O cão me persegue. Jamais tive cães, talvez por isso me persiga. Talvez por algum motivo seu. Não é como os outros, que agradecem sem dignidade. Por isso, nunca lhe dei nada. Quando chega, e é sempre, está pronto para olhar-me fixamente. Coçar-se por segundos, um desses estranhos espirros dos cães e nada além disso para distrair-se de mim. Eu não o ignoro — se fosse capaz de fazê-lo. Desde a primeira vez, a surpresa capaz de torná-lo uma presença maior que um cão.

Isso que me persegue vai a lugares onde eu não deveria ir e então como que o castigo por destruir minha solidão.

Se só estou, se estamos todos vivos apenas por essa quota de solidão que nos move e que cria nossos pensamentos, isso que me persegue me mata.

Essa coisa, se fosse um cão, seria um dos comuns, desses maiores, que não teria em casa por não gostá-los mesmo. E está onde deveria, do modo como deveria, exceto pelo fato de que persegue, animado pelas suas razões. Talvez a reencarnação de alguma coisa que não fiz, ou fiz por excesso, e que me pune, jamais me deixando sozinho, eu que já necessitei tanto disso, antes. Não compreendo. Quisera que seus motivos me alcançassem, mas tal segredo me faz crer que seja somente por isso mesmo.

Não é possível enxotá-lo, que não se aproxima senão para devorar-me os olhos.

Então, essa maldade intolerável de arrancar-me o sossego, desde o outro lado da rua, a olhar-me dentro do bar. Parado, diante de casa, quando recebo uma mulher inocente. Freqüentemente, sonho com ele. Na estrada, quando passo depressa por uma curva, um ângulo que o torna absolutamente visível, ainda que tenha que capturar os faróis do carro por todo um segundo. Sua maldade requintada, sua inimitável maldade sem esses rios de sangue.

Não late, não rosna, não uiva em mim.

Às vezes me deixa, mas aprendi que é somente para fazer coisas que o fariam parecer-se mais com um cão: comer, defecar.

Tantas coisas maiores, tantas sem importância que poderiam ser, mas esse requinte, esse detalhe único que transforma o mundo todo: um cão que me persegue.

Enquanto mastiga minuciosamente cada meu gesto secreto, humilha-me de olhos postos no altar da minha desatenção impossível. No extremo oposto de cada corredor estreito, de cada avenida, entre as árvores, onde quer que eu não precise olhar, onde não está, onde não poderia, de tão distante, onde nunca esteve, senão para mostrar-me algo que talvez seja de enorme importância, mas que prefiro ignorar.

Eliminá-lo, à distância: uma bala e um cão morto a espreitar-me. Não desejo pagar semelhante preço, basta mantê-lo sob mira.

Agora estou certo de que ainda serei capaz de apanhá-lo pelas costas. Por enquanto, procuro não tirar os olhos dele. É bom que ele saiba que em momento algum pretendo deixá-lo em paz.

 

 

 

Eco de vozes mudas é som?

Porque reverbera o silêncio que parte dela em direção ao quadro em troca daquele que parte de volta aos seus olhos. À distância, sinto fome, as costas doem um pouco, sou essas coisas, minha alegria simples invejando a intimidade de que ela desfruta, desejando minimamente as palavras, cujo eco eu julgo poder ouvir.

Eu teria preferido Tarsila e Di Cavalcanti no MASP, mas ela queria Ianelli e eu cedi por gentilezas, convencendo-me de que fosse mesmo por isso: para demonstrar o quanto ela era importante, e que eu poderia abrir mão de qualquer dos meus desejos para vê-la feliz. Assim, minha alegria de sábado à tarde, a caminho da Pinacoteca, imaginando-me atento o suficiente para administrar as alegrias como um só sentimento bom.

Levou-me escada acima, ansiosa, eu às voltas com meus sorrisos, meu contentamento por estar ao seu lado. Passar pelo balcão da portaria num segundo e noutro atravessar o saguão principal, em silêncio, para desembocar no pátio iluminado e encontrar esculturas brancas sob a claridade intensa. Meus primeiros olhos perdidos de formas e os dela, ligeiros, capturando depressa, um gesto distante desenho nas pontas dos dedos, que eu desejaria que ela olhasse melhor e deixasse do que parecia ser tão somente pressa. A moça de farda, encarregada da segurança, solícita e sorridente, aproximando-se com algumas explicações que ela não pedira, mas que ouviu com olhos vivos. Outra vez e mais, frente à curiosa escultura feita de canudos de refresco, como boas amigas. Ao meu lado, só para apontar sua preferida entre as formas brancas e por quê. Não, ela não desejava olhar mais, era o suficiente para entrar no recinto da exposição. Eu, incapaz de manter as poses da minha alegria, arrastado, tentando não me incomodar com a complexa brevidade do seu exame.

