Elogio da Palavra

 

Todas as manhãs

te encontro na esquina,

a boca vermelha

de eterna caftina.

 

A pele viçosa,

talvez de pelúcia.

Os olhos repletos

da mais fina astúcia.

 

Te abordo de longe

com todo o recato:

substantivo próprio

ou verbo cognato.

 

Se vou a passeio

na rua ou na praia,

sei que me acompanhas

no aplauso ou na vaia.

 

Em vão te procuro

nas enciclopédias,

nas lombadas de ouro

dos gregos e astecas.

 

Nas tumbas de mármore

dos reis e dos déspostas.

Nos versos dos bardos

de todas as épocas.

 

Em vão te procuro

na infância dos olhos,

nas rugas das pálpebras

e nos paradoxos.

 

Ó palavra escrita

nas laudas, nas lousas.

Tu és mais astuta

que as velhas raposas.

 

Enxergas de longe

os mitos do horóscopo.

Apagas a lâmpada

na hora da morte.

 

Ó palavra ambígua

que nos dilacera

com dentes de cobras

que engolem panteras.

 

Às vezes te escondes

dentro dos espelhos,

nas plumas do vento,

nos rubis dos seios.

 

No canto dos pássaros,

no arrulho das horas.

No amor que semeia

suspiros e amoras.

 

Palavra esculpida

no ferro da aldrava

das portas de cedro

da casa assombrada.

 

Em vão te procuro

nas encruzilhadas.

Nos lugares ermos

que já foram casas.

 

Tu vais aos velórios

das pessoas gradas

escutar discursos

de duzentas laudas.

 

Sei que pulsas nas

retinas de um cego.

Talvez nos hexâmetros

do finado Homero.

 

Talvez nos martelos

do cego Aderaldo.

Ou nos cantos búdicos

do incrível Gerardo

 

Mello Mourão. Ícone

da mais alta arte

do planeta América

e de toda parte.

 

Palavra inconstante

de pluma amarela,

tal qual a serpente

que muda de pele.

 

Palavra insolúvel

como certos ácidos

que se desintegram

na explosão dos átomos.

 

És a mais volúvel

dentre as cortesãs.

Rendo-te homenagens

todas as manhãs.

 

Palavra evasiva

de curvas barrocas.

Tens mais lábia e astúcia

que as velhas raposas

 

 

 

 

 

 

Falso Soneto de Amor

 

Na insônia das estrelas e da idéia,

passeias no camelo de uma vaga.

Amor e ódio: gumes da mesma adaga

que degolou os filhos de Medéia.

Destroços de ilusões, eis o que resta

das noites vãs em que sonhei contigo.

Com teus mormaços e a nudez do umbigo

a seduzir meus olhos de profeta.

Agora, que o mistério já me espreita

com seu faro de cobra à flor da pele,

penso em teu corpo esguio de pantera

que devora o banquete e já se deita.

Quando me entrego às nuvens forasteiras,

tu passeias nos rastros das fogueiras.

 

 

 

 

 

 

Não Morrer aos Domingos

 

Não morrer aos domingos

   quando os velhos apagam

      a cinza de seus cachimbos

 

Não morrer aos domingos

   quando os mortos regressam

      de volta dos tamarindos.

 

Não morrer aos domingos

   quando os anjos arrulham

      para os outros meninos.

 

Não morrer aos domingos

   no instante aveludado

      da ceifa dos racimos.

 

Não morrer aos domingos

   se os lençóis impregnados

      de aromas femininos.

 

Não morrer aos domingos

   se os mísseis bombardeiam

      a infância dos meninos.

 

Com discursos cretinos

   e a falácia dos pêsames,

      não morrer aos domingos.

 

 

 

Paisagem de Luto

 

Eu sou a paisagem

trespassada pelos

espinhos dos cactos.

 

A paisagem esmagada

pelos cascos das éguas

que pastam no cio dos vales.

 

A paisagem contemplada

pelos olhos amarelos

dos pincéis de Van Gogh.

 

Eu sou a paisagem

que muda a pele de cobra

em memória do vento.

 

Eu sou a paisagem

onde os regatos tocam

flauta pelos afogados.

 

Sou a vertente que arrulha.

A paisagem que se veste

para os ritos do adubo.

 

A paisagem de luto

pelos mortos de todos os

sistemas corruptos.

 

 

 

 

 

 

Todas as Mãos

 

Mãos que irrigam sonhos

e relvas nas lápides.

 

Mãos que escrevem epitáfios

para os filhos mortos.

 

Mãos que semeiam palavras

como se fossem mudas de trigo.

 

Mãos que desfiam as contas

do rosário no velório dos pássaros.

 

Mãos que alçam vôo. Pombas

extraviadas quando voltam do exílio.

 

Mãos que inventam coisas

para a ceifa dos dias e das noites.

 

Mãos que acendem a lâmpada

para as núpcias do adeus.

 

 

 

 

 

 

Nuvens São Caudas de Baleias

 

Uma nuvem na tarde que incendeia

      cachos de sombra e pêssegos de vento.

Um dragão que atravessa o firmamento

      com sua enorme cauda de baleia.

Na esquina ensolarada do horizonte

      o sol se inclina e a tarde já se deita.

Uma pantera que de longe espreita,

      a nuvem bebe orvalho numa fonte.

