©jacob lopes
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Que pena o Diabo não existir.

(Carlos de Oliveira. O Aprendiz de Feiticeiro)

 

 

 

Fui convidado pelo Fábio Chiossi, da Folha de S. Paulo, para participar de um debate sobre Literatura Brasileira Hoje, de Manuel da Costa Pinto, no auditório do jornal, ao lado de Artur Nestrovski, editor da Publifolha, e João Cézar de Castro Rocha, professor da UERJ. O livro, para resumi-lo numa frase, selecionava 30 poetas e 30 prosadores que o autor considerava os mais relevantes da produção literária contemporânea.

Gosto de top lists, gosto de fazer e discutir escolhas, e talvez tivesse gostado de ir ao debate, não fosse pela coincidência da sua data com a do meu aniversário de 50 anos, para a qual já tinha combinado uma comemoração com a família e os amigos. Para complicar ainda mais a possibilidade de comparecer a ele, havia lido apressadamente o livro e percebido que se tratava de um trabalho muito incipiente, que não me parecia render grande coisa como reflexão crítica. E havia ainda o detalhe não pequeno de que se tratava de um debate no dia do lançamento do livro, ou seja, um debate que deveria promover o livro e não discutir seriamente a seu respeito, o que, no caso, implicaria certamente criticá-lo. Como não me agradava especialmente a idéia de fazer ali o papel de um estraga-prazer, inevitável, caso lá comparecesse, sendo o livro como é, e eu tal como sou, acabei recusando participar. À noite, no momento em que o evento deveria estar acontecendo, eu me encontrava celebrando minha longevidade, no meu restaurante favorito de S. Paulo, o Arábia.

Não ter aceito o convite, contudo, não me poupou de alguma conversa sobre o livro, pois vários dos amigos que me acompanhavam eram do ramo da literatura — e quase acrescento "infelizmente", uma vez que acabou dando nisso mesmo que vou contar aqui. Pouco adiantaram os meus protestos de que eu estava no Arábia a fim de fazer o que ali havia de ser feito, isto é, comer e beber, e não debater, uma vez que deixara voluntariamente de comparecer ao local próprio para isso. Pediram-me ao menos que lhes dissesse o que não gostara no livro. Jurei-lhes que essa seria minha última palavra a respeito, e depois disso, se quisessem continuar com aquela discussão, que o fizessem à vontade, mas sem mim, que me comportaria então como simples e desinteressado espectador.

Tendo todos concordado, observei rapidamente que o livro me parecia sofrer de toda sorte de problemas, desde os teóricos e críticos, que me interessavam mais, até os de falta de rigor e relevância no estabelecimento de critérios coerentes da seleção de autores, já que havia muitas ausências injustificadas, muita descrições equivocadas de obras e ainda um corporativismo flagrante em muitas escolhas.

— Eis tudo — completei — agora, à kafta!

Mas qual! Todos estavam menos com fome de comida do que de palavras, o que bem demonstra a insensatez daqueles meus camaradas, ou a minha, já que escolhi passar ao lado deles a comemoração do meu meio século de vida. E na minha família, devo registrar aqui solenemente, datas são um negócio muito sério. Minha irmã Aline, por exemplo, já desfez um casamento porque o marido não achou que tinha obrigação de levá-la para uma viagem comemorativa. Também os meus amigos, como o ex-marido, não levaram em conta os meus protestos. Alguma hesitação que tivessem em me contrariar não resistiu à fala de Cristiane, minha mulher, que os liberou para tagarelarem à vontade:

— Alto lá, meu caro: já que você não quer falar mais nada, não fale mais nada. É seu presente de aniversário. Mas nós vamos falar a respeito do livro, pois o assunto é relevante. O livro tem repercussão, ao menos em São Paulo, quer por ser lançado pela Folha, quer por se tratar de um crítico que escreve regularmente no jornal, cuja fala, portanto, independentemente de seu mérito próprio, tem sempre alguma ressonância.

— Cris, please, relevante é o sabor desta kafta!

Como se não tivesse me ouvido, Cristiane adotou para si o papel de moderna Isabela D'Este e propôs o seguinte aos meus amigos: — Para organizar o simpósio, vamos dividir inicialmente os problemas em 5 ou 6 diferentes ordens, tais como as que o Alcir enumerou, e então tentaremos enunciá-los de alguma maneira razoável. Assim alimentamos a cabeça, e não apenas o estômago, como parece ser o deliberado cuidado do aniversariante. Cuidado, aliás, curioso: como se pensar à mesa fizesse doer o estômago ou estragasse a digestão. Velhice pode significar talvez isso mesmo: uma disposição severa de se poupar...

— Sim, a velhice chegou para você, meu amigo — completou cruamente o Paulo Franchetti, dois longos meses mais jovem que eu: — não é apenas o meu ouvido esquerdo que já não ouve os grilos, mas também a sua boca e o seu cérebro, que já não assoviam juntos.

— Que espécie de imagem é essa? Você mal chegou e já está cheio de arak, meu velho. Não tente ir além desse ponto de incongruência e tome lá esses valentes quitutes de sua antiga gente – disse eu, apelando para o Elias Allane que ainda havia nele. E voltando-me para os outros, jurei: — Já lhes disse que, de minha boca, não sai uma palavra a mais do que as que deixei de dizer no debate a que não fui.

— Perfeito — disse Cris — não é preciso que diga mais nada. Mas se você não serve para debatedor, não vamos tolerá-lo como censor. — E para os outros: — Qual era mesmo a primeira ordem de problemas referida pelo nosso crítico mudo?

