Depois de se ter longamente ocupado da poesia e da
poética de Manuel Bandeira, Davi Arrigucci dedica-se, neste livro, a
outro grande poeta brasileiro. O leitor informado pela leitura de
Humildade, Paixão e Morte — A Poesia de Manuel Bandeira imediatamente
perceberá as semelhanças. Se apreciou aquele, certamente apreciará este,
caracterizado pela mesma linguagem corrente; pelo gosto pela paráfrase,
que dá valor conceitual às imagens centrais encontradas no objeto
poético; pelo rápido trânsito entre a vida e a obra, de modo a iluminar,
por vários ângulos e aspectos, uma prática poética em que ambas se
entranham e desentranham, em arranjos variados.
Mas se o livro sobre Bandeira se apresentava desde
logo como uma leitura ampla, pautada por um desenho temático-biográfico,
o título deste, Coração Partido — Uma Análise da Poesia Reflexiva de
Drummond (Cosac & Naif, 160 págs., R$ 35), parece circunscrever o
enfoque a apenas uma parte da obra de Drummond. Entretanto, a leitura
revela, logo nas primeiras páginas, que o esforço crítico não é afinal
tão diverso, pois o autor se empenha em promover a identidade entre
"poesia reflexiva" e "poesia de Drummond", ao mesmo tempo que reafirma
em vários níveis a identidade entre poesia e expressão do vivido.
A combinação de escopos
diferentes e objetivos semelhantes distingue os dois livros em tom e
estilo. O consagrado a Bandeira é um comentário minucioso e inclusivo:
busca harmonizar as aproximações anteriores num quadro compreensivo
amplo e pretende superá-las pela maior completude e abrangência do
desenho da personalidade poética. Já esse ensaio sobre Drummond é um
texto animado por uma tese exclusiva, por uma argumentação que tem
adversários que precisam ser abatidos para que a nova interpretação
possa afirmar-se.
O livro se divide em
quatro partes: O Xis do Problema, Humor e Sentimento, Dificuldades no
Trabalho e Amor: Teia de Problemas. A primeira consiste na apresentação
da tese principal do livro. As demais se articulam como análise de
texto: Poema de Sete Faces; Áporo; e Mineração do
Outro.
Românticos
O Xis do Problema, tal
como aparece logo na segunda página, "é o modo como a reflexão, que
espelha na consciência o giro do pensamento refletindo-se a si mesmo, se
une ao sentimento e à sua expressão poética, determinando a configuração
formal do poema, num mundo muito diferente daquele dos primeiros
românticos e da poesia meditativa que inventaram". (pág. 16) Se
quisermos ir além do truísmo de que o mundo atual é mesmo muito
diferente daquele em que se moviam e argumentavam os primeiros
românticos, como entender essa passagem, que o autor nos apresenta como
fundamental para a compreensão do foco do seu livro?
Esse pensamento que gira e
se reflete a si mesmo pode ser dignificado como eco da Lógica de Hegel.
E é possível talvez manter a baliza hegeliana quando esse auto-reflexo
do pensamento, por sua vez, é "espelhado" na "consciência". Mas ao
constatar que o agente desse espelhamento de segundo grau é a
"reflexão", talvez a melhor saída seja imaginar que o uso aqui já é o do
senso comum, como em "refletir sobre a vida".
Na seqüência, o agente (ou
o produto?) desse duplo espelhamento, a "reflexão", une-se ao
"sentimento" indeterminado e à "expressão poética" desse mesmo
sentimento (ou da "reflexão", pois o enredo e a sintaxe permitem
ambigüidade) para produzir a "configuração formal do poema".
Desse conjunto de
asserções resulta que há duas instâncias distintas: a "expressão
poética" e a "configuração formal do poema", sendo esta última um
produto de alguns fatores, entre os quais se inclui a "expressão
poética".
