Você escancara a janela, deixando entrar os primeiros raios solares no quarto modesto. Sob um teto de telhas antigas e ripas quase podres, uma mesa, três tamboretes, um cabideiro pendurado na parede. Água fresca numa moringa e dois copos de vidro que já foram potes de extrato de tomate. No chão, uma esteira fazendo as vezes de tapete, sobre o qual dormem dois pares de chinelos. No teto da casa, você vê os pernilongos que jazem presos nos fios quase invisíveis de uma teia. Entra um cheiro de verde e estrume, risos de passarinhos e cores de manga e tamarindo. Uma fímbria de sol lambe os pêlos finos de Isaura, ainda dormindo, nua, sobre o lençol quarado e engomado, cheio de amassos, contrastado pela colcha de retalhos.

 

Você sente falta do vício. Um cigarro cairia bem. Os dedos indicador e médio se aproximam, ato reflexo, falho, inconsciente. O canto dos lábios ainda guarda o hábito de manter um hiato. Mas você já abandonou os vícios. Todos eles. Um médico, ainda que de bichos, tem o dever de cuidar da própria saúde.

 

Ela saíra da capital em um ônibus, às dez horas da manhã. Chegara à sede do município às cinco da tarde. Depois, mais uma hora e meia em um jipe, cortando acessos de terra batida, até chegar ao vilarejo. Após vinte minutos caminhando, chegara exausta à casa, sem mandar aviso. No fogão de lenha, carne de porco assada, farofa, arroz e café: um banquete para quem está morrendo de fome. Depois, você faz amor com ela a noite inteira. O seu último contato fora apenas uma carta, em que você informava que iria viajar, passar algumas semanas fora, trabalhando. Você queria ficar sozinho. Mais que isso, você precisava ficar sozinho, para saber o quanto de você restara. Você se pergunta incessantemente o quanto vale a pena insistir na vida que tem levado. Ela entrou em sua vida com a sutileza de um rinoceronte e a leveza de um colibri.

 

É para sua esposa? Quer que embale para presente? Ela vai gostar. O senhor tem muito bom gosto. Sim, estou trabalhando aqui somente há três semanas. Estou gostando muito. Sabe como é, desde que me casei, parei de trabalhar. Sou, sou casada já há onze anos, estava precisando sair um pouco de casa. Não, não tenho filhos. Ah, ele é muito possessivo, você não sabe o quanto eu tive que brigar para voltar a trabalhar e estudar. Cansei daquela vidinha de dona-de-casa privilegiada. A empregada fazendo tudo. Geralmente eu saio às seis e meia. Acho que sim. Não, não tenho problemas em chegar mais tarde, o Magno está viajando. Combinado, então, às sete na praça de alimentação.

 

Você hoje se pergunta o porquê daquela abordagem. Claro que ela é linda. Mas isso não é tudo.  Talvez apenas a necessidade de conversar com alguém desconhecido, conhecer uma nova pessoa. Não, você sabe que havia algo além disso. Alguma coisa naquela mulher lhe fazia promessas de fortes sentimentos. Um olhar sensual, como o da professora Dalva, que tanto lhe dera aulas particulares de sexo, no colegial.

 

Olá! Cheguei na hora! Não, nem sempre eu sou assim tão pontual. A vida sedentária deixa a gente mal-acostumada. Sim, aceito um chope. O que você quiser. Como qualquer coisa. É verdade, sou casada há onze anos. Obrigada, são seus olhos. É que eu casei muito jovem. Não tenho vergonha de dizer minha idade, isso é uma tremenda besteira, o que importa é a nossa saúde física e mental: tenho vinte e nove anos. Acho que é porque sempre me cuidei. Nunca fui de fazer farras, ir para a balada, como dizem hoje. Magno foi meu primeiro namorado pra valer, meu primeiro homem. Sério. Perdi a virgindade com dezoito anos. Dei o cabaço pro Magno e nunca conheci outro homem. Não, não tenho vergonha de falar pornografia. Isso é falso pudor. Além disso, acho cabaço uma palavra sonora, bonita. Soa forte. E é tão simbólica! É sério. Pede mais um chope.