— Teoria — disse o Paulo —, este é o ponto agora. Qual é a questão que ela suscita no livro? Aliás, alguém aqui leu o livro? Quem não leu não tem direito de opinar.

— Eu li — arriscou iniciar o debate um avermelhado Eric Sabinson, amigo e colega de Departamento. — E tive uma sensação estranha: o livro fala de literatura atual como um jovem... do século XIX. Por exemplo, o autor parece jamais ter sonhado com qualquer coisa fora de uma concepção representacional da literatura. Isto é: de uma literatura tomada como reflexo, ou mesmo como transcriação da realidade, mas sempre como uma coisa que existe apenas em função de uma realidade supostamente completa fora dela.

— Pois é — acrescentou o Paulo. — A literatura mesma não é pensada ou reconhecida como ato de realidade. Ato pleno, que realmente faz coisas ao dizer, que interfere, e não apenas que reproduz ou informa o já existente ou autônomo em relação à palavra. O autor é, em suma, certamente mais velho que o aniversariante de hoje, pois há bem mais de meio século isto caducou.

— Caducou e já foi tarde! — continuou o Eric. — Não tenho nenhuma saudade dessa velha mitologia iluminístico-romântica, na qual literatura e mundo são, primeiro, uma dicotomia; segundo, uma dicotomia pensa, na qual só o mundo tem peso.

Achei o Eric um pouco retumbante demais para um início de noite. Devia estar tenso por sair do brejo de Barão Geraldo e de se ver no meio de tanta gente. Pensei comigo que ele se sairia melhor na defesa de seu ponto de vista se lançasse contra os representacionistas alguma alegoria cujo herói fosse seu velho cão, o Gigli. Sempre me admirei da maneira como ele girava sobre si mesmo até encontrar a perfeita implantação no terreno para deixar sua merda. Se o terreno fosse o mundo e a merda a obra literária, não teríamos uma perfeita imagem do caso? Um representacionista acharia que a merda era pura transparência, e que apenas o chão era suficientemente consistente ou real. Ia pegar naquela merda toda e jurar que o cheiro que inundava o lugar era apenas perfume da grama. Eu iria adiante na exploração de minha imagem canina e merdácea, se meus pensamentos não tivessem sido interrompidos pelo Paulo:

— O aspecto representacional da obra... — Isso mesmo, da "obra" — pensei comigo — ... literária, pressuposto pelo livro, está ainda, no caso, a serviço de uma concepção nacionalista da literatura, quer o autor queira ou não. Pois, no livro, o princípio representacional associa-se ao chamado "sistema literário", de extração candidiana. Evidentemente, a condição de legibilidade do "nosso" sistema literário apenas se sustenta com base na noção de nacionalidade autônoma e num método cuja precedência analítica é sociológica, no qual a literatura é apenas meio de entrada numa realidade mais profunda, mais decisiva ou complexa.

Eric voltou à carga, desta vez, para minha felicidade, de mente dada ao bravo Gigli:

— O nacionalismo fica evidente já no velho e constante emprego da fórmula: "nossa" literatura, "nossa" poesia, "nossa" prosa, enfim, "nosso sistema literário". O conceito supõe e produz uma comunidade natural e homogênea — "nós"! Mas, como já disse o Tonto: quem somos "nós", cara pálida? O meu cão, por exemplo, sempre que passa uma cadela em frente de casa, vai correndo me chamar para vê-la desfilar. Ele nunca suspeitou que eu não fosse também um dos "seus", isto é, um de "nós", os cães.

O meu amigo de infância, Celso Queiroz, que fazia aniversário no mesmo dia e viera do Rio para comemorarmos juntos, surpreendentemente empolgou-se com a questão:

— "Nós" é um saco ideológico; no meu, é um tremendo pé. Quando alguém escreve "nós", eu logo penso: lá vem chumbo. E vem sempre o enunciado de uma gente muito comum, muito igual, que em seguida vira universal e transforma o resto em "resto". Para cada "nós", há sempre uma porrada de "não-pessoas", o residual irrelevante.

Paulo tornou ao raciocínio anterior, estranhando um pouco a veemência do Celso, cujo humor entre o sangüíneo e o colérico, sempre chegava ao início em ponto de bala, e completou:

— Para mim, uma das conseqüências da articulação de representação e nacionalismo está clara: a discussão literária que há no livro simplesmente ignora as questões poéticas, quase nada é dito de ritmo, métrica, figuras, disposição...

Régis Bonvicino, que havia se mantido calado até então, deu aí o seu palpite:

— Ele também não diz nada a respeito do debate literário internacional e contemporâneo. Os poetas internacionais citados — dos prosadores, nada digo — são todos do fim de século XIX, começo do XX. Quem lesse o livro desavisado, ia achar que estamos na iminência de uma revolução modernista!

— Sim, nada diz do debate internacional. E sabe porque não diz, nem pode dizer? Porque isso certamente o levaria à problematização da idéia de comunidade nacional natural, da qual o livro é inteiramente tributário — arrematou o Eric.

Cristiane aplaudiu a conclusão e considerou sabiamente que já era hora de virar o disco. Claro que, ouvindo isso, não perdi a oportunidade de contestar:

— Caríssima, por favor, já tagarelamos demais sobre o pobre livro. Desse jeito, aliás, falando tanto dele, vocês vão acabar valorizando-o mais do que merece. E, francamente, esta mesa magnífica não está sendo honrada como deveria. Diante dela, não é razoável nenhum tipo de avaliação que não seja gastronômica.

