©matthias clamer
 
 
 
 
 
 
 
 

        Elefante, de Francisco Alvim, representa um momento de afirmação dos vetores de força principais da obra do poeta. Aqui, como nos textos reunidos há doze anos, temos, de um lado, a ostentação de uma atitude "antipoética", que se materializa no gosto pela recolha da frase-feita, do lugar-comum discursivo ou de expressões típicas de uma classe ou ambiente social; de outro, a manutenção, em alguns momentos, de uma dicção mais alta, em que reencontramos uma sintaxe, uma imagética e uma dicção mais tradicionalmente identificadas como "poéticas". Neste volume, o que há de novo é a redução do número de textos desse último tipo — que, no seu caso, se resumem de ordinário a uma espécie de pastiche de Drummond — e a acentuação do gosto pelo "poema piada" ou "poema-cocteil", para usar as denominações de Sérgio Milliet e Mário de Andrade.

         No caso de Francisco Alvim, a segunda expressão é preferível, pois a maior parte dos textos busca não a graça da piada, mas produzir o sorriso elegante, crítico e distanciado, que se origina da percepção do choque entre a expressão banal e a inteligência culta que se exibe nas coxias do poema. Eis alguns exemplos de poemas breves: (1) Balcão / Quem come em pé  / enche rápido. — (2)  O gênio da língua / Corno manso / Bobo alegre  — (3) Tetéia / Quem te deu esse brinquinho? / Comprei lá na feira do Gaminha — (4) Irani manda Gilson embora / Eu mando / Mas ele não vai. — (5) Argumento / Mas se todos fazem — (6) Um guarda-chuva / Un objet de circonstance / (um objeto de circunstância) / a été oublié dans la salle d'attente / (foi esquecido na sala de espera) — (7) Psiu / Volto já — (8)  Una más! / Servidor! / Caramba!

         Essas e outras "boutades" um pouco mais longas prevêem um público evidentemente educado, que se diverte no trânsito entre as línguas, ironiza pequenas fofocas palacianas, se reconhece na experiência do tédio burocrático, aprecia a crítica elíptica dos maus costumes nacionais e valoriza uma forma específica de incorporação do popular: o ready-made que, por contraste com o resto, acaba produzindo freqüentemente um retrato entre irônico e sentimental (e às vezes culpado) do vulgar. Também me parece claro que o melhor leitor previsto nesse tipo de procedimento de montagem é o que é capaz de, desprezando a trivialidade e a repetição exaustiva do procedimento, interessar-se mais pela intenção de alegorizar o país que está presente nestes recortes frasais e nessa sistemática oposição dos registros. Ou seja, o leitor ideal da poesia de Alvim é o que está disposto a descobrir-lhe ou ressaltar-lhe a intenção paródica e política, e a apostar, dessa forma, que nisso reside algum tipo de excelência poética, de que seus poemas participam.

Quanto a mim, concordo com Mário de Andrade: o poema-cocteil é uma das piores coisas da literatura brasileira. Não só, como pensava já em 1931 o autor de Losango Cáqui (e provavelmente não sem autocrítica) a propósito de Drummond e de Bandeira, porque é o índice de uma "inteligência incapaz e fatigada", mas principalmente porque, como também reconhecia, trata-se de uma forma discursiva apenas aparentemente sofisticada: "antes de mais nada, isso é facílimo: há centenas de criadores de anedotas por aí tudo". É verdade que Alvim não cria anedotas, mas apenas fragmentos, esboços, índices minúsculos de anedotas possíveis. Mas a repetição monótona dos procedimentos e a evidente proposta de compor uma alegoria "crítica" com os ready-made lingüísticos reduzem o alcance e o interesse dos seus poemas a um objeto de salão, conversa pouco mais que trivial e levemente cifrada. Ou seja, o efeito de sentido é muito semelhante ao do poema-piada típico modernista, mas com uma diferença: não se apóia esse tipo de poesia apenas numa cumplicidade de expectativas literárias, isto é, numa comunhão de gosto ou crença de "política literária". Apóia-se, isso sim, numa cumplicidade de alcance mais abrangente: geracional, amplamente politizada e, claro, também de gosto. Celebrada num pequeno grupo, onde é proclamada grande poesia, a de Francisco Alvim, no meu entender, pouco tem a oferecer além do círculo fechado de referências e práticas culturais de que ela é a glosa e, ao mesmo tempo, a retrospectiva e irônica celebração.