 

Você sabe, tudo é uma questão de referenciais. E evitar comparações é o caminho mais fácil para ser feliz. Isaura é, possivelmente, a quadragésima mulher que você penetrou: no corpo e na alma. E a melhor de todas. Você sempre acha que a melhor é a última. Não por elas, mas porque você, a cada vez, consegue aumentar a intensidade do seu prazer. Amor?

 

Hoje eu não sei se amava o Magno. Foi tudo muito rápido. Eu estava louca para ter minha primeira experiência sexual e ele louco para trepar com uma menina de dezoito anos. Ele gostou, eu também, e continuamos transando ao longo destes anos todos. Mas hoje eu não me casaria com um homem como ele. Não, não é que ele seja ruim de cama. Eu não sei o que é um homem bom ou ruim de cama: só tive ele. É que, a cada dia, tenho menos tesão. Claro que variamos! Em onze anos dá para fazer de tudo. Eu não tenho restrições. Já transamos em todos os lugares, em todas as posições, de todos os jeitos. A novidade acabou, está tudo muito igual. Você é casado há quanto tempo? Tem filhos? Um casal? Do primeiro ou do segundo casamento? Eu sempre quis ter um filho, mas o Magno... Pede outro chope.

 

Você não tem certeza sobre esse tal de Amor. Isaura se vira na cama, coloca preguiçosamente o travesseiro sobre a cabeça. Está exausta, depois de seis orgasmos. Vai acordar com uma fome felina e morder a sua orelha como se fosse um petisco. Você já conhece cada curva daquele corpo, a profundidade da sua vagina até sentir o DIU, o sabor do seu ânus. Tudo que ela gosta, o que lhe dá mais prazer.

 

Eu sabia que ia ser delicioso. Estou acostumada com uma um pouco menor. Você me fez sentir uma mulher outra vez. Você me toca com tanta delicadeza! Há tempos eu não tenho um gozo tão maravilhoso! Que bom que você gostou. Eu entendo. Ainda vamos nos ver de novo?

 

Durante duas semanas vocês se encontram todos os dias. E cada dia foi melhor que o anterior. E a cada vez você se perguntava porquê outra vez e se lembrava de Maura. Se ela descobrisse, como voltar a olhar em seus olhos? Seria o fim. Mas tudo não tem um fim? É possível amar duas pessoas, ao mesmo tempo, com a mesma intensidade?, você se pergunta, ou tudo não passa de sexo e amizade? Completamos nossas carências, afetivas e fisiológicas. Incompletude, esta é a palavra. Você sabe que a provocou, foi você quem a convidou a sentir novas experiências, novas emoções. Você queria comê-la. E continuar comendo-a. Você não lhe deu a menor chance de defesa, enredou-a completamente. O sol já se faz mais presente, o dia espreguiça-se, você vê um cavalo velho que passeia, pisando o capim que devora. Ela viajara algumas centenas de quilômetros para fazer amor com você e gritar amor da minha vida no terceiro gozo.

 

Magno, eu vou viajar. Viajar, viajar, ora, preciso descontrair um pouco. Pedi uns dias de folga. A Luísa é minha amiga, lógico que ela não iria se importar com minha falta. Não sei. Vou sair por aí, sem destino. Não pirei, não, Magno. Outro? Que outro? Ficou maluco, é? Só preciso ficar sozinha, pensar um pouco sobre minha vida, nossa relação. Não tô a fim de discutir nada agora, Magno, quando eu voltar a gente conversa. Não sei, o tempo que for necessário. Eu te ligo quando estiver voltando. Não, não vou levar a porcaria do celular, Magno. Que saco! Você pode me permitir um pouco de liberdade? Ah! obrigada, meu senhor! Sobre o que eu quero pensar? Ah! agora você quer saber até o que eu penso? Tá bom, não preciso pensar mais. Quero dar um tempo. Agora, pensa você sobre isso. Tchau!

