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AVE-MARIA Findas as fainas dos dias o céu é uma pátria distante projetada entre os vãos
estreitos de edifícios que assombram e
iludem. Eles parecem arranhar o
infinito mas lá só os pássaros habitam e seu canto-conjunto é uma grande
nuvem que borrifa a Terra dia a dia com melodias próprias para conservação da
poesia. Vidas engastadas umas sobre as
outras os fiéis rezam. POEMA OCULTO
Plena de poesia a alma à revelia projeta nas plantas suas paragens ensombrecidas É a folia Diz-se dela que se dá quando as sombras nas paredes se compactam corpo a corpo com o concreto e armado sob os móveis verifica-se o espírito invulgar que habita cada objeto Eles nos olham — parecem duendes urbanos — As plantas riem As fotos andam O telefone tange Um deus oculto no poeta chega e sopra o pó das poltronas Tudo se ceramifica Algum mineral nos habita RETRATO
DOS AVÓS PATERNOS QUANDO JOVENS (Lembrando-me Camões, Da Vinci e
Wordsworth) O casal desconhecido encara-me seus olhos emudecidos dizem
tudo do tempo que foi O casal — que tem nos
braços o primogênito já ausente fitando de viés o
além (deste sabe-se hoje que não permaneceria) — fixa a câmera para melhor nos ver
(agora): a isto chama-se a posteridade Ela é bela Monalisa por um triz porém séria mas traz ao fundo nebulosa natureza semelhante à da célebre
tela ainda que mais selvagem, pois sob os
trópicos (claríssima água corrente por entre morros sombrios — aqui não há campos cultivados) Ele o pai do meu pai garoto de terno preto (The child is the father of the
man) é triste sabia já quiçá que pelas asas de Morfeu (extinguiu-se tempos depois — em pleno sono — o
avô) logo iria ter às margens do
Letes para lá se esquecer e ser
esquecido Ela sobrevivente única deste
naufrágio estava à terra quando cheguei porém já outra: era avó cabelos olhos mãos boca pele ventre cores e formas outros Mudam-se
os tempos mudam-se
as paisagens perdem-se os seres e os seus
lugares toda a vida é composta de
passagens deixando sempre vívidos pesares |
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