Agora, diante do primeiro quadro e do seu silêncio. Eu, prático, lendo os textos, examinando datas, de imediato o figurativo encaixotado em blocos de cores, separados uns dos outros por grossas paredes, sobrancelhas de um olhar mais adiante. Meu silêncio não se entabula, admira-se somente, enquanto eu a vejo passar ligeira — aquele diálogo mudo que é breve o bastante - de um quadro a outro, muito séria, ecos e ecos a cada tela. 

De um princípio de casa e navios e um rosto, os espaços de cor explosivos dentro de suas paredes tão bem delimitadas, até uma gradual troca de concessões, a cor na tentativa de assumir o controle das composições. A forma, seduzida, aceitando diluir suas barreiras com a garantia de que a cor haveria de preservar os limites dessa forma de uma maneira muito mais sutil, visível na ausência. Ou ainda a traição, com a cor infiltrando-se sutilmente pelas divisões do espaço até torná-las também em cor.

O pigmento dos olhos dela: que não se apague para mim nos quadros.

E ela vai apreendendo os detalhes ao seu modo mínimo, como no momento em que se apreende a cor antes que esta se torne outra, na vitória maior sobre os limites impostos pela forma, porque respeitando-os como se ali estivessem preservados, mas mudando-se no próprio interior dos blocos. De uma sala a outra, das marinhas às árvores, puros trechos de troncos; depois, às naturezas mortas, mesas postas, quadrados e retângulos.

A cor não me espera e se esconde, ou deixa um rastro pobre eco pista do que troca com ela. Por isso, alcanço o seu lado, copio seu olhar, desejando ser cúmplice de seu jeito de pinceladas rápidas. E a cor mais se nega, revelando-se em frações de espaço e tempo, de modo que me perco, disparando a atenção fracionada pelo quadro, enquanto ela se sacia e vai. Daí, só capturar os últimos acordes de um intenso diálogo que não sei compreender.

Nem mesmo isso lhe escapa. Revela-me o que não verei, em palavras. Deixa-me desejoso de voltar atrás, rever o que não faço para não perdê-la diante das outras telas e também por saber que sempre restará o que não serei capaz, todo o segredo que jamais se revelará.

As figuras a bordo do silêncio dela e o figurativo se desvanecendo até um invólucro simultâneo de cores, atmosferas de limites constroem a partir das laterais dos quadros. No centro, o oco, as pupilas caladas e vivas dos olhos dela, compreendidos, aprofundados.

Ainda ao final, na última sala, tento estar com ela, do mesmo modo tateante acompanhar seus passos diante dos grandes painéis. Ouço, peço que não apague as cores e me deixe só. Sua sabedoria, seu olho ancestral. Nas profundezas de suas retinas, arqueólogos encontrariam evidências de uma antiga e fascinante civilização.

Deixa-me, enfim, ao final de tudo, rodeado por enormes vibrações buracos na cor, sombras de limites progressivos, onde a forma é um vago grito fundo. Entre as gigantescas composições sigo os rastros da sua voz que se ausenta. Não posso afirmar que seja o que creio compreender, parece tanto para mim e eu a vejo saindo depressa, já sem notar os quadros que não consigo deixar de olhar, desesperado.

À nossa saída, mais uma vez a moça da segurança, sorridente, despedir-se. Apanhar a mochila no balcão, mas aquela última e irresistível dúvida e então peço que retorne ao espaço das esculturas para o exame de uma certa forma. Ela esboça um protesto, as imagens todas gravadas pelos prodígios da sua atenção, mas eu minto teimosias e ela aceita o desafio. Daí, vê-la afastar-se na direção da luminosidade que se derrama sobre o pátio. Outro olhar ligeiro, como adivinho, e basta. Então, meu interesse maior: a moça, a outra, seu olhar fixo acompanhando-a de volta para mim, o mesmo olhar perdido, onde se nota os restos das formas destroçadas, desfeitas em pura cor. Sigo esses olhos, o olho turvo de Ianelli, todos nós completamente apaixonados por ela.