 

Mas você sabe que a Maura lhe ama. Há algum tempo ela não verbaliza isso, mas você sabe. E isso você não consegue desprezar. Você se lembra que cada uma daquelas mulheres tinha algo em especial: uma cor de pele, um gosto na bunda, um cheiro nas axilas, um jeito diferente de revirar os olhos quando goza. Cada uma, ao seu modo, inesquecível. Maura era todas e nenhuma, não a melhor, mas ela mesma. Plena. Não precisava de você, nem de ninguém. Esperava sua volta, após dias e dias de ausência, e o saudava como se você tivesse saído há meia hora, para comprar remédio. E depois lhe fodia, ou melhor, continuava a foda de onde ela havia parado. Com Maura, a foda nunca acabava, deixando seu corpo eternamente insatisfeito. Você se diz que não a ama. Não as ama. Não ama ninguém

 

Surpresa! Posso entrar? Será que estou atrapalhando? Não agüentei saber que ia ficar mais tantas semanas sem lhe ver, sem sentir você dentro de mim. Eu preciso de você. Não, ele não sabe pra onde eu fui. Dei uma de louca, chutei o pau-da-barraca. Foi fácil chegar, você deu todas as dicas na carta, quase um mapa. Eu percebi que você queria que eu o seguisse, mas não se sentiu à  vontade pra pedir. A viagem foi longa, mas sei que vai valer a pena. E aí, posso ficar com você? Que bom. Agora, me dá um beijo que eu tô morrendo de saudade. Eu te amo! Não dá mais para viver com o Magno. Eu só quero você.

 

Isaura faz amor como uma louca, como se cada uma fosse a última trepada da sua vida. Isso a fazia diferente. Isso fazia com que você sempre atendesse aos seus desejos. Você a vê abrir os olhos. Sua primeira expressão é de desejo. Ela contempla o seu corpo nu, de alto a baixo. Espreguiça-se, rola no colchão, fazendo as molas chiarem. Exibe suas formas generosas. Ela percebe a alteração no seu corpo. Apóia-se nas mãos e nos joelhos e lhe chama, quase implorando, vem meu amor, me come de novo, bota aqui na minha bundinha, vai! Você se aproxima lentamente, provocando-a. Lambe suas costas, acaricia-lhe a buceta, puxa-lhe os cabelos.

 

Depois do café você sabe que vai precisar mandá-la embora. Para sempre. Você sabe que vai ser difícil, você sempre teve dificuldades em terminar relacionamentos. Além disso, Isaura não lhe exige nada, ela sabe dos seus compromissos, só quer fazer amor. E ela é tão doce e apaixonada! Por que não viver, simplesmente, enquanto for bom? Você quer se convencer que esta é a última, como um fumante que sempre pensa que aquele é o ultimo trago. Mas sabe que está mentindo.

 

— Eu sei que você pensa em terminar comigo, amor. Não precisa. A cada vez que nos despedimos, para mim, é como se fosse a última. Relaxe. Feche a janela e finja que eu nunca estive aqui.

 

 

 

[Conto premiado com o quarto lugar no VII Concurso de Contos da Petros, RJ, 2007)]

 

 

(imagens ©eliot siegel)

 

Goulart Gomes (Salvador, Bahia, 1º/5/1965) é graduado em Administração de Empresas, Especialista em Literatura Brasileira (UCSAL) e pós-graduando em Comunicação Integrada (ESPM-RJ). Criador da linguagem poética Poetrix e um dos fundadores do Grupo Cultural PÓRTICO. Publicou os livrosde poesia Anda luz (1987), Todo desejo (1990), Sob a pele (1994), Trix, poemetos tropi-kais (1999), LinguaJá, o território inimigo (2000), Esfinge lunar e outros enigmas; a peça teatral A greve geral (1997); o cordel A divina comédia (1989); Todo tipo de gente, contos (2003) e Matrix revelations — tudo o que você queria saber sobre o filme, ensaio (2005). Obteve 63 prêmios em concursos de poesia, prosa e festivais de música, destacando-se duas Menções pela Academia Carioca de Letras e União Brasileira de Escritores (RJ, 2000 e 2001) e o Primeiro Lugar no Prêmio Escribas de Poesia (SP, 2002). Integrou 27 antologias no Brasil, Cuba, Espanha, USA, Itália e Coréia do Sul e, ainda, trabalhos divulgados no México, Portugal e França. Sites: www.goulartgomes.com e www.movimentopoetrix.com.
 
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