Como se estivessem combinados entre si, todos me mandaram ficar quieto, já que não me dispunha a participar da discussão. Tive de me calar, entre vaias; e embora vaiado, não tardei a recuperar a alegria com um saboroso babaganuche.

— Vamos falar um pouco de questões de crítica — determinou Cristiane. — Mas antes de passar a palavra a mais alguém, queria dizer que, ao ler o livro, me espantou a razão alegada para a fixação do número "60" como limite para a escolha dos autores. Diz Manuel que como o livro dele é o número 60 da coleção Folha Explica, achou oportuno escolher 60 autores! Não se trata apenas de arbitrariedade, pois bem sei que toda escolha pode dar margem a alguma arbitrariedade, justificada de uma maneira mais justa ou menos justa, mas a questão aqui é outra. A razão da escolha, mais do que arbitrária, é boboca; mais do que boboca, é frívola. Não lhes parece que essa adoção pacífica da frivolidade ofende a área? Falo disso porque, na minha, a da História da Arte, essa pecha me incomoda muito.

— É uma merda — concordou prontamente Luis Dolhnikoff, que aproveitara aqueles dias já friozinhos de outono para voltar a dar o ar de sua graça na sua cidade natal. — E um sintoma de um apequenamento geral. Nesse caso, para tentar escapar um pouco pela tangente, o livro agrega poetas-penduricalhos aos poetas-verbetes. Eu mesmo, aliás, sou um poeta-penduricalho. Como aqueles filhotes de orangotango, que ficam pendurados por um braço no corpo da...

— Mas há coisas mais graves a dizer — aparteou o Celso. — Também folheei o livro, e achei que tudo nele era "glosa da glosa". Li essa expressão num livro do Eduardo Lourenço, com a qual ele designava o que costumam fazer os críticos e admiradores de Saramago, que muitas vezes apenas parafraseavam o que ele próprio dizia a respeito de sua obra.

Pensei comigo que, no Brasil, o mesmo ocorria com vários críticos do João Cabral, mas, claro, calei-me. Não queria uma nova sessão de vaias no combalido lombo cinqüentão. Entretanto, continuava o Celso:

— Não conheço procedimento mais contrário à crítica do que esse, que adere aos próprios pressupostos do autor ou àquilo que o autor diz de si; aliás, ele sempre o diz, como é comum a todos, escritores ou não, de modo a parecer melhor do que é ou acredita ser.

— A expressão "glosa da glosa" é boa — era o Luis novamente —, ou seja, pseudocrítica. Essa atitude é mais do que evidente no livro. Por exemplo, nas inúmeras vezes em que incorpora versos à própria argumentação. Olha aqui o que diz do Manoel de Barros... — saca o livro de algum lugar, e lê alto: — "A poesia de Manoel de Barros dá voz a um ‘indivíduo que experimenta a lascívia do ínfimo’". Assim, versos do próprio poeta, postos fora de contexto, ganham foro de verdade e, o que é involuntariamente engraçado, de descrição factual.

— Crítica rendida à glosa... — completou e suspendeu o Paulo, enquanto tentava discar algum número num celular azul cobalto. Mas é possível que tenha realmente completado a frase, e simplesmente eu não a tenha ouvido, com a ressonância aguda em meus ouvidos da frase: 'indivíduo que experimenta a lascívia do ínfimo'. Ninguém deveria ser obrigado a ouvir algo assim à hora da refeição, muito menos ao mastigar aquelas deliciosas folhinhas de parreira encharcadas de azeite libanês. Uma frase dessas, por si só, deveria banir — ad nutum — o seu autor de qualquer antologia literária, até o fim dos tempos. Pensei em dizer alguma coisa em protesto contra aquela frase estúpida, mas me contive a tempo e preferi continuar mastigando aqueles admiráveis charutinhos.

Entretanto o Luis prosseguia, não sei se tão bravo quanto parecia: — O caso do Haroldo de Campos é ainda pior. Ouçam isso: "o 'labor sintaxista' se traduz em poemas cujas palavras compõem ideogramas". Deixando de lado o fato de que não imagino o que signifique "cujas palavras compõem ideogramas", trata-se de uma paráfrase do próprio Haroldo a respeito das suas pretensões. Portanto, o livro compra a pretensão de graça e a repassa como verdade, o que se agrava ao não dar o crédito devido.

Régis concordou: — Sim, não há créditos...

Ia prosseguir o raciocínio, mas o Luis não afrouxava a mordida:

— Um minuto só, Régis. Ainda sobre o Haroldo, mais especificamente no que é dito a respeito de Galáxias, o livro continua tomando o alheio e passando-o adiante como próprio. Apesar das aspas, notem como o livro define o poema: "É uma espécie de ‘prosa do significante’". Ora, é o Haroldo quem diz que o livro é "prosa do significante". Sem dizer a origem, o livro afirma tranqüilamente que Galáxias é uma prosa do significante. E a destaca como a melhor obra do autor numa seção de... poesia brasileira.

— Quer dizer que a melhor obra de poesia brasileira está em prosa? — indagou espantado o Eric, nunca suficientemente acostumado com as inovações locais, as quais a bem dizer ele amava, mas nunca sabia atinar porquê. E loaba a todos com um riso deliciado.

