Penso que
talvez não deva acender outra luz para poder me fixar na que escoa dos
onze versos que escolhi como guia de Daniel Faria:
Escrevo do lado mais invisível das imagens
Na parede de dentro
da escrita e penso
Erguer à altura da visão o candeeiro
Branco das
palavras com as mãos
Como a paveia atrás do segador
Vejo os pés descalços dos que
correm
E escrevo para os que morrem sem nunca terem provado o
pão
Grito-lhes: imaginai o que nunca tivestes nas mãos
Correi. Como o segador seguindo o segador
Numa ceifa terrestre,
tombando. Digo:
Imaginai1
.........Tateio às escuras o primeiro deles:
Escrevo do lado mais invisível das imagens. As imagens, portanto,
são o lugar de inscrição ou de abrangência do que é escrito e não apenas
parte de seu efeito. Ao mesmo tempo, a escrita dá-se no plano menos
visível da imagem. Postula-se, pois, que a imagem é anterior e maior do
que a escrita e que o ponto onde se cruzam é aquele em que a imagem não se
vê. Os estranhamentos são vários. A primeira parte da premissa produz uma
inversão da expectativa temporal de causa-efeito e da expectativa espacial
de maior-menor (imagem anterior e maior do que a escrita). A segunda parte
insinua o paradoxo: o ato da escrita do sujeito dá-se onde a imagem pode
não ter imagem (lado invisível do que é visível por definição). A imagem
anterior à escrita e que preexiste ao ato particular do sujeito reclama,
assim, a sua resolução como imagem original, primeira - como Imagem. Aqui,
em termos pertinentes, como platonismo católico: Imagem de Deus, Verbo. A
hipótese teológica favorece igualmente a dissolução do paradoxo insinuado:
o Verbo é a Imagem que efetivamente é e se mostra além dos sentidos, ou do
que apenas se apresenta aos olhos. O valor do que o sujeito escreve parece
estar, pois, na transmissão da imagem que está na sua origem, o que não
significa que o corpo sensível da letra que escreve está excluído desse
valor, mas tão somente que não o esgota.
.........O verso seguinte confirma a hipótese
teológica: (Escrevo) Na parede de dentro da escrita e penso.
Trata-se de escrever dentro da escrita, no que está oculto no interior do
que já se encontra escrito. Assim, antes de referir a impressão sensível,
a escrita na parede interna solicita lembrança, pensamento e meditação da
palavra original. Escrever, nesses termos, não equivale a descrever o
visto, ou a alimentar de imagens os sentidos, mas ao ato de quem toma por
objeto de reflexão precisamente o que define a imagem como segunda imagem
ou participação. Vale dizer, o que a entende como hipóstase do Verbo
criador, e que não se revela senão dentro do homem, ele próprio entendido
como imagem da Imagem. Olhar para a palavra, aqui, é análogo a olhar para
dentro de si como espelho.
.........Ainda, a inexistência de coincidência
entre a frase sintática e a quebra do verso introduz um equívoco, uma
espécie de desdobramento inesperado e vertiginoso: o sujeito não escreve
diretamente na parede de dentro, mas sobre ou dentro das imagens inscritas
nela. No invisível ou oculto, espaço de atualização da escrita,
projeta-se, continuamente, a preexistência ou a atualidade de imagens
anteriores às imagens. O movimento prolífico e reflexivo que se estabelece
sugere que, assim como o que se escreve supõe uma imagem anterior, e toda
imagem é participação em outra, invisível nela, assim também o que se
escreve atualiza o misterioso e invisível de que participa. O invisível
interior não é apenas o lugar ou condição da escrita do sujeito, mas a
propriedade mais significativa que manifesta em ato. A oração final do
verso (E penso) é também a sua síntese, e pode ser lido como
intransitiva: o que escrevo, como a imagem de que escrevo, é ato de
pensamento, pensamento em ato.
