Andar com fé...

 

Era um desses dias que parece não estar acontecendo, ou melhor, quando parece que nada vai acontecer. O sol bocejava esparramado pelas ruas do Pelourinho, pincelando e colorindo sem pressa os becos e vielas de casarios mal-ajambrados. A ladeira com suas pedras cabeças-de-negro a brilharem vigorosas, contrastando com o ramerrame dos seus visitantes fatigados com a subida íngreme e acidentada. O dia parecia não querer passar, um mormaço, "um chove não molha", e um peregrino a descer a ladeira do Pelô chamando a atenção de todos pelas suas vestes: gorro branco, batina longa, branca, abotoada até em baixo, impecavelmente engomada, sandálias e meias, também brancas, enfim, todo paramentado à maneira islâmica. Esquecera o 11 de Setembro? Islamismo na Bahia? No Pelô? 

 

Quem subia e descia a ladeira naquele instante sentia um misto de curiosidade e um certo estranhamento, os quais só devotamos aqui na Bahia às pessoas muito famosas quando vistas de perto ou quando alguém quer se jogar do Elevador Lacerda. 

 

Demorei a acreditar.

 

Minha incredulidade se dava pelo fato de ser o Jorge que todos lá na Baixa–da-Égua conhecíamos pela alcunha de "Bodão": tinha esse apelido, como ele mesmo gostava de explicar, devido "aos seus odores corpóreos"; adquiridos na prática diária do seu esporte preferido; o "Skate". Adorava descer a Ladeira do Quebra-a-bunda de "Skate".

 

Era o rei das manobras, saltos e ultrapassagem de obstáculos, gostava de inventar novas piruetas, acrobacias e desafios. Era um destemido. Vinte e dois anos, quinze de "Skate" e uma vontade enorme de vencer, romper barreiras, conquistar o mundo.   Adorava "Rock", "Hard Cord", "Hip Hop", para ser mais coerente com a sua prática esportiva e com a modernagem que aos poucos se instalara na Bahia.

 

Algum tempo atrás, ele e os amigos do "Skate" formaram uma banda, como não tocavam nenhum instrumento, Bodão resolveu que ficaria na "cozinha" da banda. Passou a tirar as mais inusitadas sonoridades, em todo e qualquer objeto, em qualquer lugar, em tudo aquilo que estivesse ao seu alcance, tirava um som, um batuque, com o passar do tempo, foi enjoando da barulheira infernal do rock e passou a tamborilar pontos de candomblé.  Entrou para o candomblé e tempos depois se converteu à Igreja Evangélica. Sujeito eclético esse "Bodão".

 

Antes, um "skatista" roqueiro, depois percussionista com um pé no candomblé, capoeirista, surfista, pesquisador da cultura afro. Adiante, quase pastor da Igreja do Trigésimo Segundo Dia, depois Hare-Krisna, em seguida Xamã, Macrobiótico, Naturalista e agora professando a fé islâmica.

 

O amigo Jorge e a sua família são o retrato cabal do Sincretismo Religioso praticado na Bahia. Seus pais eram católicos praticantes, muito embora a mãe e as irmãs freqüentassem os terreiros de candomblé. O pai, depois de "comer muita água-que-passarinho-não-bebe", abandonou a mãe, embolou-se com uma Ministra de Cristo, recebeu Jesus e passou a freqüentar uma Igreja Evangélica, ele, o amigo "Bodão", além de todas as influências religiosas familiares, resolveu de uma hora para outra que queria ser muçulmano, lera em algum lugar que a Revolta dos Malês tinha sido uma revolta de origem muçulmana. Encontrou uma Seita Muçulmana na Bahia e começou a estudar Legislação Islâmica com o intuito de ir morar no Oriente Médio. Passou a estudar o Alcorão.

