futuro, as separações, divórcios e respectivas indenizações, serão da alçada do Procon. No mesmo dia em que se decidir o dia do casório, o casal optará imediatamente pela data da separação. Casamento consumido fora do prazo, pode fazer mal, trazer prejuízos físicos e morais. Terá que terminar no dia certo. A não ser que se esteja diante de um raríssimo caso de verdadeiro amor. Aí o Procon terá de ser condescendente. Terá que perdoar a multa, homenagear. A mídia, repetitiva e incansável, estampará a inacreditável história. Vai ser um reboliço e tanto. No mínimo, parecido com este que acomete agora o astronauta brasileiro. Se ainda calhar de aparecer algum Lula na vida do amante verdadeiro, não tenha a menor dúvida de que vai ser usado também pra campanha à presidência.

 

 

Sentinela
No próximo dezesseis de junho, voltarei ao sertão, para fazer um show. Vou rever os amigos. Bom Jesus da Lapa mudou pouco. Geralmente, apresento-me em praça pública. Da última vez em que lá estive, enquanto cantava, aproveitando que do alto do palco se deslumbrava um panorama largo, fiquei espreitando pontos em que ainda me via. A janela de Toninha. O armazém de Carlinhos. A janela era das serenatas. O armazém, do papo-furado. Desta vez, ao contemplar o sobrado em cima da loja, meus olhos, por mais que tente evitar, hão de procurar a imagem de meu irmão morrendo. O Herói, de apelido, se foi ali sem que pudesse me despedir. Descendo a rua, caminharei até onde está enterrado. Pisarei o barro. Ele sempre foi como um farol. Meus olhos penetrarão na terra escura e, seguindo a luz suave, haverão de encontrá-lo. O Herói não dorme. Em sendo farol, vigia. O povo vai me tirar da letargia. Vai aplaudir, querer mais. Tudo deveria ter um bis.

 

 

Luz
Todo mar tem um farol. E uma solidão imensa.

 

 

Navegar é impreciso
O barco era um torpedo. A "avoadeira" singrava o Juruá ignorando as ondas do rio turvo, muito fundo e larguíssimo. Visitamos as ilhas em frente a Belém. Comemos castanhas a não poder mais. Na volta, vim pensando em fazer o passeio mais uma vez, no dia seguinte. Dito e feito. O único senão era o de que a avoadeira não estava mais no porto. Fazia outro serviço. Sobrou-nos (convidei meu guitarrista, na época, Luiz Meira, pra acompanhar-me — desta feita no passeio). Bem, voltando à vaca fria, sobrou-nos um barco menor. Mesmo assim, achamos que valia a pena. Como haveríamos de maldizer esta decisão! Logo na ida, com o barco mal vencendo as ondas, o motor rugindo muito mais um pedido de socorro do que um grito de força, percebi que a aventura em nada seria semelhante à do dia anterior. A cara contente do barqueiro nos fez imaginar que tudo ia bem. Somente a partir do meio do oceano (num barco daqueles qualquer rio é um mar; num rio daqueles, as dimensões eram atlânticas), ficou claro que o sorriso era de uma pallocidade total. Escancarava um olhar cínico, enquanto a coisa piorava cada vez mais. Até que começou um vento esquisito. De tanto nos preocupar com a ameaça das águas, havíamos ignorado a ameaça dos céus. A escuridão das nuvens, no horizonte distante, quase nos fez tremer de pavor. Olhei para a margem de onde tínhamos partido, e divisei o hotel, que ficava bem ao lado do porto agora distante. Contei as janelas e cheguei à do meu quarto. Imaginei lá dentro a televisão, da qual havia reclamado tanto com a portaria. O frigobar com dois pares de cerveja gelada. A colcha que eu tinha antipatizado. E tudo aquilo se afigurou para mim como o paraíso. Foi meu coração — alarmado e pondo todo o desejo em retornar ao abrigo almejadíssimo do meu quarto — quem me ordenou, e eu repassei automaticamente a ordem para o barqueiro: "Vamos voltar!". Foi uma corrida entre a vida — representada pela torcida que fazíamos a favor do motor — e a morte — representada pelo vento cada vez mais forte e o fundo do rio que tentava nos atrair. E o céu escuro. Assim que pisamos no cais, a tempestade desceu célere e de uma só vez. Olhei para as ilhas perdidas no horizonte, calculei o ponto em que estávamos antes, abracei o amigo Meira. E pedi-lhe desculpas pelo convite infeliz. Corri para o hotel e, durante todo o período em que lá estive, só saí do quarto para trabalhar. Transformou-se no melhor lugar em que estive hospedado. E creio que não perderá este título até o fim de minha vida.