— É. Galáxias é prosa, apenas não tem narrativa. Falo da linguagem — confirmou Luis. — O que, não por acaso, está explícito no livro: seu primeiro fragmento, espécie de introdução, fala de mil e uma noites, estória, começo, fim, fábula...

— Isso não me parece tão simples — discordou o Celso, que ia acrescentar as razões de sua dúvida, quando foi interrompido pela Cristiane:

— Espera aí, Celso, mais tarde podemos voltar à questão do gênero mais adequado a Galáxias, mas agora concentremo-nos na questão da crítica que se comporta como glosa. — A tentativa de disciplinar aquele bando me pareceu comovente.

— Certo. Tenho outro exemplo — prosseguiu um animado Luis: — Vejam: diz o livro que a poesia de Gullar "nasce da experiência e do espanto". Porra, a idéia de que "a poesia nasce do espanto" é uma declaração famosa do próprio Gullar, depois transformada em verso. E está outra vez incorporada como fato.

— Não há créditos... — insistia o Régis, sem conseguir interromper o fluxo dolhnikoffiano:

— Régis, por favor, um minuto só. Outro exemplo: o que é dito do Carlito Azevedo, poeta, aliás, de quem tenho vontade de escrever algumas coisas. — E olhou meio enviesado para o Régis, que havia deixado de publicar uma crítica sua para a revista Sibila. Régis notou o olhar e não gostou:

— Um momento, Luis. Você está querendo me dizer alguma coisa, diga logo. Por mim, publicava e publico ainda agora o seu texto sobre o Carlito. Só não podia passar por cima do Conselho Editorial daquele número. Tinha gente lá que achava o tom muito pesado, mas não eu, de jeito nenhum. Aliás, agora é você que não quer que ele seja publicado, pois eu já lhe pedi novamente o artigo.

Luis prosseguiu, sem polemizar: — Certo, Régis, depois a gente conversa. Mas ouçam isto: Carlito Azevedo "evita cuidadosamente cair na abstração formalista". Mas apenas porque escreveu em Ao rés do chão: "A idéia é não ceder à tentação / de escrever o poema desse não — // lugar...".

— Francamente — arrematou o Abel Barros Baptista, querido amigo português, que chegara há instantes e estivera a ouvir com vago interesse a fala do Luis —, admito que é confiança demais nos enunciados dos próprios autores a respeito deles mesmos. Em todo caso, a crítica é sempre o oposto da glosa. Ela trata de desapropriar o autor de seu texto, entregá-lo a leituras sem mais dono ou controle autoral.

— Ótimo, Abel. — disse o Paulo, folheando o Literatura Brasileira Hoje. — Com isso, você liquida também o romantismo encomiástico e kitsch que o livro dá como sendo o seu propósito crítico: "compreender o alcance e a permanência da aventura da escrita".

Por mim, achei a frase até tocante, mas todos se puseram a rir como se fosse a coisa mais engraçada do mundo. O Régis apenas não pareceu achar graça, preocupado em retomar o ponto que mencionara anteriormente:

— Notem que o livro quase não faz menção a críticas anteriores a ele, ou às fontes das críticas que adota como suas, embora inclua poetas já maduros, sobre os quais muitos já escreveram. E, nas poucas vezes em que cita alguém, é, em geral, incongruente. Por exemplo, ao citar Wittgenstein em relação a Marcos Siscar, que é referido no verbete dedicado ao Júlio Castañon. Nada contra o Siscar, ao contrário, mas a citação não é própria, nem faz sentido. Como disse o Alcir naquele artigo da Folha, é o método Costa Lima: citar Baudelaire e Kant para falar de Uchoa Leite.

— Régis! — protestei eu, que malgrado minha vontade, acabava prestando atenção na conversa — eu não chamei isso de método, nem o batizei com o nome do Costa Lima, crítico a quem admiro. Disse apenas que o Costa Lima, às vezes, faz crítica dessa maneira: lançando referências demasiado distantes ou elevadas para poetas muito menos conhecidos, ou de bitola mais estreita, na linguagem pitoresca daquele antigo deputado frasista do PFL. Jesus! Não se pode descuidar um instante e vocês já lançam alguma maledicência! Sorte que o Costa Lima não está ouvindo, senão não ia me perdoar nunca.

— Também quero palpitar nessa história de incongruência — interrompeu-me o Paulo, que volta e meia se ausentava da mesa para conversar ao bendito celular azul. — Deixe-me ver. Eis uma delas, logo no início do texto, página 15: "Todas as manifestações [poéticas] surgidas nas últimas décadas trazem entranhada uma poética, uma teoria da poesia..." — Isto são termos genéricos para se referir ao construtivismo lato senso do século XX. Na página 16, entretanto, conclui: "A poesia brasileira apresenta um afresco variadíssimo de tendências...". Não entendi: está entranhada a unicidade construtivista ou é um afresco variadíssimo?

— As noções confusas estão pelo livro todo. Conceitos vários, como "poesia formalista", são usados sem indicação das fontes, e, portanto, sem especificação de seu sentido. Também está cheio de lugar-comum ou truísmo. A impressão que fica é de arbitrariedade sem explicação. — Era o Régis novamente: — Ouçam o que ele diz do Waly Salomão: "A oralidade demoníaca e a logopéia de Waly confundem prosa e poesia". Conceitos tributários de qual crítica, de quem? E afinal, o que vem a ser "oralidade demoníaca"? O que é "oralidade logopaica"? Como diria o grande Roberto Avalone: "oralidade demoníaca e logopaica"? Meu Deus!