 

 
 ©arcangelo ianelli
 
 
 
 
 

        Na Espanha, na França, é possível pensar numa mulher. Na América. Pensar numa mulher significa imaginar uma criatura específica, seus olhos e dentes, seus braços, o busto, essa mulher. Na Espanha, na França, as mulheres são seres de uma foto, de palavras e modos, cada qual de um seu, como um homem. Na Espanha o ar tem um nome, as ruas e os edifícios que vi em Paris, livros com fotos de cidades da Alemanha, da Inglaterra, Dinamarcas — uns povos de gelo.

        Abdelahid diz que assim serão derrotados: pelo peso de seus nomes que os esmagará quando o aço e o concreto de sua enorme herança, ambição e prepotência vierem abaixo, ou pelos ares, que já respiramos mais frios. Abdelahid  não se demora ante uma questão, todo o universo ajustado ao formato do seu pensamento. Não o admiro.

Da Plaza Mayor, pela Puerta del Sol até Alcalá, este frio que as pessoas acordam tarde por isso, para que eu sinta no rosto e pense em Abdelahid e suas mais convictas falas acerca do Ocidente, enquanto olho as bigas, cavaleiros alados, o edifício do Banco de España. Sem pressa, pelas Cibeles, esse impressionante Netuno, plantado na profusão de água que só os olhos aproveitam.

Ainda se matam touros em Madri por puro deleite, ainda se mata. A comida se pede por nomes com os quais não me acostumo. É muito do que se deseja em Damasco ou Amã, pouco e rápido. Mas no deserto é mais simples não cair em contradições, é possível sonhar com sanduíches e refrigerantes.

No Paseo Del Prado a mulher pergunta se desejo visitar o museu. Respondo a essa mulher, com o nome "Isabella" impresso no crachá, essa mulher Isabella, com rosto, voz e com pernas grossas, suas mechas loiras no cabelo escuro, respondo que não e agradeço, apenas pelo seu sorriso que provavelmente não tornarei a ver — artigo barato, tanto luxo no Magreb.

Abdelahid, jamais pude trazê-lo para ver El Greco, jamais o convidaria, tantos ícones de tinta, rosto finos de olhos para o alto, extremidades de aguda cor para louvar o Deus dos cristãos. Se não adorá-lo, por que não ignorar ressurreições, anunciações, esses pastores de espanto, só pela contemplação? Que diria, diante dessas luzes irreais, talvez das cores de um pesadelo seu, uma angústia nas páginas do Corão?

Enfim, a fachada da Atocha Renfe, o peso da mochila às costas, agora sim. Os semáforos em Madri custam a liberar os pedestres, mas ao sinal vermelho ninguém os ameaça. Um desejo pequeno, como remédio para o estômago, mas teria antes que ver o médico, e não há tempo, que os edifícios, os trens, os espanhóis precisam desabar na tempestade de areia que se aproxima.

No interior da estação a estufa, os avisos honestos para anunciar as próximas partidas, toda a sinceridade para informar ao público, tanta franqueza, sua pior fraqueza. E há essa massa vegetal soberba, jurássica, que Abdelahid jamais desejará ver. O Islã, com tão pouco verde na ponta dos dedos e o coração de areia, não poderia admirar-se dessa exuberância tão desprotegida. Respiro esses ares vivos, com seus nomes. Adiante, o cheiro dos trens pontuais de tanta gente sem memória, pobre gente crianças aos pedaços por causa do fio da minha cimitarra. (A espada curva tem a vantagem do corte, tem a leveza, em contraste com as pesadas espadas dos cruzados.)

Não deveria ver Jamal, mas somente eu o vejo com sua própria arma às costas, adquirida, como a minha, no El Corte Inglês. Jamal espera na plataforma, como eu. Entre as próximas partidas, um trem para Toledo, este em que gostaria de embarcar antes do pó e das cinzas, ingredientes para compor uma cidade com os tons tão diversos daqueles imaginados por El Greco. Essas feridas prestes a rasgar-se em Madri, pudesse entregá-las aos pincéis de El Greco, para o pigmento de suas retinas únicas. Não pude levar Abdelahid a Toledo, nem mesmo lembrando as vitórias do Islã sobre os visigodos e de 700 anos de prosperidade na península — omitindo Afonso VI, o último ponto em favor dos cristãos, com os califas ocupados em cortar nossa própria carne.

