©neil emmerson

 

 
 

 

Cat Power, ou dor & doçura

 

Chan Marshall é genial: não importa se ao violão, ao piano, com uma guitarra. Qualquer dúvida possível quanto a isso já foi completamente dissipada em 1999, quando lançou pela Matador Records (no Brasil, pela Trama, como costuma ser no caso da Matador) The Covers Record. Surgiu mesmo do underground dos EUA nos bons anos 90 (o baterista do Sonic Youth tocava com ela), e havia gravado Dear Sir (1995), Myra Lee (1996), What Would the Community Think? (1996), Moonpix (1998); depois, faria  I am Free (2003) e The Greatest (2006).

 

A fúria e a atitude underground deram lugar, no álbum de covers, a uma suavidade dolorida reinterpretando magicamente coisas como (I Can’t Get No) Satisfaction, dos Stones — que vira outra música, daquela coisa abertamente nonchalante de Mick Jagger ao vocal lento e contido de Marshall, que sequer canta o famoso refrão; I Found a Reason, do Velvet Underground; Paths of Victory, de Bob Dylan; ou a belíssima Wild is the Wind, já célebre na voz licorosa da grande Nina Simone; entre outras, como a bela Red Apples. Magicamente, como disse, porque são todas músicas já definitivas na origem, e Cat Power lhes deu vida inteiramente nova, muitas vezes em voz e piano apenas. É um feito quase sem paralelo.

 

Depois veio I am Free, em que novamente dor e doçura dão as mãos na obra autoral, cada vez mais bem produzida — sabe-se que seu esquema inicial de gravação eram os amigos que arranjavam, quando possível. Letras sofridas, algumas em que desponta verdadeira sabedoria (Good Woman), acomodam-se à juventude delicada da voz de seda (e às vezes poderosamente rascante) de Marshall, que vai do arranjo do piano solitário ao baixo-guitarra-bateria de He War (+ piano), Speak for Me, etc. Músicos tão bons e diferentes quanto Nick Cave e Eddie Vedder (que participa do penúltimo disco) estão entre os aficionados de Cat Power.

 

Por fim, notar que as asperidades sonoras tão estranhamente aliciantes de seus primeiros álbuns vêm se tornando uma habilidade quase oposta, a de compor canções imaculadas, perfeitas, como em I am Free; e, principalmente no último, The Greatest, vem com mais carga de folk, soul e mesmo country, com um piano que soa como aqueles de saloon.

 

 

Breve farsa iraquiana, em 4 atos (de 2003 até hoje)

(ou To save civilization itself, ou The guy who once tried to kill my dad)

 

 

I   Cowboy

 

"Suas armas de destruição em massa representam uma ameaça à paz":

você observa (por seis meses) soldados com máscaras de gás

revirando baldes e galões vazios numa edícula;

 

II  Gangster

 

"Repito: não queimem os poços de petróleo,

isso será considerado crime de guerra": no fundo

você vê fogo e pilhagens no museu da Mesopotâmia;

 

III  Good cop

 

"Estamos distribuindo alimento para a população civil":

no alto, você vê pacotes amarelos idênticos

às bombas, caindo em direção à população civil;

 

IV  Bad cop

 

"Nossas forças foram levar a liberdade a um povo":

você vê soldados aos gritos apontando metralhadoras

para crianças de colo que, chorando, deixam suas casas e ajoelham.

 

 

Foi só falar: Marcelo Grassmann, exposição no IMS

 

No mês anterior falamos de Grassmann, e, por maravilhosa coincidência, foi aberta uma boa exposição de obras do grande gravurista no Centro Cultural do Instituto Moreira Salles, Rua Piauí, 844, 1º andar, Higienópolis (de terça a sexta, das 13h às 19h; sábado e domingo, das 13h às 18h).

 

Há também desenhos de Grassmann em exposição nos espaço do IMS no Shopping Frei Caneca, Rua Frei Caneca, 569, Consolação.

 

O que dizer? Ah, sim: não percam. Não percam mesmo.

 

 

Dora Ferreira da Silva

 

Dora Ferreira, poeta, tradutora, pessoa culta, adorável e de prodigiosa memória, faleceu no dia seis de abril de 2006, aos 87 anos de idade. Não tivemos muito contato pessoal: nos conhecemos num encontro de leitura de poesia, e tínhamos amigos comuns. Terei ido à sua casa uma ou duas vezes: era um lugar muito agradável, com a atmosfera de seu amor à poesia por todos os lados, um lugar que pertencia e não pertencia à cidade de São Paulo, se é que me entendem.

 

Do nosso primeiro encontro, quando fomos apresentados, ela se recordou claramente quando, meses depois, fui visitá-la e assistir às leituras do grupo de estudo Cavalo Azul, que funcionava em sua casa, e me disse então que havia apreciado meu segundo livro, Descort. Era perceptível também que sua leitura intensa de Rilke, que nos deu algumas de suas melhores traduções para o português, havia se transformado dentro dela num todo complexo, objetivo e intuitivo, certamente valendo lembrar a ótima tradução de Manuel Bandeira no último verso do "Torso Arcaico de Apolo", do próprio Rilke: "força é mudares de vida".

 

Estou olhando agora para Retratos da Origem, livro de poemas de Dora Ferreira, com o qual fui apresentado à sua obra por Donizete Galvão. A capa é um retrato a óleo da poeta em 1972, que estampa uma beleza meditativa nos seus amplos olhos negros. Calha de ser seu livro de que mais gosto: inteligente, de versos fragmentários no grande estilo do alto modernismo, mas permeados daquele refinamento da arte da poesia anterior às revoluções do século XX; mistura de memória e conhecimento dos sinais dos deuses inscritos ainda hoje nas coisas e nas pessoas.

 

É realmente um belo livro de poemas. É com ele que gostaria de fixar a memória poética de Dora Ferreira, lúcida até o fim de seus dias, da luz mediterrânea de onde surgiu a poesia do Ocidente:

 

Arco etrusco

lanterna alta

aldrava

 

Bato à porta da origem

onde nenhum passo ressoa

vindo ao encontro

onde nenhuma voz ecoa

no alegre dialeto

que ri

suspira

canta

onde nenhum beijo umedece a face

semelhante à vossa

e outra no entanto

 

 

 

 

maio, 2006