 

 

Lógica reversa
Um dia é da caça, outro é do à caçadora.

 


Ressuscitando dos vivos
O combinado com o diretor do Colégio Bom Jesus, meu folclórico e raríssimo professor Antonio Barbosa, na chegada do presidente, era de que eu deveria comandar o início da função da banda, apenas à sua ordem. "Vocês esperem alinhados. O presidente vai passar por aqui". E, como que representando uma defesa de vôlei, agachou-se como se estivesse conduzindo um passe imaginário que demarcava o caminho por onde o presidente João Goulart deveria desfilar. Caminharia praticamente pisando nos meus pés! Fiquei imaginando como seria a sensação de ver um presidente da república de perto. Aliás, não só eu como toda a banda. Minutos mais tarde, a aeronave presidencial (que eu, apaixonado que era por aviões, nem tive chance de ver, obrigado que fui a permanecer a postos) afinal pousou. Como todos acorreram para a pista, vimo-nos estranhamente solitários e abandonados. A sensação era a de artistas que tinham subido ao palco antes do comparecimento da platéia. Aos poucos, os companheiros foram se impacientando e cobrando-me o que fazer. Manu, que tocava caixa ao meu lado, lembrou-me de que eu era o chefe da banda. Tinha que orientar. Mas o professor também havia sumido. A ordem, porém, era para permanecermos no lugar. E muito bem alinhados. Se foi surpresa quando nos quedamos abandonados, não foi menos surpreendente ver, de súbito, o presidente surgir na plataforma ao nosso lado — cujos dois degraus despejavam exatamente onde o aguardávamos. Ao nos ver, inconscientemente mudou o comportamento. Perfilou-se de pronto e se preparou para descer a escada. O gesto de perfilar-se impôs um silêncio anormal às autoridades, padres e cidadãos. Calaram-se todos enquanto eu esticava o pescoço procurando desesperadamente pelo professor para que me desse alguma orientação. Mas foi o próprio presidente quem decidiu a questão. Fitou-me firmemente e ordenou: "Toca isso rapaz!". Um, dois! — gritei. E começamos. João Goulart então desfilou, de terno branco e seguido pelas autoridades, ao som de nossa música e quase pisando nossos pés. O momento foi de glória. Minha mãe, além de achar a mesma coisa, foi além. Acreditando que o presidente também jamais o esqueceria, recordou-lhe o caso numa carta. E, no fim, pediu-me um emprego. Na Petrobrás, naturalmente. A Petrobrás — esta imensa empresa que morreu há décadas, juntamente com Getúlio Vargas, mas que Lula ressuscitou em apenas dois anos — sempre foi o emprego almejado do brasileiro. Principalmente, do brasileiro do interior. Dessa forma, minha mãe, ao saber que eu havia acabado de ter um "diálogo direto" com o presidente da república, não poderia perder a chance. E escreveu ao presidente: "Lembra aquele garoto que, quando o senhor saltou aqui no aeroporto de Bom Jesus da Lapa, pediu que ele tocasse o tambor? Pois é. Trata-se de meu filho...". Naturalmente, não gostou muito da carta fria que recebeu em resposta. Indicava como poderia, quando crescesse, submeter-me a um concurso para ser admitido na empresa. No final das contas, Jango foi deposto e eu continuei tocando. Minha mãe, ao morrer ainda tinha vergonha de relembrar a história. Mas surpreendente, deveras, foi a história da Petrobrás. Mesmo continuando viva, acabou ressuscitando.

 

 

Deixa
Se a condução está pela hora da morte, deixe a vida te levar.