A leitura não esclarece em
que consistiria o caráter poético de uma "expressão" anterior à
"configuração formal", ou de que maneira a "expressão" determinaria a
"configuração", nem porque só à "configuração" se aplica o adjetivo
"formal". A impressão é que se trata menos de uma precisa formulação
teórica, do que de rearranjo de lugares-comuns românticos, de extração
variada, que têm como denominador a defesa da poesia como "expressão".
Impressão essa que se reforça pela recorrência, ao longo de todo o
livro, de asserções gerais de forte sabor
romântico.
'Alma
coletiva'
Perto do fecho do volume,
por exemplo, Arrigucci transcreve e apóia uma frase de Carpeaux, segundo
a qual Drummond teria dado "expressão individual ao que havia de mais
fundo na alma coletiva do povo brasileiro" (pág. 103). Sua ressalva é
apenas que essa captação da alma coletiva não se restringiria, como
pensava Carpeaux, à fase da sua "poesia social". Em outro ponto, lê-se
que "concentrado sobre si mesmo, sobre seu próprio coração, Drummond,
sempre meditativo, se esforça por dizer o difícil, repto da grande
poesia, que depende da fidelidade à busca e a si mesmo" (pág. 41). Em
vários momentos, postula-se que "a fidelidade a si mesmo é um traço
fundamental de Drummond" (pág. 21). Em outros passos, de forma coerente,
afirma-se que "a lírica é a linguagem que dá expressão aos momentos mais
densos e importantes da existência" (pág. 104), e que a obra poética
"não se reduz ao documento histórico, embora também o seja; ela é,
antes, como historiografia inconsciente, o registro atual do que se
passou na interioridade de um homem durante seu tempo vivido e ganhou
expressão correspondente". (pág. 103) Além disso, por toda parte termos
como "coração", "sentimento", "alma" reaparecem insistentemente, sem
aspas nem distanciamento, de modo a garantir a unidade de registro de
base.
Resulta daí que esse livro
pareça concebido para ser a explicitação da matriz romântica do
pensamento do seu autor. Desse ponto de vista, as passagens mais
notáveis são a límpida postulação da existência de um volksgeist,
transcrita acima, e as sentenças construídas sobre os grandes vocábulos
oitocentistas, como esta: "O infinito do sentimento é um acidente do
coração, existe em potência como um querer que não se preenche de todo,
mas busca a vastidão, como um movimento contrário de sua própria
privação, oco do querer sem jeito onde reside seu não-poder" (pág. 41).
O ponto alto desse
neo-romantismo é a passagem na qual o crítico convoca Schiller, na
tradução de Márcio Suzuki, para aproveitar a dicotomia
ingênuo/sentimental. Nessa atualização, os pólos modernos são Drummond e
Bandeira. E lemos: "O modo de criar de Bandeira se revela afim àquele
que caracteriza o poeta 'ingênuo' de Schiller (...) Identificando-se com
a simplicidade humilde, que toma por um valor de base, sua poesia flui
espontaneamente seguindo a natureza, fonte escondida, latente sob o chão
mais despojado".
Paráfrase
O método do livro é
basicamente o mesmo de Humildade, Paixão e Morte, porém aqui ganha mais
peso a estratégia da paráfrase quase literal. Como neste trecho: "E só
através daquela estrada de Minas, pedregosa, que conduz à 'máquina do
mundo' e ao enigma — estrada imaginária que a mente desenha —, se pode
buscar a unidade de estrutura da obra como um todo, cujos traços de
coerência profunda vão apontando mesmo nos poemas breves, de corte
humorístico, do início" (pág. 15). Nessa frase, as aspas recobrem apenas
o ponto central, embora outras expressões sejam extratos drummondianos.
Seria ocioso transcrever outros exemplos.