Outros queriam dar palpites, mas Régis, com razão, não permitiu apartes, já que esperara bastante para falar: — Quero apenas dar mais um exemplo. Ao falar do poema "Barulhos" do Gullar, na página 25, diz que se trata de "poesia corpórea". Ah, pois não: "Poesia corpórea"? Meu Deus! Também acho que o livro faz uma completa confusão entre o que se pode entender por "vanguarda", "concretismo" ou "inovação".

— Espera aí, Régis, você já deu mais de um exemplo — protestava o Eric, que como homem bom e americano, acreditava que havia um sentido no sentido literal.

— Só mais o seguinte: a poesia brasileira, no livro dele, toma a aparência de uma rede de "influências", focando assim a crítica na repetição e não na superação. Carlito é drummondiano, fulano é muriliano etc. etc. Que literatura decente pode ser concebida assim?

— Boa pergunta! O resultado disso é o que mais funciona com muitos dos poetas do Brasil: não a "angústia da influência", mas o "orgulho da influência" — disse o Paulo, e acrescentou: — Já souberam desse livro novo que está para sair sobre o Leminski? Recebi a prova final para fazer uma resenha para a Folha. É de chorar: de trabalhos de fim de cursos a ecolalias de curto fôlego, o que temos lá é a proclamação de que todos ali estão muito satisfeitos de ter um mestre.

— Poetas do Brasil, não: poetinhas do Brasil — retificou o Régis.

— Não é uma pena? — E Paulo continuou: — Mas deixemos os poetas alguns instantes, e voltemos às contradições do livro. Ele afirma, por exemplo, que "crítica é risco" e, na página seguinte, escreve que a crítica que ele faz não expressa opinião, mas tenta compreender o "sistema literário" (o conceito é candidiano, claro, mas o Candido não é citado, e sim incorporado e naturalizado). Ora, essa é a coisa menos arriscada que existe no Brasil: adotar a paternidade candidiana e falar em "nosso sistema literário"! Como se houvesse juízo histórico natural a determinar uma substância desse tipo. Mas o que há é tão somente um "cânone", que se quer natural ou universal, mas que é sempre uma produção, uma construção circunstancial, com base nas posições de maior prestígio crítico ou institucional. — Tive a impressão de que eles estavam voltando ao ponto de partida da discussão, e tratei de me concentrar nos kibes e esfihas que chegavam em novas e empolgantes fornadas à mesa.

— É isso, mas até aí nenhuma novidade. — Era o Eric que voltava a falar, depois de uma verdadeira blitz no prato de kafta. — Esse é o procedimento usual da crítica dominante no Brasil. Por que vocês acham que aqui ninguém nunca, ou muito raramente, parece interessado em discutir a sério a questão do cânone? A noção de "formação", como processo histórico necessário de geração do nacional e do moderno, sempre obliterou o debate a respeito da contingência política e estética do cânone.

Régis, entretanto, não parecia comover-se com esse ponto, e atalhou a direção tomada pelo debate:

— Notem mais um problema crítico grave no livro. Há um excesso taxonômico e generalista: o livro toma a forma de um alçapão: ei, vocês aí, tratem de ficar em tais lugares! Tudo está reduzido a rótulos, embora o próprio livro faça crítica abstrata a eles. Por exemplo: Manoel de Barros, rotulado de "regionalista", é supostamente "resgatado" pelo livro: "Como todo rótulo, essa classificação é redutora e põe a perder a riqueza de uma poética feita de paradoxos e reinvenções lingüísticas...". Entendi. Mas o livro classifica todos os autores, logo, reduz a todos.

— O livro também diz que busca identificar singularidades — voltava à carga o Paulo: — e, no entanto, só faz generalizar. Por quê? Porque os seus critérios analíticos estão sobretudo baseados na tal rede de influências e clichês que se repetem sobre os autores.

— É verdade. Não há nenhum esforço de leitura nova, mesmo que fracassada como tentativa. — E Régis mostrava uma expressão realmente desolada: — Pensem nisso: mais de 100 poetas aparecem referenciados aos 30 eleitos, e o mesmo número aproximado para os 30 da prosa. Mas literatura é invenção e não tributo. Faz sentido conceber-se uma literatura de epígonos? O cerco se fecha: vemos uma literatura epigonal examinada por uma crítica que não distingue, nem analisa, não discerne, nem hierarquiza.

— A julgar apenas pela quantidade de gente citada e elogiada no livro, o Brasil é o país com a literatura mais vibrante do mundo — zombou o Eric. Ou talvez não estivesse verdadeiramente zombando, pois é um sujeito dotado de muita benignidade: a bondade participa, por assim dizer, da sua perversidade. E exclamou: — Êta euforia de brasilidade! Mário de Andrade ia ficar orgulhoso de Mr. Costa Pinto. Aliás, está aqui, achei: Mr. Costa Pinto fala expressamente em "opulência da matéria-prima" da poesia contemporânea brasileira! Mas onde? Devemos estar vivendo em países diferentes. Mais uma razão para duvidar do "nós".

— É condescendência sistemática. — Também o Luis voltava ao debate após servir-se de um pouco de tudo o que havia na mesa, democraticamente aberto ao comércio com a culinária do Islão: — A desculpa é que não escolheriam maus poetas para integrar um panorama. O problema é que esse panorama não tem uma gota de originalidade. Portanto, conclui-se que todos os poetas mais ou menos conhecidos são bons. Logo, não há maus poetas, nem escritores ruins.