 


Cadeião
Ainda quando Itamar estava na Presidência, escrevi carta pro cujo, que lhe foi entregue, pedindo por novas cadeias. Ele deve ter lido e comentado: "Esse Guarabyra é bem-intencionado". Mas não cuidou do assunto. Nem ele, nem FHC. E nem Lula, agora. Num País em que as cadeias, das delegacias aos presídios, estão lotadas, em vez de espanto com o que aconteceu em São Paulo, é de se admirar que ainda não tenha ocorrido coisa pior do que aqueles dias de levante. Porém, o mais grave, é que, depois das ocorrências trágicas, quem tem e quem não tem nada a ver com a revolução dos criminosos subitamente se vê possuído por uma luz de genialidade. Os políticos têm soluções. Os juristas, idem. Os jornalistas, os antropólogos, os datenas. A lista é imensa. Pedem desde penas mais severas até uma polícia mais atuante. Uma polícia mais atuante e penas mais severas levariam muito mais gente para as cadeias. Nas cadeias, a convivência entre gangs e criminosos as transformam numa assembléia permanente do crime. Além do inferno que representam para quem vai parar ali sem culpa. Se tivéssemos mais cadeias, os criminosos mais violentos estariam mais isolados, os primários mais protegidos, e a população menos ameaçada. Aí, poder-se-ia até começar a pensar no problema sob o ângulo dos jornalistas, dos antropólogos e de quem mais fosse. É comum que se relacione o sucesso da campanha de Nova Iorque contra o crime com o rigor da "tolerância zero". Mas esquecem que Bill Clinton cumpriu o governo com a fama de ter construído uma cadeia por mês, durante o mandato. Por lá, a cooperação faz um bem danado, sem genialismos desnecessários. Por aqui, sobram gênios. E cooperação, em ano eleitoral, é crime.

 

 

Delas mesmo...
Domingo era Dia das Mães, mas a comemoração foi dos "filhos das outras".

 

 

Teatro transparente
Faz uns vinte anos, levei meu velho pai ao teatro. Confesso que raramente me instalo numa cadeira de teatro. Ou de qualquer outra platéia. Mesmo a de meus amigos e colegas músicos. Com trinta minutos de função, ataca-me a síndrome de cair fora. Sinto-me sufocado, ao ser obrigado a fixar-me num ponto. Não consigo. Se sou eu, porém, quem está no palco, curto muitíssimo meu trabalho. No palco, quero mais é permanecer. Na platéia, quero cair fora. Meu pai sempre viveu no interior. Exceto até os vinte e poucos anos, período em que residiu na Ilha do Governador. Mas a Ilha era quase interior, no tempo da Guanabara de águas transparentes. Fazia parte de um grupo atlético. Vôlei, muita natação. Nadavam facilmente até a ilha D'água. Ida e volta. E brigavam. Muito. Tratava-se de verdadeira mania a de bater em marinheiros americanos. Ou de apanhar. Os marinheiros desembarcavam às centenas, dos navios de guerra americanos, geralmente em escala de folga. O Rio ainda não era uma cidade tão grande. E os marinheiros se destacavam nas ruas. As meninas gostavam. Os namorados e irmãos, não. Estranhamente, todos estavam preparados para a guerra. Inclusive a torcida. E a briga era limpa. Não eram admitidos interferência nem golpe baixo. Levei o velho lutador pra ver um ator famoso. E dos bons. Achei que combinava. O espetáculo, porém, continha muitos palavrões. E todos gratuitos. Meu velho, pastor batista, às vezes ria. Mas acabou achando ruim. Eu também pensava que, naquele momento, a moda dos palavrões gratuitos, criada para atrair um público que adorava se sentir chocado, já havia passado. No início, ela tinha servido como uma espécie de terapia em grupo. Logo, porém, seguiu por um caminho sem sentido. Mas quem sou eu para atacar de crítico. Personagens ridículos, claro, têm lugar procedente na dramaturgia. Todavia, há peças em que, para descrever um personagem ridículo, o ator tem que surgir, no mínimo, sentado num vaso sanitário. E, não raro, recitando um texto de varanda. A varanda me remete de volta às águas transparentes da Guanabara. Rapazes atléticos e jovens soldados sangrando, suando. Mulheres lindíssimas. Um dia presenciei dois tios elogiando um marinheiro com quem haviam disputado uma dessas brigas do passado. Venceram. No entanto, depois que o americano desfaleceu, permitiram que as irmãs e namoradas cuidassem dele, para que não parecesse tão machucado quando regressasse ao navio. Vi nisso tudo uma verdadeira homenagem. Deve ter sido por aí que o velho acabou se deixando influenciar por uma doutrina moral um tanto deslocada do que ocorria à sua volta. Viveu uma vida de teatro. Que sempre me encantou e de cuja platéia jamais quis cair fora. Ator de sorte, meu pai teve a graça de representar, na vida, papéis que sempre lhe caíram perfeitamente bem.

 

 

Vivo
Vende-se celular com pena pré-paga.

