©nick henderson
 
 
 
 
 

01.06.2005 | Jules Verne, 100 anos de futuro

your heart is like the ocean,

mysterious and dark.

Bob Dylan

 

 

E há esses escritores de obras irresistíveis como Arthur Conan Doyle, ou Jules Verne, de quem, a propósito, recordamos os cem anos de morte. O aspecto oracular de certas invenções avant la lettre não deve nos fazer esquecer de certas linhas nas quais os personagens de Verne parecem antever algumas posições civilizadas do futuro. Minha homenagem consiste exatamente nisso. Vamos ouvir o que o Capitão Nemo tem a dizer sobre a sociedade, em 20.000 Léguas Submarinas:

"Monsieur le Professeur", o Capitão se apressou em dizer, "eu não sou o que você chamaria um homem civilizado! Eu rompi completamente com a sociedade por razões que apenas eu tenho o direito de estimar. Portanto, não obedeço a nenhuma de suas regras, e sugiro nunca invocá-las em minha presença".

Sim, o impecável, cortês e lido Nemo proferiu essas palavras com uma mistura de raiva e desdém. Sua última ligação com as coisas da superfície ― como vocês se lembram, Nemo está no incrível submarino Nautilus ― dizia ele, era a imensa biblioteca que abrigava milhares e milhares de volumes bem escolhidos e encadernados. Sim, é óbvio que se trata de uma história que só poderia ser contada até o século XIX. Hoje alguém toparia com isso e, franzindo o sobrolho: "Como assim, livros?"

E Nemo afundaria o Nautilus alguns milhares de léguas a mais para dentro do oceano.

 

 

04.06.2005 | A Revista, o Dicionário, a Bíblia

No metrô, como todos sabem, vemos e ouvimos coisas muito educativas. Ouvi a seguinte: "Olha a lupa! Olha a lupa! Pra você ler a revista, o dicionário e a Bíblia!".

Claro, ler livros pra quê? O máximo que você vai conseguir que alguém leia, caso sua fé o exija, é uma ou outra passagem do livro dos livros. Bom, e além do mais, seu próprio epíteto o diz: "livro dos livros". Estamos conversados.

 

P.S.: intrigante é o dicionário constar da relação de leitura. Porque é duvidoso que uma revista apresente vocabulário absconso, e nós sabemos que a Bíblia se lê quase como um responsório, sem necessariamente pinçar a curiosidade terminológica das pessoas.

 

 

06.06.2005 | Nova Poesia Brasileira
 
 

              O rem ridiculam, Cato, et iocosam

              dignamque auribus et tuo cachinno.

                                           Catulo

 

        Quase rolei de rir quando abri a edição de Bravo! do mês passado, que anunciava em sua capa a "nova poesia brasileira". Curiosíssimo, pensando surpreso que enfim a nova poesia havia chegado a um veículo de imprensa expressivo, resolvi dar uma olhada. Sempre cum grano salis, mas, sabem como é...

        O texto, na verdade, comentava basicamente a poesia de Eucanaã Ferraz e a de Paulo Henriques Britto: evidentemente, não estou desconsiderando a obra dos dois poetas, mas eles publicam há umas boas décadas. Como assim, então, esse destaque cutting edge?

Várias hipóteses assolam a mente alerta: é a poesia nova para um público que simplesmente não lê; ou, a crítica tem por hábito reconhecer os nomes mais imediatos como os "novos"; passa da veneração a gerações octogenária e septuagenária ao que tiver surgido nas décadas imediatamente posteriores, então chamadas "novas"; tem uma queda por jogar no certo, e daí vai àqueles a quem outros já conferiram prêmios, distinções, que publicam regularmente em grandes jornais, etc. Aos que estão confirmados.

        Ou seja, no Brasil "nova poesia" é uma coisa que chega com algo por volta de vinte anos de atraso, no mínimo. O mais inquietante: não se trata de poesia estrangeira, não é nada que dependa de traduções, apresentações, etc.

A nova poesia brasileira, quero dizer, a nova mesmo, ainda tem uns quinze anos de publicações pela frente, até que alguém na imprensa desperte do estado de hibernação e se saia com um: "Oh, novos poetas!". Daí os novos poetas darão aquele sorriso complacente, harmonioso.