— Não é um alívio? Estou me sentindo muito melhor. Aliás, não: estou me sentindo tão bem quanto antes — comentou alegremente o Eric.

Régis, menos alegre, concluiu, por sua vez: — Não é à toa que o chamam de "Manuel 4 Estrelas" — E desenhou num guardanapo: "Manuel 4****". Mostrou-me o guardanapo e assinou embaixo, enquanto dizia: — Aquele rodapé dele na Folha faz a alegria dos poetinhas do Brasil.

— Ingrato! — acusei-o, tentando provocá-lo: — Você também recebeu 4 estrelas pelo Remorso do Cosmos, além de ter sido selecionado entre os 30 mais. — E daí? — respondeu-me espantado: — Se não me pusesse lá, o livro seria ainda pior. Ou não?

Antes que eu lhe respondesse afirmativamente, claro, Luis tornou ao seu argumento anterior:

— O release disfarçado de notícia é procedimento banal nos cadernos culturais. O que não destoa do tom geral. Ninguém parece muito escandalizado com esse tipo de condescendência. Ao contrário: o esquisito é se importar... — A formulação meio catastrofista do Luis me fez imaginar que ele talvez já estivesse com saudades de sua distante praia do Pântano do Sul, em Florianópolis. Meu filho Miguel, que também mora na ilha, costuma adotar um tom semelhante quando vem me visitar e, depois de alguns dias, supõe ter ultrapassado o tempo razoável de permanecer respirando fora da água. Pensei em seguida, bem pragmaticamente, que esse tom entre melancólico e exasperado podia acabar complicando a minha digestão. Assim, num esforço para salvar a noite que estava por um fio, ainda tentei uma vez mais acabar com a arenga literária:

— Por favor, amigos, vamos à comida. Calem a boca por uma única boa hora! Esse maldito livro está simplesmente roubando a minha festa! Jamais tive um livro discutido tanto assim por nenhum de vocês. Eu protesto!

— Glutão, comporte-se — disse a Cris, sempre disposta a impedir-me de esfriar a discussão: — Não quer falar, não fale. Quer comer como um tarado, coma... — E antes que pudesse lançar alguma sentença inapelável contra mim, fui salvo por uma maldição muito mais amena proferida pelo Eric:

— Em nova-iorquino, quando alguém come assim, se entupindo de comida, diz-se stuffing it! Portanto, Alcir, bem feito se você ficar com dor de barriga!

— Isso, Eric! Mas convém deixar claro ao aniversariante que é inútil tentar nos impedir de falar o que bem nos apraz. Em todo caso, é bem verdade que já está na hora de examinar outros aspectos do livro. Lendo as introduções de prosa e de poesia, tenho uma questão a propor. Na página 10, está escrito que o livro não pretende emitir juízos de valor, e que lhe basta estabelecer as razões da representatividade dos autores escolhidos. Esta é, se não me engano, a típica falácia iluminista da objetividade, do "distanciamento crítico" regido exclusivamente pelos critérios da razão. Mas o que são "razões da representatividade" senão aquilo a que aludiu o Paulo, isto é, juízos e opiniões de prestígio que se tomaram como naturais, em função da adoção deles pela maioria do público ou dos especialistas? Assim, são sempre opiniões, ainda que melhor aceitas ou mais partilhadas. Por outro lado, "distanciamento crítico", mesmo quando exista, não é nenhuma garantia de acerto da crítica. A verdade de uma obra não está lá, em si, de uma vez por todas; ela não é sempre igual a si mesma, essencial e oculta, para ser revelada pelo tempo, como se ele fosse o melhor intérprete das obras, como tantas vezes se costuma dizer, muito catolicamente. O tempo modifica os objetos de acordo com as leituras que vingam. E os objetos que ficam, como as leituras que vingam, não são o resultado de uma operação de justiça eterna. Intérprete e objeto partilham a mesma contingência, e os que se tornam canônicos, apenas resultam assim, calham de ser assim, sem que nenhuma garantia de qualidade eterna ou selo de validade por tempo indeterminado se estabeleça com isso.

— Você definitivamente colocou em risco a minha absorção deste magnífico falafel. Você não tinha suspenso o item "teoria"? Não acho justo produzir um discurso como esse às onze horas da noite do dia do meu aniversário! Renovo os meus protestos!

— Nada de censura disfarçada em choro! — endureceu a Cris. O bom Eric novamente me acudiu:

– Deixa pra lá, Cristiane. Ele deve estar assim choroso porque se lembrou do Mick, que não pode vir de Floripa.

— Menos mal então. Tenho ainda uma segunda questão a propor, aquela que você mesmo vive chamando de "Fla-flu" — disse ela, dirigindo-se a mim. — No caso, é verdade, um "Fla-flu" paulistocêntrico. A questão é: como explicar a longa duração dessa mitologia primária, tipo "Fla-Flu" mesmo, criada em torno de Mário e Oswald? Segundo a narrativa tradicional, do lado de Mário sairia a descendência modernista lírica, com Bandeira e Drummond à frente; da costela de Osvald, no campo oposto, nasceriam Cabral e os concretos. De acordo com essa bagatela, encampada pelo livro, tudo na poesia brasileira contemporânea pode (e deve) ser deduzido do modernismo ou do concretismo.