 

 

Cavaleiro solitário

Semana passsada, estive hospedado num hotel em que também se encontrava meu novo caubói predileto. Antes dele, na infância, o cargo era preenchido por Paulo Bob. Mesmo odiando o jargão "andar de cima", desconfio que Paulo Bob, hoje, na certa já teria condições de estar campeando nas alturas. Espero que não. Mas, ainda que tenha aceito a empreitada, estará sempre aqui aqui. Vinha pelo imenso corredor acarpetado do hotel. Apenas eu vinha. Silenciosamente pisando no tapete grosso. O lugar tinha algo de majestoso. Um luxo discreto porém classudo. A cada duas portas, a parede fazia um recuo que as protegia dos passantes — e imprimia um ar ainda mais pomposo ao ambiente. Notei que haviam deixado uma das portas aberta, na enorme fila de portas do corredor imenso. E foi inevitável, ao passar pela luz que raiava lá de dentro, dar uma espiada. Estaquei ao notar, ao fundo do quarto, o caubói. Distraído, não me viu nem ouviu. No saguão, na noite anterior, já nos havíamos topado. Ele, abraçado com um dos rapazes dos Golden Boys. Que são baixinhos até pra mim. Aí pude constatar, mais uma vez, como é alto o vaqueiro. Ano passado, sofreu um derrame e esteve preso à cama de um hospital. Felizmente, reagiu com valentia e em pouco tempo iniciou uma bela recuperação. Cumprido o repouso forçado, pôs-se de imediato na estrada, pra alegria de todos. Independente do tipo de músico que se seja, do rock-pauleira ao caipira; do heavy metal ao baladão. Independente também do tipo de fã que se é, basta conhecê-lo para desde logo gostar dele. Tem sempre uma palavra e um abraço justinhos para cada ocasião. Dispara sempre a piada perfeita para estabelecer um astral bacana. Dá atenção ao que o outro fala. Faz questão de entender. Se você expõe um problema, procura oferecer alguma idéia que possa socorrer.

 

 

 

 

O flagrante ali se apresentava, magnífico. O cavaleiro, solitário, examinava uns papéis. Além do protagonista, bem mais magro e elegante, a cena rara exibia ainda o chapéu vistoso jogado sobre o lençol impecável da cama. Tirei a foto. Foto de celular. Mas não há baixa resolução que resista ao alto-astral de Sérgio Reis.  

        

 

Imperfeito do pretérito
Eu voto, tu votas... Ele volta.

 

 

Fita
"Havia, a menos de dois quilômetros da praia, a ilha mais bonita e cinematográfica da baía. Comprida e bela, exibia suas praias emolduradas de palmeiras bem em frente às Pitangueiras. Se pudesse mudar-lhe o nome, a chamaria de Ilha da Palmeiras. Um verdadeiro cenário".

 

..."Exceto até os vinte e poucos anos, período em que residiu na Ilha do Governador. Mas a Ilha era quase interior, no tempo da Guanabara de águas transparentes. Fazia parte de um grupo atlético. Vôlei, muita natação. Nadavam facilmente até a ilha D'água. Ida e volta".

 

"...Os tratores trabalharam dia e noite, como gigantescas máquinas de barbeiro. No terreno careca, implantaram dezenas de tanques de petróleo. Dai para a poluição total, foi um pulo. Tudo foi se tornando parte mar e parte óleo e lixo, dos grandes navios que começaram a aparecer".

 

 

