Sou um cara descolado e maneiro, um cão farejador, uma espécie de rastreador urbano. Me amarro em comida e mulheres gordinhas. Em meu meio, há todo um conjunto de regras que fazem parte de uma mitologia obrigatória e que precisam ser respeitadas. Regra número 1: um autêntico rastreador urbano não dá dicas, usa tudo em proveito próprio. Por exemplo: vocês sabem qual é o restaurante nesta cidade que fecha às quatro da manhã e prepara cozidos de grão de bico com paio que fariam qualquer macrobiótico trocar de religião? Ou risoto de vôngole, sopa de fava com chucrute e lingüiça, tudo muito erótico e sensual, uma comida da época medieval, ferventada em sólidos caldeirões de ferro negro? Não sabem? Pois é ali no Leblon, numa ruela obscura, depois eu dou o endereço correto. Regra número 2: um cara maneiro bebe mas nunca fica de porre. Naquela noite, depois de me encharcar com duas dúzias de cervejas, pedi minha primeira steinhager da noite. Regra número 3: destilado e fermentado, dois mundos que não combinam. Lá pelas tantas, surgida talvez das profundezas etílicas de um reino das trevas, Valquíria, a mulher do dono do bar, veio a minha mesa e perguntou como estava a comida.

— Ótima, perfeita — atropelei-me, completamente bêbado e alucinado -, muito saborosa, molhadinha como sempre. O codeguim estava suculento, daqueles que a gente enfia o garfo e faz splorft, cuspindo pra cima aquelas gotinhas de gordura presas na pele...

Ela riu. Estava mais sensual que nunca naquela blusinha decotada que mostrava dois majestosos peitões duros e empinados. Era uma mulher muito sadia. Sadia e carnuda, esse o grande trunfo da cozinheira Valquíria. Como a comida, tinha um apelo caseiro, meio alemão, da Baviera. Suas coxas eram tipo antigo, daquelas que se viam nas fotos de nossos pais e avós com trajes de banho enormes, que sugeriam tudo, mas mostravam pouco. Dessas coxas que se colam ao cimento escaldante dos quintais da periferia plenas duas horas da tarde e queimam, exalando um odor característico, misto de suor, carne chamuscada, cheiro de peixe e água de colônia, meio azedo e ao mesmo tempo doce, coxas explodindo o short branco apertado, short de empregada lavando a calçada com a mangueira, que deixa ver a base das nádegas, coxas gordinhas de dançar bolero, meio esparramadas pros lados e que sustentam uma bacia pronta a parir aqueles bacuris de quatro quilos e meio. Convidei-a para sentar à mesa e ela sentou. Me excitava a cada frase. E ela percebeu. Comecei a pegar naquele braço gorducho, dando ênfase nos elogios, tentando a duras penas fazer com que os gestos parecessem naturais.

Eu fixava os peitos da mulher com uma fome perigosa. Por trás do balcão, o dono do boteco flechou-me com olhos envenenados. Passava das duas da manhã. O odor dos temperos se dissipava. Regra número 4: um cara descolado não abusa da sorte, é prudente, espera que as coisas se encaixem. Mais uma steinhager veio no exato instante que meu pé descalço subia pelas pernas da mulher do dono do bar, embrenhando-se pelas coxas quentes e imiscuindo-se nas intimidades úmidas que abrem o caminho da felicidade para qualquer homem. Precisamente quando Valquíria abria mais um botão da blusinha, fazendo com que aqueles dois maravilhosos melões pudessem respirar com mais liberdade a atmosfera densa do boteco enfumaçado, o maridão veio e desferiu-me um poderoso cruzado no olho esquerdo e continuou me socando pelo resto da eternidade. Estrago feito, jogou-me na rua.

Já na calçada, de bruços, com um braço quebrado e hematomas generalizados, percebi que a noite tinha me soltado um sonoro e derradeiro peido na cara. Tentei me levantar, mas não consegui. A cidade borbulhava e emitia um rugido subterrâneo fantasmagórico, mulheres choravam seus anjos ensangüentados nos apartamentos que ladeiam a Ataulfo de Paiva, enormes relógios digitais mostravam caracteres etruscos. Pessoas embalsamadas passavam.

Com o braço bom, fiz sinal a um táxi. Pra onde, doutor? Seria uma pergunta metafísica? Regra número 5: um farejador que se respeita nunca dá o itinerário correto a porra de motorista algum. Ele aposta na intuição do sujeito. Eu disse:

— Pra UTI, rápido, talvez ainda haja tempo!

Quebrara todas as regras. Eu tinha motivos. Não é todo dia que as pessoas têm a oportunidade de voltar do consultório com um diagnóstico de tumor maligno no cérebro. Era uma questão de coerência. Afinal, Deus também tinha quebrado suas regras.

 
 

 

 

"Ainda vou me tornar um mestre de um

novo gênero literário: o silêncio".