Saídas dos pincéis do Aleijadinho,

      em noites de tormenta e vaga-lumes,

nuvens são noivas num corcel de espumas,

      à espera dos augúrios do adivinho.

Nuvens desenham caudas de baleias

      para os mouros que voltam das ameias.

 

 

 

 

 

 

Poema das Mutações

 

Por acaso,

as palavras mudam

de lugar ou de retórica.

 

As nuvens mudam

de rumo ou de plumagem.

Por acaso.

 

Os ventos mudam de rota.

Os astros, de órbita.

Por acaso.

 

Peixes no armário,

mudamos de cor e de pele.

Por acaso.

 

À maneira das rimas

e das pombas, muda-se

o amor para novos climas.

 

Em seu negro cavalo,

a morte nos visita.

Por acaso.

 

 

 

 

 

 

Forma no Espaço

 

(Pelos 100 anos de Oscar Niemeyer)

 

Súbita forma de flor

em seu cálice de antúrio.

Exata como um pêndulo de prata.

 

Tão leve quanto o vôo

de um pássaro roçando o vértice

do infinito breve.

 

Forma tão pura de esculpir

a fugacidade do mito

que nos pastoreia.

 

Forma de asas que arrulham

à espera da liberdade

e do seu pólen.

 

Forma que respira

os frêmitos do azul. Forma

do enigma que se debruça em si mesma.

 

Forma de água límpida, que não se turva.

Concha da mão que acaricia

a luxúria da curva.

 

 

 

 

 

 

A Vida é Só Uma

 

A vida é só uma

em qualquer lugar do mundo.

 

Todas as filosofias

nos apunhalam pelas costas.

 

O maior dos sábios morre

na forca ou purga os pecados.

 

Sob o signo das eras, a vida

é só uma para os homens e as feras.

 

A vida é só uma para

as caftinas ou o rei dos Hunos.

 

 

 

 
 

Dona Morte

 

Dona Morte vem de Marte.

Em seu cavalo de espuma

espreita nas encruzilhadas.

Vem dos ermos, das colinas

ou das altas madrugadas.

 

Vem talvez das profundezas

do abismo de suas órbitas.

Passeia pelas esquinas

de uma rua onde se avista

uma choupana sem portas.

 

Dona Morte vem do frio,

nos visita a qualquer hora

do dia ou da noite.

Vem da chuva, dos relâmpagos

ou montada numa foice.

 

Vem dos armários de cedro

onde se guardam bordados.

Ou do redil das estrelas

ou do pólen das orquídeas

ou do espólio das abelhas.

 

Nas tardes de maremoto,

de crepúsculos vindouros,

Dona Morte vem do espaço

nas barbatanas de um míssil

ou nas adagas dos touros.

 

 

 

 

 

 

Falcões em Chamas

 

Sou do tempo

da água e do vento

do musgo e da pedra.

 

Sou da porta de cedro

do arado e da foice

da hipotenusa e da esfera.

 

Sou da água da fonte

da vertente acordada

onde a amada se banha.

 

Sou do rio que dorme na orla

muda de cor e de pluma

todas as vezes que acorda.

 

Sou do cacto que acende

a lanterna vermelha

para os falcões em chamas.

 

 

 

 

 

 

Bala Perdida

 

A mulata que

esbanja sortilégios

na avenida.

 

O mendigo

que atravessa a rua

de pedra polida.

 

A prostituta

com os olhos de rímel

fitos na vida.

 

A boneca de

plástico da menina

distraída.

 

Marujos à espera

das noites de vento

e baleia suicida.

 

Coruja pousada

na placa de acrílico

de casa demolida.

 

Até fantasma

pode ser vítima de

bala perdida.

 

 

2

 

 

Bala perdida

ou vem de noite

ou nas esquinas da vida.

 

Ou vem da janela

ou vem do barraco

de fachada amarela.

 

Ou vem do obelisco

ou da igreja fechada

por ordem do bispo.

 

Ou vem do bordel

onde se vende o amor

em cama de aluguel.

 

Vem dos arcos, da Urca

ou vem da madrugada

que se bifurca.

 

Ou vem dos subúrbios

ou vem da Candelária

ou vem de Canudos.

 

Ou vem dos mísseis

ou vem dos presídios

ou vem dos omissos.

 
 
(imagens©ryan mcvay | dave king)
 

 

 

Francisco (de Oliveira) Carvalho é natural do Ceará e reside em Fortaleza desde 1946. Pertence à Academia Cearense de Letras, foi assessor da Universidade Federal do Ceará por longo tempo. Entre seus vários livros de poemas destacam-se Pastoral dos dias maduros, Barca dos sentidos, Quadrante solar, Raízes da voz, A concha e o rumor, Centauros urbanos e Memórias do Espantalho. Recebeu os prêmios "Bienal Nestlé de Poesia" (1982), "Fundação Biblioteca Nacional" (1997) e prêmio de literatura "Dragão do Mar" (1998). Participou de diversas antologias publicadas no Brasil, duas em Portugal, uma na França e uma na Alemanha. Alguns dos seus livros foram elogiados por Nelly Novaes Coelho, César Leal, Fábio Lucas, Wilson Martins, Gerardo Mello Mourão, Hildeberto Barbosa Filho, Luiz Tavares Júnior, Linhares Filho, José Alcides Pinto e Jorge Tufic, entre inúmeros outros.