 

 

10.06.2005 | A Queda, e todos caíram nessa

        O preciso, contundente filme de Oliver Hirschbiegel, com a atuação de gênio de Bruno Ganz no papel de Hitler, causou um tanto de polêmica quando deveria ter sido saudado como o primeiro movimento público para um entendimento mais claro do que foram aspectos fundamentais da Segunda Guerra Mundial e do nazismo. Alguns diriam: "melhor ser polêmico". Eu responderia: nem sempre, nem sempre. A polêmica às vezes se deve tão simplesmente à incapacidade geral de compreensão, à rude ignorância, e então ela baixa a quase zero o potencial da obra nas dicussões que se seguem.

        A Folha de São Paulo cobriu o lançamento com três textos do jornal, todos incidindo sobre algum ponto que ou não pertence ao filme em si, ou oferece distorções de julgamento. Por exemplo, o texto numa caixa dentro do Guia da Folha diz: "denota, em especial, um fascínio remanescente pelo espírito ariano, como nas cenas que envolvem o suicídio da família de Goebbels. A obra evidencia que a índole germânica permanece na corda bamba".

        Qualquer um poderia argumentar muito facilmente que a demorada cena do "suicídio" denota na verdade horror ao invés de fascínio (as crianças não pediram para morrer, e uma chega a rejeitar o veneno travestido de remédio pela mãe). Eu não achei nada fascinante fazer um bando de crianças desacordadas morder cápsulas de cianureto. Mas isso sou eu, não é? E o que quer dizer "índole germânica"? Não compreendo. Ou seria isso um resquício do velho determinismo, sugerindo: "esses germânicos ainda podem aprontar". Você nasceu na Alemanha, meu caro, pior para você.

O texto que resenha o filme dentro do caderno da Ilustrada tem um tom ainda mais perfunctório. Vejamos seu início particularmente pervertido: "Ao se suicidar, com um tiro e uma cápsula de cianureto, e providenciar o desaparecimento de seu cadáver, Adolf Hitler privou a humanidade de prazeres como a contemplação de seu corpo e a certeza de sua morte. Serão esses prazeres mórbidos?". Voltamos ao tempo em que se matava o inimigo e era um grande prazer exibir sua cabeça na ponta de uma estaca. Ou nunca saímos dele.

E não se trata da reprodução de um texto de 1945, no calor da hora, mas de um texto escrito 60 anos após o fim da guerra e por ocasião de um filme. Depois, continua na toada de que a obra traduz apenas o "prazer voyeurista" de se assistir aos últimos momentos do nazismo. Tenta também minimizar a caracterização impecável e assustadora de Bruno Ganz no dificílimo papel de Adolf Hitler: "Primeiro vemos mais Bruno Ganz do que Hitler. Com o tempo, esquecemos Ganz", e termina com insinuações parecidas com as do texto do Guia: "Resta esperar, apenas, que tamanho otimismo" (ou seja, assistir o filme vendo um perigo que já não existe) "não seja uma maneira de baixar a guarda. Ou: será que esse perigo já passou?".

Não, ainda acho que precisamos dar uma boa olhada num cadáver. Talvez o autor do texto queira algo à la Guevara, aquela coisa repugnante de se apresentar o cadáver de olhos abertos, um troféu.

O terceiro texto aborda o filme de um ponto de vista histórico, o que, no caso, significa citar O Gabinete do Doutor Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, de Robert Wiene, 1919) na chave sociológica para o escrutínio, nesse conto hoffmaniano, "do traço autoritário nuclear da Alemanha". Isso é reproduzir Siegfried Kracauer, que escreveu De Caligari a Hitler, onde encontramos o seguinte exemplo de delirante extrapolação crítica, bem ao gosto sociológico: "O personagem de Caligari (...) representa uma autoridade que idolatra o poder como tal e, para satisfazer seu desejo de dominação, viola impiedosamente todos os direitos e valores humanos. Funcionando como simples instrumento, Cesare é não tanto um criminoso culpado como uma vítima incocente de Caligari (...) Intencionalmente ou não, Caligari expõe a alma oscilando entre a tirania e o caos e enfrentando uma situação desesperada: qualquer fuga à tirania parece atirá-la num estado de completa confusão. Logicamente o filme difunde uma atmosfera saturada de horror. Como o mundo nazista, o de Caligari transborda de portentos sinistros, atos de terror e explosões de pânico".

