©serge krouglikoff
 
 
 
 
 
 
 


Confessionário modernista
O inconfidente, aquele que divulga os segredos que lhe são confiados, é personagem do passado mineiro. E tem péssimos seguidores. Marcos Valério, por exemplo, custa a confessar. O mineiro, porém, vai acabar confessando e comungando. Mas, como mineirice e religião exigem certa liturgia, talvez ajudasse a CPI contratar um padre de plantão e armar um pequeno confessionário, ali nos fundos da sala de depoimentos. E, dentro da cabine, escondida, instalar uma maleta daquelas que começou a confusão toda, munida de câmera e gravador disfarçados. Lá dentro, na penumbra, de fones nos ouvidos, o padre ouviria as perguntas da comissão de inquérito — e as repassaria a Marcus, o Inconfidente. Envolto nesse clima, do outro lado da tela, humilde e de joelhos, sem dúvida responderia a tudo. Por falar em tela, lá no plenário, um telão exibiria tudo. E arrematando essa autêntica modernização dos inquéritos políticos, ao final da confissão, no momento de apenar o pecador pelos erros cometidos, o padre, em vez de penitência, apresentaria ao inconfidente a penitenciária. Apesar de as palavras levarem o mesmo jeitim, como se diz em Minas, ele logo vai sentir que são trens totalmente diferentes.

 

 

Bordando a fantasia
A sociedade é cada vez mais permissiva. As revistas de modelos à capa, antes fontes de leitura inocente e moldes de casacos, trazem agora tudo sobre sexo. Permanece, no entanto, a linguagem pura e simples, que torna os assuntos mais leves. Sexo anal, por exemplo, vira uma questão banal de simples intimidade. Como sabemos que são vendidas para quase crianças, as revistas de moda acabam educando desde cedo. Não sei dizer se para o mal ou para o bem. Mas pelo menos as filhas-de-maria já podem saber de opções da vida sem escandalizar as mães beatas. Entram em casa saltitantes, exibindo a revista colorida, pedem agulhas de bordar, mostram o modelinho pra família reunida na sala, e partem para se distrair, suar, sonhar, bordando no quarto. Pena que Nelson Rodrigues morreu cedo demais.

 

 

Trilhando as novelas
Dona Xepa, Pantanal, Roque Santeiro, Selva de Pedras, Fera Radical, e, sinceramente, não lembro quantas mais. Agora é a trilha de Alma Gêmea que traz música de minha autoria. Desta feita, Margarida, interpretada pelo Roupa Nova. Trata-se de composição que pari aos 18 anos (dourados como novela das seis). Tanto tempo depois, é engraçado ouvir um pouco de minha alma desbarbada. Tão diferente de como sou hoje, mas ainda assim alma-mais-do-que-gêmea. Vaga por aí, em rede nacional, uma espécie de fantasma de mim mesmo.

 

 

Receita de mistura
Segundo afirma Bob Jefferson, o flagrante que surpreendeu o funcionário dos correios embolsando três mil reais, foi tramado dentro do PT para destruí-lo. Se de fato era este o objetivo da armação, bateu o recorde de tiro pela culatra. E aquela história de que o partido estava rodando feito peru bêbado, parece agora mais verossímil do que nunca. Segundo o ex-presidente Ingenuíno, o erro do PT foi ter crescido demais e, em razão disso, ter perdido o controle da estrutura subitamente agigantada. Misturou tudo e acabou perdendo tanto o controle sobre si próprio quanto sobre todos. Como me ensinava Tom Jobim, misturar é um perigo. Se você estiver tomando bebidas produzidas de cereais, por exemplo, continue nelas. Ou seja, se estiver apreciando cerveja, pode arriscar um uísque, jamais um vinho. Aí está a chave do imbróglio. O PT, depois que se aperuou de Land Rover, passou a misturar a caninha de todo dia com uísque envelhecido e com tudo mais que o deslumbrasse. Não resisitiu ao Old Jefferson com Saquêshiken, confundiu alhos com bugalhos — e deu nisso. Hoje, encharcado e temperado, só falta mesmo assar.

 

 

Caipiras
Chegando do sertão baiano, o Rio virou minha terra. Depois, São Paulo. Estava ainda nos 20 quando apeei no bravo inverno paulistano. A lembrança mais marcante do início de minha vida naquela salada paulista continua sendo — além do cimento e da falta de horizontes largos — o bar Berolina, no Brooklin. Trabalhava como funcionário no estúdio de publicidade do maestro Rogério Duprat. Ao fim de cada mês, recolhia a grana dos direitos dos jingles e programava o fim de semana com uma ou duas sagradas idas ao Berolina. O pequeno bar-restaurante de comida alemã, de corpo estreito e comprido, apenas duas fileiras de mesas pequenas de cada lado, toalhas quadriculadas e pouca luz, aquecia o espírito da turma de imigrantes. Sá, Rodrix, Magrão, Moreno, Flávio Venturini. Todos ainda nos 20, risos, muitas piadas sobre o mundo publicitário e as dezenas de horas com fones nos ouvidos. Operários da música, batíamos ponto todos os dias às 9. Saíamos às vezes tão tarde, que mal dava tempo de dormir e chegar em forma no dia seguinte. Mas quero falar das saudades do enorme garçom ucraniano do Berolina. Mal-encarado, no início, com aquela turma de estranhos cabeludos, transformou-se com o tempo num pesado, manco (puxava de uma perna) e velho urso amigo. Quando tardávamos como derradeiros fregueses, nos deliciávamos reouvindo a história de como tinha se apaixonado pelo Brasil, a ponto de vir morar aqui. Tudo começou quando ainda jovem foi contratado para servir, já como garçom, em algumas recepções no consulado brasileiro. Brilhava os olhos quando descrevia que o maior prêmio pelo trabalho não era dinheiro, mas os limões. Ao dizer isso, apalpava limões imaginários. Em sua terra não havia limões. Ao fim do expediente, enchia os bolsos, roubava-os. Quando chegava em casa, a família já o esperava com ansiedade. Os irmãos mais novos, ainda crianças, brigavam pelo direito ao perfume e ao gostinho da experiência azeda e tropical. Não sei dizer se era em virtude da paixão dele pelos frutos ou apenas pela presença generosa daquele urso, antes ríspido e depois anjo, mesmo manco. Mas a caipirinha do Berolina era o máximo.