Isaac Bábel

 

 

Quando desligaram os aparelhos, a família vacilou mas acabou doando os órgãos todos para transplante. As córneas de Leonardo foram parar num rapaz cego de outra cidade, que conseguiu enfim ver a vida como ela é; o coração palpitou no peito de um senhor desenganado de 50 anos; a mão direita rumou para o toco maneta de um executivo sem escrúpulos, o fígado substituiu a falência de irrigação de um menino melancólico que reviveu instantes de esperança e o rim passou a filtrar as toxinas que infernizavam as entranhas de uma mulher em estado terminal.

 

Hospitais & médicos comemoraram, as famílias nem é preciso dizer, exultaram, borbulharam copos de prazer; a obstinação da química tinha enfim derrotado a Ira Divina.

 

Ah, sim, a perna esquerda apareceu no corpo de um rapaz sinistro recém-triturado no mar pela hélice de um motor de popa. O corpo de Leonardo repartiu-se em muitas vidas, mas houve rejeições, como é natural nesses casos, são as regras inexplicáveis de um mundo falível, nada que uma juventude primária e farta não pudesse resolver com um mínimo de adestramento.

 

A história não é banal, se me permitem. O pai vivia repetindo para os amigos que seu filho não tinha ambição. Mas ele estava enganado: a única ambição de Leonardo era ser ninguém, era ser nada. Contudo, ele sabia que não ser nada era difícil, sempre tem alguém que insiste em distribuir méritos, um ou outro atributo positivo, sei lá, todo mundo tem algo que valha a pena na puta da vida.

 

Leonardo tinha uma teoria: o homem atrapalha pelos simples fato de existir. Ele não queria interagir, não queria interferir, achava a ação humana nefasta por definição. A única saída: anular-se, minimizar ao máximo sua presença na Terra, deixar que a roda do mundo completasse sua rota livremente. Tornar-se invisível, eis toda a lírica possível. O silêncio, a não ação, o doce entranhamento, a ternura estava justamente no vazio.

 

Nem protagonista, nem antagonista, Leonardo pretendia o aniquilamento como forma total & sublime de encontrar o absoluto. Para ele, a reação era uma maneira conservadora de preservar os mecanismos mais arcaicos do mundo.

 

Pré-socrático por natureza, Leonardo odiava adjetivos. Sua filosofia consistia em cristalizar os objetos no tempo & no espaço. Teriam que continuar imutáveis, sem que fossem flexionados ao sabor das intempéries.

 

Para ele, o adjetivo representava a ação mais torpe e autoritária do homem com o objetivo de desvirtuar o sentido da vida. Controvertido, impetuoso, diáfano, avassalador, poético, ambíguo, grandiloqüente, viril, premonitório, sonhador, ambicioso, erótico, mágico. Para Leonardo, nada disso tinha valor ou importância. Sua cosmogonia era simples: a existência não admite intervenções de nenhuma ordem.

 

Com o tempo, porém, ele começou a abolir também os substantivos. O ser já não mais estava, desincorporara-se de vez, tinha virado nuvem, pó, vento, poeira, éter, fragmento de uma estrela antiga e morta que, por definição, já não brilha mais, pois Leonardo tinha matado inclusive os verbos.

 

Não teve saída. Com isso em mente, resolveu agir por conta própria: pisou fundo no acelerador e seu fusqueta precipitou-se despenhadeiro abaixo: só teve a escuridão do coma pela eternidade de um mísero instante.

 

E foi nesse fragmento de trevas que ele vislumbrou toda a vida que não teria, todos os poemas que não faria, todas as mulheres que não amaria.

 

Aliás, o estado vegetativo, como se diz, é apenas uma provocação às plantas. Os homens são muito estúpidos, se acham superiores em tudo. Quando subiram na escala alimentar, mastigando a carniça que o tigre com dentes de sabre deixava nas pradarias, ele não imaginava a roubada em que estava se metendo: o cérebro começou a pensar e virou um predador.

 

Vamos colocar as coisas da seguinte maneira: nada pode explicar um ato desses, a morte é uma coisa visguenta, pegajosa, indigna, absolutamente impossível, ela humilha, encolhe, ela ilumina a estupefação, estremece, distribui códigos de tortura, o assassino de verdade é escorregadio, volátil, um rato, um rato peludo com as patas em disparada entrando no primeiro buraco que aparece pela frente, ele avança dolorosamente até roçar as fronteiras do horror, lança-se na morte por mordedura, a morte mordida do rato; quando não há mais rato, o futuro cadáver se vê acuado pela ausência, torna-se irredutível, torna-se infinito, pleno, cai-lhe a mordaça, então ele grita mas ninguém ouve, o despojo humano — com o perdão da palavra! —, explode em estilhaços, ele se torna igual a si mesmo, a seu silêncio.

 

O predador de si mesmo respira aliviado pela primeira vez, com a ilusão de ter assassinado o resto da Humanidade.

 

Não há rancor, não há o mínimo resquício de religiosidade ou satisfação, é uma alameda sem árvores, sem sombra.