— Portanto, no fundo, tudo é tributário, e nada contemporâneo, é o que se pode concluir — disse o Régis, tornando ao seu ponto principal de debate. — Um agravante desse tipo de narrativa requentada está na página 26. O Manuel diz nela que os momentos culminantes do concretismo ocorreram entre 1956 e 1958. Admitamos que seja assim. Mas, depois, ao longo de todo o livro, metade dos poetas presentes são dados como concretistas ou tributários deles. Como entender? E me digam: afinal, o concretismo tem data, como tudo o mais, ou é alguma espécie de vanguarda eterna?

Abel, que ouvia o que o Régis dizia, talvez surpreso por não ter sido ainda interpelado por conta da sua antiga diatribe nas páginas da Folha, observou o seguinte:

— Para superar a narrativa do "Fla-Flu", talvez seja o caso mesmo de se suspender a narrativa inteira do modernismo brasileiro, já muito desgastada. Penso que a noção de modernismo é ruim atualmente até para se ler autores de extração decididamente modernista, como Drummond ou Cabral. Quero dizer: o modernismo esgotou as suas capacidades descritivas, tanto na criação como na crítica. Na minha opinião, o próprio Drummond achava isso também. Com um livro como Claro Enigma, que ninguém entendeu na época e não sei se muitos entendem hoje, o gesto essencial continua a ser modernista, pela reivindicação da liberdade, mas, paradoxalmente, pela afirmação de que essa reivindicação só é coerente se garantir também a liberdade de ser... clássico. Persiste a idéia moderna, sem dúvida, mas aliada à própria figura do envelhecimento e do esquecimento, tom melancólico mais ou menos estranho aos outros Andrades. Um poema como "Legado", por exemplo, é a inversão do topos clássico horaciano do monumento de bronze, vazada em soneto quase convencional.

Enquanto tentava limpar o chancliche que havia caído em minha jaqueta de couro preta, lembrei-me também de "Rapto", um poema todo camoniano a aplicar o antigo topos do rapto de Ganimedes por Zeus. Entretanto, Abel finalizava o seu argumento:

— Quero dizer que, neste caso, como no de muitos outros poemas, há pouco interesse em lê-los como poemas modernos. Se Drummond se lê no modelo modernista, então envelheceu. — Disse, e em seguida se despediu apressadamente, alegando que só passara mesmo para me deixar um abraço, pois estava muito cansado da viagem e ansioso para chegar ao hotel e repousar um pouco. Depois, confessou-me que gostava de comida árabe ainda menos do que de sardinhas. Agradeci-lhe a gentileza de vir me cumprimentar e acompanhei-o até a saída do restaurante, onde troquei com ele ainda algumas palavras.

Quando voltei à mesa, Régis ainda falava: — E o resto da poesia e da crítica mundial? Não existe? Notem que são pouquíssimos, e deglutidíssimos os citados: Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé... Os mais recentes são Ginsberg, entre os americanos; Celan, entre os de língua alemã; o francês Déguy; Montale entre os italianos; Lezama Lima entre os espanhóis. Falo de cabeça, mas ficamos mais ou menos por aí. Não é tudo gente conhecida demais para quem se pretenda capaz de falar de "hoje"? 

— Eu tenho um problema a propor à ponderação da mesa — disse o Celso, que se mantivera boa parte do tempo muito quieto, folheando atentamente uma edição de Borges par lui même que eu lhe havia dado —, talvez mais visível para mim que não moro em São Paulo: o Folhacentrismo.

— Folhacentrismo? Caramba, Celso, veja lá o que diz, senão vão pensar que eu tenho alguma coisa a ver com isso — brincou Moacir Amâncio, que havia chegado há pouco, aludindo ao período no qual trabalhara para o Estadão.

— Não há perigo, Moacir. Ao contrário, o que pretendo dizer aqui é totalmente favorável à Folha, tão favorável quanto é, por exemplo, o papel decisivo do ombudsman. Aliás, a presença do Ajzenberg no livro está me inspirando! O Folhacentrismo é que é contra a Folha! Apenas anote os argumentos e veja se são consistentes — ponderou o Celso, com a segurança e a paciência de um grande professor de matemática que se dispõe a dar uma aula para crianças burrinhas: — Notem o seguinte: além do Ascher, que está selecionado entre os melhores poetas, são citados, entre os 30 maiores prosadores brasileiros, nada menos do que 5 caras que escrevem na Folha, sem contar o Marcelo Coelho, que está no livro entre os secundários. A saber: Cony, Scliar, os dois Bernardos e o Bonassi. Ou seja, 5 em 30 dos melhores prosadores brasileiros; 1/6 ou quase 17% dos autores.

— Celso, caro, você se esqueceu de contar o João Ubaldo —, assoprei-lhe no ouvido, pois imediatamente me senti atraído por aquele raciocínio numérico, embora não estivesse disposto a me deixar arrastar por aquela discussão sem fim.

— Alcir, caramba, não me atrapalhe, o Ubaldo é do Estadão.

— Ah é, me desculpe. E o Verissimo? — insisti, disposto a alargar a sua base numérica.

— Também é do Estado, nada a ver. Caramba, você não lê jornal? Eu, hein?

O duplo palpite errado foi devidamente reprimido pelos olhares daqueles que, sentando-se mais próximos de nós, conseguiram ouvir nossos cochichos.

— Não precisa falar alto, Celso! — disse-lhe ainda aos ouvidos — Você não tem motivo para estar bravo com ninguém. Se ainda fosse o Moacir, que não apareceu no livro nem entre os secundários. Nem umazinha vez. Para o Manuel, você é ágrafo! — acrescentei diretamente para o Moacir.