 

 

Festival de lembranças
Uma pena que acabou o festival da Rede Band, que eu iria dirigir. Na pretendida festa de inauguração, que seria realizada no teatro que fica no topo do Pão de Açúcar, no Rio, planejei homenagear os dois homens que fizeram os festivais virar a fórmula mais inteligente para pôr em rebuliço o mercado da música popular: Solano Ribeiro e Augusto Marzagão. Convidei Solano, que aceitou surpreso, visto que também produz o festival da TV Cultura, que concorreria com o meu. E parti numa viagem sentimental ao Rio, para convidar meu ex-chefe Augusto Marzagão, com quem dirigi alguns festivais, três deles internacionais, com a participação de 30 países. No telefone, ao marcar o encontro, já tinha percebido o esforço que fazia para falar. Quando Dr. Marzagão, como o trato até hoje, abriu a porta do apartamento, no célebre Edifício Chopin, de onde se deslumbra, de pertinho, a piscina semi-olímpica do Copacabana Palace, tomou-me toda uma viagem histórica. Abracei-o comovido. Convidou-me para entrar. Esperava-me um café com biscoitos. Falamos sobre livros, Otto Lara Resende, Fernando Sabino. Às vezes, minutos de silêncio em que a música de fundo eram o som dos pires e as lembranças. E a visão monumental do Copacabana Palace diante da imensa janela comprida. Expliquei-lhe o objetivo de minha visita. Depois de relutar um tanto, aceitou o convite. Antes mesmo que aceitasse, já tinha encomendado, ao amigo, escritor e biógrafo Sérgio Cabral, o texto que seria lido na homenagem. Seria uma homenagem bonita, justa. Mais do que merecida. Na saída, autografou-me dois livros. Um de ensaios políticos, A Semeadura e a Colheita, de sua autoria. O outro, de autoria de Dad Squarisi e Arlete Salvador, A Arte de Escrever Bem, que era dedicado a ele: "Para Augusto Marzagão, mestre". Pediu que o visitasse de novo. Com o cancelamento do festival, desconvidá-lo foi tarefa triste. Deve ter ouvido o desconvite — que tive de fazer pelo telefone, pois não me encontrava mais no Rio — e se voltado para a solidão do apartamento grande com livros espalhados pelas cadeiras, mesas, prateleiras, pelo tapete. Vagarosamente sumiu para os aposentos que não conheci, da mesma maneira que procedeu quando estive lá. Naquele dia, retornou com uma joiazinha, um broche de ouro em forma de clave de sol, adornado com um biquinho que o transformava ao mesmo tempo em sinal musical e na figura de um galo. Tratava-se de uma raridade que criamos como uma pequena lembrança aos convidados estrangeiros de nossos festivais, muitos anos antes. Tinha em mente oferecer também uma pequena homenagem a quem vinha de longe, só que no tempo, fazendo muito por nossa música e nosso povo, mas não deu jeito. No entanto, nem tudo está perdido. Sei que haverá, daqui pra frente, muitos outros cafés com biscoitos, Otto, Sabino... O que dirá quando souber que também ousei escrever um livro?

 

 

Sai de baixo
Vai chegando o mês de agosto e já começo a sentir os aviões a perigo, comandantes em pânico, passageiros gritando. É o mês das tragédias aéreas. Santos Dumont, como foi batizado o novo avião presidencial, é um nome que ninguém da aviação pronuncia. Dizem que dá azar. A crise do governo, por exemplo, pode ter começado em virtude da compra deste avião. No momento em que recebeu o nome de batismo, o governo encontrava-se nas alturas, mas paulatinamente vem descendo em direção ao chão. Porém, como toda aterrisagem nada mais é do que uma queda controlada, tudo depende do equipamento funcionar perfeitamente bem e da habilidade do piloto. A nação, atenta, espera pra ver se o Lulão vai rolar mansamente pela pista. Ou se vai cair de bico.

 

 

Entre paredes
Há uma parede no quadro pendurado na parede. Numa parede, a lembrança, na outra, o quadro. O quadro da lembrança, pendurado na parede, é uma parede de herança do quadro que tem a parede. Nele vê-se tantos anos dentro de tantas paredes, que já nem sei se a lembrança é a parede do quadro, ou o quadro que está na lembrança do quadro que está na parede.

 

 

Contrastes econômicos
Em relação ao Produto Interno Bruto, Luma de Oliveira tem um coração e tanto.
Na Receita Federal todo angu é de caroço.

 

 

 

 

agosto, 2005