 

Mas deixemos isso de lado, vamos logo às alegorias de praxe: a mão de Leonardo acabou por estrangular a esposa infiel do executivo, o coração partiu-se em três ou quatro pedaços quando a esposa do velho o deixou, o fígado do menino estourou numa cirrose hepática espetacular quando ele cresceu e percebeu a vida como ela é. Já seu rim murmurou seus últimos momentos no corpo da mulher que esperava pela diálise na fila do hospital público. E as córneas, bem, o espírito do homem está em linha direta com sua alma, é difícil prever o que pode acontecer quando um homem vê através de outro homem, são janelas roubadas, são fendas meramente corporais que se corrompem com os anos, a criatura se fecha, há uma ingenuidade salgada & virgem, o langor nostálgico de um monarca destituído, toda a história do Universo se condensa em cristais de visão abissal.

 

Na verdade, não se tem notícia do destino dessa imensidão leve, vazia por dentro e suave como uma criança, mas sabe-se que não deu em boa coisa não.

 

A aflição foi enorme.

 

Tudo estava calmo e, de repente, a escuridão.

 

Foi como um balão que subiu, subiu e incendiou-se perto das nuvens.

 

É compreensível, houve até algumas risadas.

 

Leonardo, enfim, provara sua tese com distinção e brilho.

 

 

 

(Do livro inédito E Se Deus Não Tiver Um Plano B?)

 

 

Furio Lonza é jornalista, dramaturgo e escritor.

 

Publicações: os livros Contos de esquina (São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1977); O que Molly Bloom Esqueceu de Contar (Porto Alegre: Editora Tchê, 1987); As Mil Taturanas Douradas (São Paulo:  Editora 34, 1994; 4a Edição); Guia de Auto-Ajuda para quem Assiste TV (São Paulo: Editora Ensaio, 1996); 40 Anos de Rock  — 3 volumes (São Paulo: Editora 34, 1995); Como enlouquecer  seu filho (São Paulo: Editora 34,  1996; 3a  Edição);  O que é isso, maconheiro? (Rio de Janeiro: Editora Relume-Dumará, 1998); Eric com o pé na estrada (São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2002; 2a  Edição); Máquina  de fazer doidos (São Paulo: Editora Matrix, 2003); Jackie Silva,  biografia de  uma jogadora não autorizada  (Rio de Janeiro: Ediouro, 2004); História do uniforme escolar no Brasil  (Isabel Pires, 2005). Tem contos e poemas publicados nas revistas Escrita, Status  Especial, Ficção,  Poesia Sempre, Coyote, Etcetera, Ácaro.

 

Atividades como jornalista da área cultural: colaborador do suplemento literário Idéias do JB; artigos para revistas Cláudia, Viaje Bem, Superinteressante e Sibila; reportagens para o Jornal da Tarde.  Críticas literárias para o jornal Folha da tarde. Atividades como jornalista da área técnica: editor da revista Mercado Global, da Rede Globo (1995-6); editor da revista Minérios (1992-5); editor da revista  Química & Derivados (1985-7).

 

Atividades como dramaturgo: criação do texto O Traficante (2002); leitura de O Traficante, Sesc Tijuca, direção: Nelson Xavier (2003); adaptação do romance O Amor é Fodido, de Miguel E. Cardoso (2003); leitura de O Amor é Fodido no Sesc Tijuca, sob a direção de Marcos Correia (2003); leitura de O Traficante no Sesc Copacabana, direção de Júlia Miranda (2005); oficina de roteiro da TV Globo (1994); elaboração da dramaturgia das Oficinas do diretor Luiz Carlos Vasconcelos: A Criação Poética da Cena (1998); consultoria dramatúrgica do espetáculo; Pra ver do Céu, direção de Luiz Carlos Vasconcelos (2000).

 

Atividades em produções teatrais: A Vênus das Peles, direção de Maurício Abbud (1999); Bicho solto buriti bravo, direção de Júlia Emília (1999); In Conserto, do Teatro de Anônimo (2000); Espalhando Sonhos, do grupo Seres de Luz Teatro (2000); Xuxu Convida, com Luiz Carlos Vasconcelos  (1999-2000); Pra ver do Céu, direção de Luiz Carlos Vasconcelos (2000); Da arte de subir em telhados,  Armazém  Cia de Teatro (2001).

 

Oficinas literárias: Escrever é fácil (Rio de Janeiro,  Estação das Letras, 1999-2002;  São Paulo, Oficinas Culturais,  1995 e 1996); Romance: Teoria & Prática (Rio de Janeiro, Estação das Letras, 2002  e 2003);  Narrativa: teoria & Prática (Rio de Janeiro. Estação das Letras, 2002 e 2003); Como escrever um romance em grupo (São Paulo, Oficina Cultural de São Miguel Paulista, 1995); Era uma vez atividades intergeracionais (Rio de Janeiro, Sesc Madureira, 1999); Como escrever um livro de contos  (Rio de Janeiro, Estação das Letras, 2000-2003; Rio de Janeiro, Centro Cultural de Santa Teresa, 2003).
 
 
 
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