O risco dessa aposta na
sedução da paráfrase é a indiferenciação dos discursos. Como os
conceitos são fluidos também nas partes em que a paráfrase não é
dominante, ocorre em vários passos que o texto acabe por ser uma mescla
de registros, um pastiche: nem discurso crítico, que traduza a poesia
para outro vocabulário; nem transfiguração da crítica em poesia de
qualidade. Assim, crítica e poesia saem perdendo: a poesia resultante do
texto crítico, porque é naturalmente frouxa, sem resistência nem
estranhamento, e só produz o déjà vu, seja em relação ao objeto, seja em
relação à teoria; a crítica resultante da incorporação da poesia, porque
fica sem nervo, ao entregar-se inteiramente ao objeto, relegada a
combinação conveniente dos estilemas e das figuras que vai glosando.
Por isso, o maior
interesse desse livro reside na sua polêmica tese central:
a de que a obra de
Drummond não pode ser descrita como terá sido até hoje.
No entendimento do autor,
"entre a irreverência modernista da primeira hora, com a linguagem
mesclada da dicção coloquial-irônica, e a densidade reflexiva posterior,
quase sempre em tom elevado e classicizante, parece haver uma notável
diferença de estilo e do modo de representar a realidade", "na verdade,
porém, as coisas não são bem assim, e essa oposição radical nunca
existiu. Assim como nunca aconteceu, em termos dilemáticos, aquela
opção, inventada depois pela crítica, entre um pretenso formalismo e a
participação social" (pág. 18).
Fases?
Não está claro se o ponto
da polêmica é que não há oposição estilística, se essa oposição
estilística é apenas aparente, ou se ela é desprezível em si mesma. De
qualquer forma, o adversário maior do ensaio é a postulação de que a
obra de Drummond se divida em fases. Arrigucci a desqualifica pela
afirmação de um "sentimento do mundo", que seria o mesmo e subjacente
aos dois momentos, garantindo, assim, a sua unidade básica. Para ele, o
que importa de fato é o "modo de ser real dessa poesia, que desde o
começo trouxe em si mesma o fermento de superação dos problemas que
jamais deixou de incorporar, absorvendo nas camadas profundas a
experiência histórica, que não se confunde necessariamente com os
eventos de fora" (pág. 18).
O raciocínio não teme a
tautologia: há um modo de ser real da poesia de Drummond, que é una,
coerente e dialética, porque a poesia de Drummond é grande poesia e toda
grande poesia é fiel à busca de si mesmo e, como tal, consiste na
revelação da marca do sentimento do mundo; logo, os outros modos
atribuídos a essa poesia pela má crítica não são reais, pois, sem
apreender ou aceitar o real modo de ser, a má crítica "inventa" ou se
engana; a boa crítica, portanto, é a que revela ou busca revelar esse
modo de ser real por meio da análise e do comentário dos poemas em que o
modo real se manifesta.
O
caráter combativo do ensaio se afirma numa de suas frases iniciais, já
transcrita, que também circunscreve o interesse crítico: "Só através
daquela estrada de Minas, pedregosa, etc.". Mas a pergunta que se
apresentará a muitos leitores familiarizados com a fortuna crítica de
Drummond é: "Uma vez definido um limite tão estreito como esse, como
fugir ao destino inevitável dessa estrada?" Ou ainda: "Por que razão
seria preciso operar, em nome da 'unidade de estrutura', uma tal
limitação da perspectiva crítica e, no limite, do interesse da obra de
Drummond?".
Se uma dessas perguntas
for formulada durante a leitura da primeira página, ficará sem resposta
ao longo das demais, pois as análises apenas reforçarão os pressupostos
ideológicos da hipótese crítica, ao fazer, por meio do mecanismo da
paráfrase, que escolhidos versos e poemas, digam o mesmo (ou pouco
menos) que a primeira postulação interpretativa.
Por
não responder a perguntas como essas, nem no nível teórico, nem com o
rendimento das análises, esse livro terá por certo dificuldade de se
afirmar como trabalho de especial interesse, entre tantos já publicados
sobre a poesia de Drummond. E por operar a partir das balizas e dos
pressupostos que o informam, dificilmente poderá desincumbir-se da
tarefa que o seu autor lhe atribui, logo na pág. 19, que é a de ser uma
contribuição para que Drummond venha a ocupar "o lugar que lhe cabe no
panorama internacional da poesia moderna".