Pedaços do esqueleto

 

/ se eu quebrar com meus sonhos / e só restar o tédio medonho, / a decrepitude, a tristeza infinita / o monturo (na vida, na escrita) / nenhuma cia. de seguros / vai arcar com o prejuízo / então, / dou um basta à bosta toda / redesenho o traço da boca / deito um sorriso lindo para o mundo / respiro fundo, vou com tudo / porque é assim (e só assim) que se tem que ir // a av. Paulista correndo é tão engraçada / parece uma cobra de marshmellow / uma viagem de ácido / uma enguia eletrocutando a língua / os olhares, os colares, tristes demais / estupefatos, oleosos, covardes e sem razão / a cavoucar a cidade atrás de um tostão / ou de um milhão / pobres diabos e diabos ricos a rastejar / quarteirão a quarteirão / uns com ar condicionado, mp3, Honda, / apartamento mobiliado, aulas de inglês / outros não / a gente que tem / heliporto / vinho do porto / trabalha no horto / não passa fome nem morto / e a gente que / disfarce a disfarce / ganha apenas o necessário / para endividar-se /

 

 

 

 

 

 

Takka Takka

 

Para Zhô Bertholini

 

entre arcos, carros, pactos, a vida escorre

viscosa, com o veneno da esperança,

já sem biografia, sem a umidade dos dedos

degustando-a em contorno de dicionário.

 

a luz, redimida do inferno, estilha

sobre a coragem do dia-a-dia, cai,

desaba. a luz é uma sangria. porém,

grita (outra luz) sonhos e coleção

de casamentos, onde a felicidade

acaba antes do noticiário. nítidos, todavia,

socos nos tímpanos, formigas de chumbo

a escavar as vísceras, pântano no estômago.

 

a ternura fria com que a madrugada

desperta a manhã - sem canhões, distanciando-se

com seus pesados passos, guardando suas

tralhas no esquecimento das estrelas.

 

nas sobras da cidade (da noite)

um rosto esguio, juvenil, debaixo

de olhares nublados de sono,

ponteado a benday, já-ido,

vaza.

 

 

 

 

 

 

Tramóia trapaça e treta

 

"Vossa excelência é

mais transparente do que

o líquor de uma pessoa

que não tem meningite!"

: orgulha a goela do nobilíssimo

ao naco patético do sufoco nacional.

 

a máfia pudibunda escoa seu scotch

à paisagem de nádegas especuladas

da abundante suruba monetária.

 

como sempre (para sempre),

a pátria pária patina na escória.

- diante tal disparatada partilha

(fundadora já antiga de desastres,

perfeita má fé que a tudo anula)

ser seria um refrão pequeno, mínimo,

aziago?

 

 

 

 

 

 

Canto de insônia

 

alguém na vida da minha mulher sonha em plantar eucaliptos.

na vida da minha mulher, alguém não consegue se lembrar dos sonhos da noite anterior.

no porta-retratos da minha mulher a família está desfalcada.

na bolsa da minha mulher há balas de menta extra forte e trocados para o ônibus.

há também, na bolsa da minha mulher, o clássico de Melville.

o que mais me intriga, entretanto, é que alguém na vida da minha mulher

sonha em plantar eucaliptos. talvez isso me assuste um pouco; mais,

muito mais, que a sala vazia, que alguém que aguarda,

uma saudade de pedra, o amor na enseada.

 

 
 

Canção de ninar

 

Sleep pretty darling, do not cry,

And I will sing a lullaby

Lennon & McCartney

 

na noite de 25 de dezembro

havia luar.

a claridade favoreceu a perseguição feroz

de Blûcher.

não sei exatamente

em qual ponto me perdi.

quando ela disse

"os idiotas não morrem de tédio",

pensei nos trezentos e tantos muitos dias

que jamais caberiam em um sorriso

- nem de alegria, nem de desespero.

havia

uma formiga

em um dos botões do buquê de rosas

vermelhas

que eu escolhi para a Ju.

(uns dias antes, o céu estava azul,

mas um azul estranho, pérfido,

um azul com câncer).

algumas estrelas coloridas no corpo

da garota que esperava e ouvia mp3 -

(Strokes? talvez Nick Drake).

tudo isso

enquanto eu pensava em meu pai.