.........O terceiro verso pode ser lido então
como referindo o efeito desse ato: (Penso) Erguer à altura da visão o
candeeiro. Ou seja, o escrever oculto que manifesta a primeira imagem
ou enigma original da palavra divina é sobretudo meditação que busca a
elevação, a ascese, o rapto até o ponto de visão ou de iluminação que está
acima ou além da imagem obscurecida dos sentidos, mera sombra que os
habita. Mas um novo equívoco se introduz pelo corte operado pelo verso na
sintaxe: erguer é tanto o sentido ascético do ato da meditação,
quanto o imperativo ético implícito na compreensão da escrita como imagem
de outra, na crença do enigma na base da representação. Nesta leitura, não
apenas se medita e deseja ardentemente a iluminação, mas se está obrigado
a ela. Há um campo de deveres da imagem a elevar-se além do sensível, com
implicações educacionais ou edificantes na ascese.
.........O fim do terceiro verso ainda uma vez
não coincide com o fim da frase, que perfaz o terceiro
enjambement sucessivo da estrofe. Dos três, o único abrupto é
também o que obtém o efeito menos ambíguo, isto é, justamente o que existe
na passagem do terceiro para o quarto verso, quando se divide o termo
candeeiro de sua qualidade ou cor: (Candeeiro) Branco da
palavra com as mãos. A articulação inicial deste verso propõe que se
eleve à luz a meditação da palavra, o que, como se viu, implica subtraí-la
à autonomia dos sentidos. Quer-se produzir a luz e a inteligência pela
manifestação ostensiva do que se mantém oculto na palavra refletida. Mas é
mais do que isso: o candeeiro branco, que ilumina a palavra, também a
amadurece, pela imposição das mãos. Nesta imposição, evidencia-se o
aspecto eficaz da cadeia de transmissão da representação imagética. O que
se escreve e medita não é apenas símbolo, mas causa simbólica eficiente da
iluminação pela palavra. Trata-se de transmitir a graça da luz pela
escrita escura, invisível, que, por ser enigmática, define ostensivamente
o mistério da origem, obrigando à leitura espiritual, alegórica, ascética,
que se produz como ato.
.........A primeira estrofe, pois, assinala o
dever da imagem que se obscurece para evidenciar o mistério que a
sustenta. Há um especial modo de especificação disso na estruturação
rítmica da estrofe, com versos que se ajustariam facilmente em versos
regulares de 9 e 10 sílabas. Contudo, os versos recebem acréscimos,
predominantemente de pés espondeus e peônios, que impedem o arredondamento
do ritmo poético, e postulam o oratório, o meditativo e, em todo caso, o
que não se fecha na fruição do ritmo. Os versos oferecem deliberada
resistência à sua forma poética. Aliás, dos sucessivos
enjambements pode-se dizer o mesmo: que assinalam a determinação
poética, mas, ao mesmo tempo, pelo encadeamento acumulado e ostensivo, uma
espécie de prolongamento do verso em oração pausada, que se incomoda com o
barulho do ritmo.
.........O primeiro verso da
segunda estrofe, Como a paveia atrás do segador, já se introduz,
ambiguamente, como comparação que anuncia o que se dirá a seguir, ou como
síntese do que se escreveu antes, ainda na primeira estrofe. Quer dizer, a
comparação ganha certa autonomia, ou certa polivalência, que a torna capaz
de ser aplicada em qualquer direção. Nela, está claro que a imagem do
segador é a figuração bíblica mais usual dos que fazem o anúncio do
Evangelho ou da Palavra de Deus, pois a semeadura propriamente dita já
está feita pelo Cristo, que renova a aliança com os homens. No tempo
escatológico posterior à sua vinda, cabe apenas ceifar os campos já
brancos de trigo. A Palavra, fértil por si mesma, amadurece e prepara o
ato de quem a colhe, como a Imagem que dá lugar e ato de ser à escrita.