Por outro lado, é preciso reconhecer que, se há quem consiga propor com alguma repercussão crítica esses enunciados banais (que parecem fazer da mediocridade dos procedimentos o próprio núcleo do sistema de composição) como grande poesia de interesse geral, então ou os textos ou a figura pública ou a inserção intelectual de Francisco Alvim entre os colegas de geração possuem uma força que é preciso melhor considerar e compreender. Talvez porque os poemas me pareçam desinteressantes sob qualquer ponto de vista que privilegie a sua concretude textual, penso que a sua capacidade de mobilizar ou permitir investimento cultural tão forte quanto o que tem recebido só pode atribuir-se aos outros dois fatores, a algo que eles implicam ou representam e a que alguma crítica se esforça por subordinar os critérios comuns de apreciação da qualidade estética.

Para glosar, por contraposição, uma dessas frases que tanto atraem a atenção do poeta, creio que, aqui, o buraco está mais em cima, isto é, a questão da repercussão geracional não tem a ver com idiossincrasias apenas, mas procede da alteração de formações culturais muito amplas, cujas conseqüências ainda demorarão um bocado para se fazer sentir em toda a sua extensão.

É que, neste momento, a longa hegemonia dos pressupostos, do gosto e dos critérios de avaliação do Modernismo de 1922 — tão firme, vetusta e duradoura, pelo menos, quanto a Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo — parece finalmente fazer água por todos os lados. Até onde posso ver, já estão bastante abalados os principais esteios das sínteses mais consagradas da história literária brasileira: o ponto de vista teleológico que organiza a narrativa a partir da afirmação do internacionalismo progressista da modernidade paulista, a crença na ilustração cultural como forma de superação do atraso brasileiro e a oposição rígida (tão típica dos anos 50 e 60) entre "esteticismo" e "participação".

Minhas hipóteses críticas e explicativas do descompasso entre o que leio na poesia de Alvim e o que leio em certa vertente crítica prestigiosa procedem dessa percepção, e são duas. A primeira é que, talvez por isso, porque o Modernismo vai se tornando cada vez mais uma velha experiência histórica, seja fácil hoje sentir o caráter cediço de tudo aquilo que, no livro de Francisco Alvim, o repete e que poderia ser denominado, como um seu poema breve, Hommage à Oswald, ou subsumido na dedicatória de um outro, mais longo: "A Carlos Drummond de Andrade". A segunda é que talvez também por isso, num gesto deslocado, as homenagens ao antigo paradigma ainda possam encontrar nesse tipo de poesia (agora como há pouco mais de uma década) um lugar privilegiado de focalização e de celebração ritual. Essas formulações críticas, porém, como a própria poesia de Francisco Alvim, já não têm o mesmo apelo nem o mesmo vigor como atualização dos ideais modernistas. Pelo contrário, para além do virtuosismo no manejo de um repertório poético gasto, de categorias teóricas e procedimentos críticos muito bem conhecidos, o tom de ambos assume um sabor cada vez mais passadista, e os poemas e a sua crítica entusiasmada se deixam ler convincentemente como evocação, celebração já nostálgica dos estilemas e das certezas modernistas, tal como se foram cristalizando nos últimos quarenta e poucos anos.

 

 

 

[Publicado em O Estado de S.Paulo, 5 de novembro de 2000]

 

 

 

 

 

 

março, 2007