Agora. Madri. Chega esse trem rodeado de gente. Jamal desaparece entre os cristãos e tantas mochilas comuns. Os vagões todos, este quase lotado que escolho por isso. Meu destino de cumprir o meu, sem outro motivo que uma bala ou um golpe nesta antiqüíssima guerra que já vejo perdida de tanta covardia dos cruzados em Jerusalém, dos mouros de Saladino, tantas retomadas, retaliações.

Não falta nada quando o grande relógio da estação salta ponteiros sem prestar a atenção que deveria. Entro no trem para inspecionar os assentos todos ocupados, um instante para acomodar a cimitarra esquecida sob a conversa de futebol de dois meninos, assim, por discordar que o Barcelona possua uma equipe capaz de bater os "Galáticos" do Real, mesmo jogando em Camp Nou.

Poderia rever o planejamento de tantas minúcias e imaginar essa conversa estraçalhada, esses primeiros gritos que não se ouvirão, o telefone celular no interior da mochila esquecida, à espera da chamada de Abdelahid. Mas saio depressa, nem um pouco mais leve de mãos limpas porque sei que tantos outros aparelhos celulares como o de Jamal haverão de tocar pontualmente nos vagões dos trens em Atocha, El Pozo e Santa Eugenia, para que pereçam os inimigos do Islã, netos dos reis católicos, de Afonso VI e de Godofredo de Bulhões.

Volto pela Calle de Atocha e tenho que parar, como todos em Madri, para ouvir as primeiras explosões e levar as mãos à cabeça. Todos à rua, uns e outros nas janelas, ainda muitos por detrás das portas fechadas. Imagino a fumaça sufocando as plantas, o ar estragado para sempre em nome do profeta — o nosso — afinal seu golpe fundo no olho do crucificado, que, na certa, descerá da cruz para o revide. Há correria, gritos próximos e distantes nesse horizonte que não pára de explodir. As sirenes tão rápidas, onde se acode com precisão, talvez a dor mais precisa, tantas mortes que prefiro não imaginar.

Abdelahid e outros como ele — gente do Islã com mochilas pesadas, espanhóis trocando haxixe pelo explosivo Goma 2 Eco, roubado às minas — agora celebrarão, não com um cálice de Rioja, cujo sabor jamais conhecerão, como eu não deveria. As ruas estão tingidas de dor. Caminho a esmo até a Plaza de Oriente para retornar pela Gran Via. No bolso, apalpo meu gatilho não disparado e meus últimos euros, os que reservei para ver El Greco no Prado, uma última vez antes de deixar a Espanha.

 

Edmar Monteiro Filho é formado  em Ciências Biomédicas, pela Escola Paulista de Medicina. Afastado das pesquisas, atualmente trabalha no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em Amparo, SP.

 

Alguns prêmios literários: Guimarães Rosa, concurso internacional de contos, promovido pela Rádio França Internacional, em 1997; Cruz e Souza, categoria contos, promovido pela Fundação Catarinense de Cultura, de Florianópolis SC, em 1997; Cidade de Belo Horizonte, concurso nacional de contos, promovido pela Secretaria da Cultura do Município de Belo Horizonte, em 1998; Luiz Vilela, concurso nacional de contos, promovido pela Fundação Cultural de Ituiutaba, MG, em 2003.

 

Publicações: Este lado para cima, poesia (Casca-RS, Edição do autor, 1993); Halma húmida, poesia (São Paulo-SP, Edições do autor, 1997); Às vésperas do incêndio, contos — Prêmio Cidade de Belo Horizonte (Amparo-SP, Edição do autor, 2000); Aquários, contos — Prêmio Cruz e Souza (Florianópolis-SC, Edição da Fundação Catarinense de Cultura, 2000).

 

A novela Azande, o livro de contos Que fim levou Rick Jones? e o livro de poemas Poemas para se levar à boca, aguardam edição.

 

Desde 1997, desenvolve uma Oficina Literária de Contos, ministrada em diversas cidades do país.