Mas a posição de quem escreve ou colhe, aqui, é a de quem está
atrás, como quem chega por último ao campo ou à vigília, para
usar os termos do Eclesiástico (33, 16): "Quanto a mim, sou o
último a ficar em vigília, como quem cata espigas (como o que ajunta as
bagas) atrás dos vindimadores". Trata-se, pois, da posição última, por
isso humilde, mas também a de afirmação da disposição de entregar-se sem
demora à vindima e encher o lagar.
.........Vejo os pés descalços dos que
correm. Do lugar humilde no campo terrestre dos homens, o que medita
ou vê com o coração pode enxergar os que correm descalços nele, como
pobres em meio aos campos abundantes de colheita. Já no terceiro verso da
segunda estrofe, após a apresentação das conhecidas imagens escriturais da
colheita nos dois anteriores, recolhe-se enfim a imagem da escrita
desenvolvida nos dois primeiros versos da primeira estrofe: E escrevo
para os que morrem sem nunca terem provado o pão. E tais parecem
ser tanto os que não possuem bens materiais, sentido reforçado pela
referência aos pés descalços do verso anterior, quanto os que não colheram
o pão espiritual da semeadura divina, segundo as linhas de ponderação
admitidas nas imagens bíblicas tradicionais. O que se quer tornar visível
pela escrita ostensiva do mistério tem a finalidade salvífica de falar ou
mover aos que não possuem os bens da terra, nem os do céu. No primeiro
caso, acentua-se a oração aos últimos e deserdados; no segundo, a
desolação profunda, própria da condição de exílio em que se encontram
todos os que vivem fora da comunhão divina. No primeiro caso, o lugar
humilde que é condição e grau da ascese tem conseqüências acentuadamente
sociais; no segundo, sem exclusão da hipótese anterior, elas são mais
genericamente missionárias e escatológicas.
.........Grito-lhes: imaginai o que nunca
tivestes nas mãos - o verso que fecha a estrofe eleva a grito ou
advertência dramática a voz correlata da escrita e meditação do mistério:
trata-se justamente de produzir a imagem do que nunca foi visível, a
riqueza e o sabor do pão jamais experimentado. O instrumento dessa
produção não é, mais uma vez, o que olha para o que é sensível apenas e se
manifesta fora, mas o que se aplica a descobrir o que está na natureza
criada do homem: a palavra plantada dentro dele, com suficiente força e
carisma para salvá-lo. Descobrir o infuso, isto é, imaginar a Imagem: eis
o anúncio gritado. A meditação, tornada também predicação, solicita a
imaginação e a lembrança da imagem já semeada, mas obscurecida.
.........Correi. Como o segador seguindo o
segador - ou seja, a corrida dos descalços, antes cega, movida pela
roda mortal, tem agora direção e sentido conduzidos pela imaginação de
Deus no homem, por meio da palavra invisível que o solicita. Assim
meditada, descobre-se um dinamismo da palavra que tende para sua
realização: é eficaz quando religada ao mistério que conserva como imagem
na sombra. A corrida perdida reorienta-se como imitação do que colhe a
semente madura do primeiro semeador. Numa ceifa terrestre, tomando.
Digo: - e novamente, como nos enjambements sucessivos da
primeira estrofe, apresenta-se, adiada, a determinação do lugar da
colheita, o campo mortal da vida humana. O surpreendente, contudo, não
está nisso, mas na estupenda revelação de que o trabalho do segador se faz
tombando. Certamente, o tombar é análogo da semente que cai na
terra fértil e frutifica, mas é-o também da morte que interrompe os
trabalhos e fadigas do homem indigente: "Não temas a sentença da morte:
lembra-te dos que te precederam e dos que te seguirão" (Ecl. 41,
3). Sentença de morte que é beneplácito de Deus, por meio da morte
expiatória na Paixão. Imaginai - eis aqui, reposta na figura da
morte do corpo fatigado, a força pura da palavra que aniquila o que resto
dos que, afinal, nada possuíram. É na imaginação da morte que repousa a
palavra invisível.
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1Poema incluído no livro
Dos Líquidos. Porto, Fundação Manoel Leão,
2000.