A pérola é esta última sentença, vamos reler: "Como o mundo nazista, o de Caligari transborda de portentos sinistros, atos de terror e explosões de pânico". E eu pergunto ao gentil leitor e à gentil leitora, que filme de terror não partilharia essas mesmas características grosseiramente gerais? Oh, mas é claro, são todos uns nazistas.

David Robinson, que escreveu em 1997 um livro sobre o filme de Wiene (O Gabinete do Doutor Caligari, publicado aqui pela Rocco, de onde foi retirada a citação do texto pífio de Kracauer), já ressaltava que essa era uma leitura, no mínimo, ultrapassada: "Tampouco é a visão kracauerina do filme, como uma metáfora fecunda da psique do povo alemão e um presságio dos pesadelos futuros, tão convincente ou atraente como parecia há meio século". E o nosso gentilíssimo Robinson evita polidamente, portanto, dizer que isso é uma imbecilidade.

Enfim, o que foi ignorado nesse três textos da Folha que pretendiam falar de um filme? O próprio filme. E é aí que está a prova da necessidade de A Queda: passados 60 anos dos horrores da Segunda Guerra Mundial, em que venceram os mocinhos da bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki, queremos nos certificar de que vimos o cadáver de um sujeitinho medíocre e maníaco como Hitler, na esperança de que ele não fosse o demônio que, por outro lado, desejamos separar de nossa humanidade intacta diante seus crimes aterradores, do genocídio que ele ordenou.

Mas o filme garante, diante dos nossos olhos (e isso foi o que fez os resenhadores sentir a necessidade de uma posição clara de repúdio às suas ambigüidades, como também fez o diretor Wim Wenders em seu texto equivocado) que os crimes da guerra partiram da obediência — ou conivência — gerais a um louco mesquinho, e que todos eram tão humanos quanto você ou o seu vizinho. Não é voyeurístico, é filosófico, se você quiser; não está acariciando a memória dos nazistas (Hitler tem linhas dizendo que o povo alemão pode morrer até a última pessoa, pois se revelou fraco, e também que se orgulhava de ter conduzido o genocídio de judeus); não está dizendo que os germânicos andam ou andaram numa corda bamba, mas dá o seguro recado de que andamos todos. E por isso a câmera se aproxima insistentemente dos nazis, de Hitler, por isso ela nos enfia no claustrofóbico bunker de grossas paredes cinzentas. E é apenas essa compreensão que pode evitar um outro desastre do tipo.

A propósito, como vai o cowboy da Casa Branca?

 

 

11.06.2005 | Nine Inch Nails, Bush e a MTV

 

        E os Nine Inch Nails desistiram de tocar no MTV Awards depois de o canal ter censurado o pano de fundo com a foto de George Bush, que a banda usaria durante a apresentação. Trent Reznor garantiu que seria uma simples foto, intacta, mas foi em vão. Concluiu que a MTV deve detestar Bush mais do que ele, já que não quer nem ver a cara do presidente.

        Mas a moderna e descolada MTV na verdade tachou o comportamento deles de "partidário", ou "faccioso". A minha opinião é a de que é bem mais faccioso excluir a possibilidade de protesto sob essa desculpa grosseira para se pôr panos quentes na história.

        O detalhe curioso disso tudo é que a propaganda bélica do governo Bush é exatamente a de levar a liberdade americana para os povos oprimidos do mundo. Palavras como pastéis de feira, muito bacanas por fora, com óleo fervendo e vento, por dentro.

 

 

14.06.2005 | Franz Kafka não sabia
 
        Não, ele imaginou muitos horrores burocráticos que se tornaram cotidianos, mas isso ele não sabia: que hoje os críticos são mais conhecidos que os autores; que os regentes são mais conhecidos que os músicos; que os curadores são mais conhecidos que os artistas plásticos.
        Vivemos numa canção de impossibilia. No mundo bizarro, das histórias do Superman. Na terra quadrada do mundo bizarro.

 

 

chamaeleonte@yahoo.com.br