— Ágrafo? Que palavra ótima! Vou escrever um poema com ela, pode apostar. — E realmente fez isso, alguns dias depois; naquele momento, contudo, estava preocupado em ouvir o arrazoado do Celso: — Nada menos que 5 dos 30 maiores prosadores são da Folha. Mas isso não é tudo. Vamos refinar um pouquinho a conta. Se considerarmos que a Hilda é morta, e o trio Lygia, Dalton, Rubem Fonseca é de gente com 70 anos ou mais, então entre os que têm menos do que isso, os da Folha são 5 em 26, praticamente 20%. Se descermos ainda mais as idades de corte, em direção, por tanto, à literatura produzida efetivamente num período mais recente, a proporção aumenta. Por exemplo, dos que nasceram de 59 para cá, são 3 da Folha entre os 8 maiores. Isto dá quanto? Sei lá: 3 em 8. Quanto dá isso? 37, 38%? Ou seja: quase 40% dos novíssimos melhores são contratados da Folha! Das duas, uma: ou isto é absurdo, e essa inflação folhaspiana no livro decorre da amizade e do corporativismo, e, conseqüentemente nada tem em comum com a idéia de crítica; ou o livro está certo, e quem quiser escrever bem no Brasil deve em primeiro lugar conseguir um emprego na Folha, ou ao menos ler com muita atenção o seu Manual de Redação!

Já riam todos com a demonstração cabal do Celso, quando a Cristiane tirou a sua própria conclusão daquelas contas:

— Num caso ou noutro, Celso, fico desconsolada. Pois, por um lado, não trabalho na Folha, e, por outro, só não conseguiu entrar na lista justamente o escritor de que mais gosto dos que escrevem nela: o Macaco Simão. — As risadas que se seguiram à declaração alteravam indiscretamente o ambiente bastante calmo do restaurante naquela terça-feira. Comecei a olhar disfarçadamente para o maître argentino, de quem sempre tive um indisfarçável temor. Por sorte, não parecia estar por perto. Cristiane, embalada, propôs um novo ponto de debate do livro: que cada um apontasse as faltas que julgasse mais graves nas escolhas dos autores, e também as ausências que parecessem mais injustificadas, segundo as razões que cada um apontasse. Eu tinha alguma curiosidade a respeito do que iriam dizer, mas a verdade é que tinha comido e bebido demais. Precisava ir ao banheiro. Assim, perdi uns bons 15 minutos de conversa, e nada posso contar a seu respeito.

Quando voltei à mesa, a discussão ainda estava animada. Quem estava falando era o Régis:

— Para mim, a ausência mais injustificada é a do Leminski. Tudo bem, o critério de escolha referia apenas autores vivos. Mas outros mortos foram incorporados: Uchoa, Haroldo, Waly, Hilda. É verdade que eram mortos mais recentes, mas ainda assim fica claro que o critério não é absoluto. E já que o livro fala também às vezes em "influência", talvez sua principal categoria descritiva, como não falar de Leminski? Foi o poeta que mais influenciou a maior parte da gente identificada como literatura brasileira hoje, incluindo a mim mesmo, a despeito de nosso afastamento posterior, quando ele enveredou de vez pelo pop.

— O Leminski foi o último poeta brasileiro que se tornou popular em termos de venda, com o quase best-seller que foi Caprichos & relaxos — emendou o Luis Dolhnikoff. — Além disso, ele participou de tudo na poesia brasileira recente: da fase heróica da revista Invenção ao esforço tradutório militante dos irmãos Campos, passando pela divulgação do haicai, sem dizer que fez a ponte entre a poesia "marginal", a geração "mimeógrafo", a poesia construtivista etc. etc.

— Você não vai declinar o currículo do Leminski aqui, não é, Luis? Não tem nenhuma televisão por aqui — ironizou o Celso. Sem dar importância à interrupção, Luis prosseguiu sua argumentação no tom eloqüente que lhe era habitual:

— Sua ausência é indefensável! Considerada relativamente à presença de Caetano Veloso, que entrou em seu lugar, já que os verbetes se organizam em ordem cronológica, e os dois tinham a mesma idade, é ridículo.

Imagino que já deviam ter discutido muito sobre o assunto, uma vez que bastou o Luis dar uma folga na respiração para a Cristiane logo dizer:

— Sobre o Leminski, portanto, estamos todos de acordo. Alguém notou algum outro descalabro? Por exemplo, que acham de Décio Pignatari e Hilda Hilst estarem relegados à prosa?

— Dois ridículos — continuou o Luis, secamente. — Quanto ao Décio, além de ser um dos criadores do concretismo, ele é autor dos poemas concretos mais conhecidos, como "babe cola". Seria o mesmo que tirar Oswald de Andrade de um panorama da poesia de 22, e lançá-lo na seção de prosa. Porque escreveu prosa, é verdade, mas simplesmente não-faz-sentido — disse, escandindo o último sintagma.

— Se o Décio foi descartado da poesia, teria simplesmente de ser descartado do livro: a sua prosa é muito menos importante e influente do que a sua poesia. — Era essa ao menos a opinião do Régis. — E quanto à Hilda Hilst, se aceitarmos o que o Alcir vem escrevendo, é melhor prosadora do que poeta, mas isso é uma opinião discutível ainda, que mal começa a ser proposta. Por ora, o lugar onde ela representa um foco incontornável da literatura brasileira contemporânea é o da poesia, não o da prosa. A sua prosa, assim como o seu teatro ou as suas crônicas, ainda é pouco conhecida, o seu impacto ainda mal pode ser avaliado.