ÊXODOS

 

vá para o ardor que te adense

vá para o salto que te sacuda

vá para o passado que te pertence

vá para o ruído que te restaure

vá para o frêmito que te festeje

vá para o vértice que te vasculhe

vá para o crepúsculo que te carregue

 

 

 

 

 

 

A TARTARUGA TARTAMUDA

 

deixem passar, abram alas amiúde

à tartaruga que, de ruga em ruga,

só pede calma ao tempo, tartamuda,

pra aprender a envelhecer dentro

da juventude, de ruga em ruga

 

 

 

 

 

 

 

POEMA TELEOLÓGICO

 

d'aprés Dante Milano

 

De onde você veio

Há uma coisa branca

De carne, de luz.

 

Pra onde você vai

Há uma noite funda

Fria e sem Deus.

 

De onde você veio

Há talvez um seio,

Talvez um ventre;

 

Talvez um braço

Onde repousar,

Pra onde você vai.

 

Nenhum problema filosófico

De onde você veio;

Há uma gruta

Pra onde você vai.

 

Há o fim do mundo de onde você veio,

Há uma praia deserta (tudo é exílio)

pra onde você vai.

 

Há luzes brilhando

Com intensidade tamanha

Que não consigo mais ver

De onde você veio

Pra onde você vai

 

 

 

 

 

 

CRUZEIRO 2X1 ATLÉTICO

 

pensava

em minha filha

na doce luz

da manhã

 

no que

a bola

bateu

na trave

 

perdi

a chance

do empate

já nos descontos

 

a torcida

não entende

tanta coisa

que acontece

 

no lance

do relance

de um átimo

de segundo

 

 

 

 

 

 

PHILIP LARKIN ENCONTRA VINICIUS DE MORAES

 

não mais que de repente

volto para a cama depois de mijar

 

orvalho nas orquídeas do quintal

 

e penso:

 

não deste alternativa

não curaste a ferida

nenhum acontecimento assombroso

 

apenas

abriu-se a flor do tempo

alterniflórea

 

 

 

 

 

 

TAMBOR

 

tudo

principia

com

um

som

um estampido

que arromba

um domingo

de chumbo

no mundo

eco de trombeta

fundo

sem assombro

 

vislumbre

de sombra

na penumbra

por si já

abumbrosa

tudo começa

tudo sucumbe

com um som

de tambor

ou

texto

truncado

 

 

 

 

 

 

O TEXTO QUE VAI

 

o texto

que vai

aqui

escrito

não é meu

 

nenhuma

linha

jogada

 ao infinito

 

palavra

alguma

me pertence

 

desconfie

de tudo

 

pode ser

que seja

 

disfarce

disfarçado

de desastre

 

ou

 

plágio

que se despede

da sombra

e vai

na direção

contrária

 

 

 

 

 

 

ENCANTAMENTO PELO SAMBA

 

a  poesia está com tudo

e não está prosa

 

a poesia

não tem pressa

não tem prazo

não tem glosa

 

a poesia

está em ramos

está em rosa

 

rima petrosa

texto veludo

escrita porosa

 

quem

por acaso

mantém

acesa

a brasa

 

e vibrando

a brisa

da história

 

prima

por ser

vazada

de

proeza

 e glória

 

a poesia

está em tudo

e não é prosa

 

 

 

 

 

 

A EDUCAÇÃO DOS SENTIDOS

 

lá vem você

entre estrondo

e gemido

chamando

à fala

mãos que tocam

o que poderia ter sido

e olhos que dizem

"sou todo ouvidos"

 

 

 

 

 

 

OUTRA COISA

 

não é arma

não é arte

que disfarça

é outra coisa

parece que é

babel

balbúrdia

alvoroço

mas não

é outra coisa

não é

estardalhaço

não é farfalhar

de árvores

é outra coisa

que deu o ar

de sua graça

 

 

 

 

 

 

MANHÃ

 

manhã

tão

magnífica

que

a

moça

de

olhos

de

amêndoa

ignoraria

se

surgisse

o

apocalipse

entre

as

magnólias

 

 

 

 

 

 

IN A SENTIMENTAL MOOD

 

Desde os primeiros dias

trocaremos palavras, beijos, até que

a chama, sotto voce, acenda: isto

ainda não é amor. Juntos iremos a cafés,

trocaremos presentes, passados, ambrosia, dançaremos

o tango até que o suor nos banhe, ainda não é amor.

Tem vértebra de amor. Tem carnadura de amor.

Tem inflorescência de amor (mas ainda não é).

Seremos devassos, tímidos, loucos e serenos,

êmbolos violentíssimos, pele na pele, não é amor.

Esperaremos o que nos reserva o futuro,

láudanos, lêmures, látegos, a irrisão de ser.

Mas o futuro, isto ainda não é amor.

Aquele bric-à-brac de lembranças

que chama à fala certo sorriso com suaviloqüência.

Certo sussurro roçagante.

Aos sábados o disco do john coltrane.

Domingo dormiremos mais que a cama, até que venha

a segunda terça, e isto ainda não é amor.

Amor virá com álulas em noites insones.

Contraíremos dívidas, brigaremos por motivos

fúteis, em vão nos amaremos: isto ainda não é

amor. Mas eis que a vida

nos consome

e morremos,

e isto

ainda

não

é

 

 

 

 

 

(imagens ©feebee)

 

 

 

 

 

Fabrício Marques (Manhuaçu-MG, 22/11/1965). É poeta e jornalista. Reside em Belo Horizonte. Entre 2004 e 2005 foi editor do "Suplemento Literário de Minas Gerais", publicação fundada há 40 anos pelo escritor Murilo Rubião. Seu livro de estréia é de poemas, Samplers (editora Relume Dumará, 2000); em seguida, o ensaio Aço em flor: a poesia de Paulo Leminski (Autêntica, 2001), aprovado e publicado pela Lei de Incentivo à Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte, 2000; também de poemas, Meu pequeno fim (poemas, Scriptum, 2002). Em 2004, lançou Dez Conversas — diálogos com poetas brasileiros contemporâneos (Gutemberg, 2004). Participa das antologias Na virada do século: poesia de invenção no Brasil, organizada por Cláudio Daniel e Frederico Barbosa (Landy, 2002) e Poesia em movimento, organizada por Jorge Sanglard (Editora da UFJF, 2002). Também integra Os cem menores contos brasileiros do século (Ateliê Editorial, 2004), organizado por Marcelino Freire. É mestre em Teoria da Literatura pela Faculdade de Letras da UFMG, e doutor em Literatura Comparada na mesma faculdade, com a tese "Um estudo dos poemas de Sebastião Nunes a partir da articulação entre poesia e técnica".