 

as flores ficaram.

credo quia absurdum. amo quia turpe, quia indignum.

quando a gente vive

com muito pouca grana

há uma necessidade atroz

de se portar como cristão,

de amar o próximo.

na verdade, todo aquele sangue,

o esforço meio camponês (atropelar

três tetrâmetros trocaicos

por algumas garrafas de Jack Daniel's),

tudo isso foi

foi

foi (por falta de outra

palavra que me contente (ou

a vocês) ou que me comova)

foi muito, muito

 

turquesa

 

demais.

 

 

 

 

 

 

Poema n.56

 

nas sendas do sonho

ela ia falando falando

(era americana e seu nome: Sylvia)

e falava muito (vestia

camiseta roxa) torrando frases em francês

(tinha uma caderneta de

anotações sobre as coxas) topando

expressões latinas (os olhos

talvez em chamas) deitando

elegância de mulher fina

à sua exposição leve

enquanto tomávamos chá de morango

o rádio estava ligado

Angola Congo Benguela

Monjolo Cabinda Mina

Quiloa Rebolo

Aqui onde estão os homens

Há um grande leilão

Dizem que nele há

Uma princesa à venda

Que veio junto com seus súditos

Acorrentados num carro de boi

aprendi, naquele espaço

de antimatéria inexplicável

que, depois de uma tarde

daquelas (não posso esquecer-me

dos cookies e de dois ou três

poemas que lera em sua língua),

na floresta encantada da linguagem,

onde quer que uma joaninha pouse

acende-se uma flor

de noigandres

 

 

 

 

 

 

E-mail para Marcelo Montenegro

(Subject: anotações para um filme dos anos 30)

 

Overture:

(trilha sonora: silêncio)

desdobrar de planos, fora de foco, imagem sobre

imagem sobre imagem

vassoura detetives luvas de pelica

becos sujos água intensa deserto no rosto oásis

terror amor humor: nenhuma ventura ou princípio

(Well I stand up next to a mountain

I chop it down with the edge of my hand)

o bico do abutre estraçalha os sonhos do homem

o bote da naja porta um orfanato portátil

envenena a deliciosa ceia do caos;

a explosão beatífica de um par de havaianas:

- Wild side - Dark Side of the Moon - Paradiso - Bedrock -

- Saturday night - Pepperland - Beggars Banquet -

- Highway'61 - Big pink - Electric Ladyland - Elm street -

- Morrison hotel - Green river - 4-way street -

- Baurets - Fun house - Pasárgada - Purgatorio - Crystal Lake -

- Houses of the Holy - Olimpo - Oz - Dogville -

- Éden - Asgard - House of rising sun - Mars - Neverland -

- Ilha da Fantasia - Transilvânia - Lilliput - Sertão -

- Wonderland - Inferno - Whitezone - Taverna -

- Mont Parnasse - Salisbury - Michê no Alaska -

- Recife ou São Paulo ou Rio - Smallville - Townsville -

- Yoknapatawpha - Room of fire - Nutopia -

- peliculadosonhodapropriapeliculadosonhosonhando -

outras (elas) esferas; from genesis to revelations;

 

Harpa:

Jimi silencioso

como la salamandra de amianto iridiscente

cactos perto do copo de cognac

lassidão bestial

dedilhando o braço de Hermes

Hendrix come um flamboyant

abre um aspargo

- os pequenos deuses do beco tomam-lhe a bênção -

do recesso de sua agonia nasce a derradeira diva

acesa

tem sede de nuvem

saltam de seus olhos dois peixes do dilúvio

 

 
 
 
(imagens ©posag | flea)
 
 
 
 
 
 
 
Fabiano Calixto. Poeta, tradutor e ensaísta. Publicou Algum (edição do autor, 1998), Fábrica (Santo André: Alpharrabio Edições, 2000), Um mundo só para cada par (Santo André: Alpharrabio Edições, 2001), este em parceria com Kleber Mantovani e Tarso de Melo, Música possível (São Paulo/Rio de Janeiro: Cosac Naify/7Letras, 2006) e Sangüínea (São Paulo: Editora 34, 2007). Edita, com Angélica Freitas, Marília Garcia e Ricardo Domeneck, a revista Modo de Usar & Cia.
 
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