Marte
Sua beleza me escandalizava. Sentia-me
pequena, enojada de mim mesma. Lâmina na garganta. Pouco a pouco ela foi
me tomando. Minha cabeça a mil. Inferno. Vinte e quatro horas com
aqueles olhos estranhos — só presto atenção em mulheres com olhos
estranhos.
Andava pelas ruas à sua espreita.
Dilacerada entre as luzes da cidade. Um fantasma cultivando sua raiva.
Eu queimava meu braço com bituca de cigarro, cortava-me com gilete.
Queria morrer, mas o relógio badalava incessantemente na parede do
quarto. Quase me rasguei inteira, feito vaca em matadouro.
O canto silencioso da sereia. Ela pode
ouvir os demônios dentro do meu peito, pode brincar com eles, deixar meu
coração em frangalhos, ir embora.
Era uma quinta-feira chuvosa, semana
passada também foi quinta-feira. Em Abril faz frio. Ocaso. Então uma
música tocou dentro de mim. Perscrutei sua alma, fodendo a carne com
fúria e volúpia. O purpúreo de sua boca se intensificou, escorreu pelo
pescoço. Imprimi minhas marcas em seu corpo, às vezes lívido, às vezes
éter. Inferno.
Vésper triste e bêbada tinha um
sorrisinho agridoce.
Caixinha de música
Silenciosa, platônica e distante,
sufoquei-a dentro de mim, e das entranhas ao céu da boca você me
sufocou. Como a cobra mordendo o rabo que tatuei no lado esquerdo do meu
peito.
Meu coração sujo parece uma caixinha de
música, daquelas antigas com a bailarina rodopiando no meio e uma música
triste saindo de dentro dela.
Queria sonhar o mesmo sonho, com o
remorso derramado, feito Pandora, vi seu rosto se afastando, seu
sorriso débil a meio fio, seu sorriso de véspera.
(Todas as palavras que deixei de te
dizer têm cheiro de chuva agora)
Caminhamos de mãos dadas
na alameda sob o crepúsculo, na bruma delicada do
esquecimento.
Cocaína
Seus lábios ácidos encostaram-se aos
meus lábios adormecidos, embaixo e em cima, assim e ao contrário. Com
fúria e euforia, aspiração e sucção.
Rasgaremos as cortinas e estenderemos os
lençóis sujos em praça pública, com nossas caras mal passadas e mal
dormidas (como santas apedrejadas ou putas carbonizadas).
Lanço-te minhas tranças de Rapunzel e
você com seu coraçãozinho-de-lata-e-negrume vem ter com meus mais
delirantes pensamentos.
Meninas más não vão para o céu,
Valkírias não virão recolher nossos corpos. Baby, só me deixe então
acariciar seu dorso com minhas unhas de navalha e fazer dos seus
ondeantes cabelos carmesim o meu agasalho para o fim da noite sem luar.
Quando os primeiros raiozinhos de sol
invadirem as frestas da janela do quarto, seremos apenas e tão somente
pó.