Fato
A Festa Nacional da Música é uma espécie de Congresso Anual de Músicos. Saltei de um dos dez ônibus primeira-classe que foram nos apanhar no aeroporto de Porto Alegre. Os dois enormes boeings alugados vieram lotados. Exclusivamente de músicos ou afins. Cantores, poetas, especialistas em direito autoral, maestros, todos na mesma fila, no embarque em São Paulo. Sabíamos que, naquele mesmo momento (devia ser umas dez e meia da manhã), o mesmo alvoroço perfilado acontecia no aeroporto do Rio. E que os mesmos reencontros que se via nos cafés de Congonhas, acontecia também no Santos Dumont. Ao reencontrar Adryana (Adryana e a Rapaziada, lembram?), que tinha ficado minha amiga no ano anterior, senti como a festa tinha sido importante. Durante este ano, todas as vezes que Adryana surgiu na tevê, corria pra ver a nova amiga. Amiga anual e de data marcada, mas amiga. Este ano, surgiu por lá Armando Pitigliani. Levei um susto. Jamais pensei que fosse vê-lo outra vez. Produziu inúmeros grandes discos. E acertou logo na estréia com Sérgio Mendes e Nara Leão, em 64, que devem a ele seus primeiros discos. Mesmo bom humor, mesma velha alegria, mesmo embalo. Abriu o casaco (grosso, estava gelado, em Canela), no corredor do hotel, e exibiu a frase pintada na camiseta: "Não aprendi p... nenhuma com Midani". Midani, seu maior concorrente, é também um dos mais geniais produtores brasileiros. Começamos a gargalhar. Viva a guerra! Viva o congresso! (O nosso, naturalmente). Na volta, os dois vôos partiram divididos. O primeiro, saiu na véspera do último dia, pra quem precisava regressar logo. O outro, partiu na manhã seguinte. Vim neste. Como voltavam misturados artistas tanto do Rio quanto de São Paulo, um dos grupos teria que forçosamente visitar o aeroporto de origem do outro. Deu-se então que pousamos no Rio, antes de continuar para São Paulo. Ao levantar vôo do Galeão, sobrevoamos a Baía de Guanabara. Como está suja. Claro que lembrei do tempo em que era cristalina. Que sorte deram meus pais e tios. Que sorte tive também eu de, pelo menos até os 14 anos, curtir aquelas águas ainda rodeadas de matas. Surgiu, então, lá embaixo, a ilha D'água, de que tanto falo aqui. Não sei se foi de partir o coração, mas alguma coisa despedaçou aqui dentro. Registrei o momento triste. A foto está aí. Acompanhada de trechos do que escrevi sobre aquela pequena ilha lá embaixo — aquela que estampa a luz dos tanques de combustível iluminando uma festa que se acaba todos os dias. Até o ano que vem, turma do Rio.

 

 

Foto

 

 

 

 

 

Dia dos namorados

Há todo tipo de namoro. E nem todos dão, ou mesmo deveriam dar, em casamento. A gente namora quadro, automóvel, chocolate. E, às vezes, um ser humano. Pois que sempre há o risco de se namorar alguém que apenas parecia gente. Existe namoro, inclusive, entre nações. A Iugoslávia foi um caso destes. Ou melhor, como se tratou dei um monte de nações que se namorou e se casou entre si, o caso foi meio escandaloso. E terminou numa tremenda guerra. Mas mesmo o mais comum dos casamentos está sujeito a acabar em conflito. Invariavelmente com acusações mútuas de traição. Muito embora na maioria das vezes a traição no namoro seja até, digamos, aceitável, continuo preferindo a versão a dois. Não tenho queda nem sangue-frio pra traições. Mas, no casamento, infidelidade pode até virar caso de polícia. É por isso que aconselho ir devagar na direção do casório. Ainda que atualmente o noivado seja considerado careta, acho que seria prudente adotá-lo. Muita gente que hoje considera o casamento uma armadilha, sabe bem que não teria caído nela se tivesse tido a chance de noivar. Tudo acertado com cama, digo, com calma. Data, padrinhos, igreja. Quando se passa direto do namoro pro casamento, corre-se o perigo de amanhecer com aquela sensação de coisa mal-resolvida. O noivado organiza, lembra o compromisso nos dedos. Dá noção prática do que vai acontecer quando se é um do outro de público, atados pelo ouro grosso das alianças. Lembrei agora da vedete que, no carnaval, trocou o colar por uma coleira com o nome do marido. O recado era: "não se preocupe, você está no controle". Separaram-se em pouco tempo. Se tivessem noivado, saberiam que ela jamais largaria a avenida. Tanto quanto ele jamais conseguira segurar a coleira. Noivar é bom. Infelizmente, hoje até a lei ameaça o noivado. Mais de cinco anos de intimidade, mesmo sem morar juntos, já é considerado união estável. Ou seja, você já foi casado e aprovado mesmo sem ouvir um sim na prova final. Considerando esse monte de problemas, dá pra concluir que o melhor de tudo, mesmo, é o namoro. Tem até dia. (Nunca ouvi falar de Dia dos casados. Se existe, não é comemorado). O mundo navega a favor dos casais felizes de namorados. Não importa que estejam duros, não importa que sejam jovens e inocentes. E, especialmente hoje, a única coisa que importa é a grandeza do dia — que raiou lindo. É hora de curtir o presente. Mesmo que o dinheiro não tenha dado pro chocolate.

 

 

abril / maio / junho, 2006