 

Qual não foi minha surpresa, ao avistar-me, cumprimentou-me com uma saudação islâmica e, em seguida,  orientando-se geograficamente estendeu um tapetinho, tirou as sandálias, ajoelhou-se em direção a Meca, repetindo, primeiro o credo: "Não há outro Deus senão Alá e Maomé é seu profeta", depois a oração: "Alá é grande, não há outro Deus senão Alá e Maomé é seu profeta. Vinde para a oração, vinde para a salvação, Alá é grande, não há outro Deus senão Alá". Fazia essas preces e ritual com gestos bem definidos.

 

Contrariando a índole baiana, sentia-me constrangido por também estar sendo alvo da curiosidade turística, hesitei em chamá-lo pelo apelido. Passado alguns minutos — pareciam uma eternidade —, de transe e salamaleques, levantou-se e abraçou-me efusivamente,  cheirava a cânfora, um abraço baiano, energizado, cheio de axé, daí então passou a explicar os segredos da sua nova fé. 

 

— Vou para os Emirados Árabes! Não se preocupe, lá é tranqüilo, disse-me com orgulho.

 

— E os conflitos no Oriente Médio não o afligiam? Não tinha medo de ser confundido com um homem-bomba? E toda a liberdade conquistada com o rock? Ele sabia que lá não se podia ouvir música, não sabia? Inquiri, baianamente, sem saber ao certo onde ficava os Emirados Árabes.

 

Relaxe! Ele sabia disso tudo, mas gostava de ser diferente e depois a nossa liberdade era uma coisa relativa. Havia liberdade, mas "as oportunidades que eram boas, é nem uma!", de nada adiantava ter liberdade sem ter trabalho. E, lá, ele iria trabalhar, conhecer uma nova cultura. Admirava a coragem e o desprendimento do povo de lá, do povo de Alá. Eram determinados, sabiam o que queriam, matavam e morriam por uma causa, não eram como o povo daqui, acomodado, que não lutava pelos os seus mínimos direitos, os direitos mais elementares.

 

— E o axé? E a baianidade nagô? E o jeito baiano de ser?

 

Ficasse tranqüilo. A Bahia já lhe dera régua e compasso.

 

O que não faltava era indignação, sonhos reprimidos, humilhação, quem sabe estudando Legislação Islâmica não pudesse depois ajudar a Bahia a sair do marasmo?

 

— Mas, lá, é "olho por olho, dente por dente!". Vide o Corão.

 

— E aqui não é assim não, não? Aqui não arrancam o couro do pobre não, não? Depois o Corão é "incriado" e a Bíblia não, é um conto da carochinha!

 

— Aqui você pode escolher...

 

— Escolher como, se tudo já está estabelecido, programado, endividado?

 

— Aqui é um Regime Democrático...

 

— Aonde? Aonde isso? Só se for lá pras negas deles... Aqui é só "venha nós! E vosso reino, nada!".

 

— E a liberdade de culto?

 

— Não existe. A única religião que não está atrelada ao poder aqui na Bahia é o candomblé, mas é muito perseguida. É a única em que o capital ainda não conseguiu corromper, mas mesmo assim tem uns que ficam num "cerca Lourenço", tentando ganhar alguma coisa, folclorizar, tentando "tirar sua lasquinha!".

 

— E os sons? Como é que você vai viver lá sem o som? Sem a batida do Samba-Reggae?

 

— Ah! Tem o som interior de cada fiel, os lamentos e os cânticos que são um "barato!".

 

Disse isso e começou a solfejar baixinho um lamento e a pregar: "Tradicionalmente, no Islã não há distinção entre a religião e a política, tampouco entre a fé e a moral. Todas as obrigações religiosas, morais e sociais do homem estão estabelecidas na Sagrada Lei Muçulmana...".

 

Ainda tentei argumentar, mas ele já estava de partida, já pegava o "Xariá", o "caminho para o oásis", ou seja, segundo ele, "o caminho correto para a conduta humana". Disse ter que seguir, pois, no outro dia começaria o "Ramadan", e dizendo alguma coisa como: "Alá hu Akbar", sorriu e traduziu, diante da minha santa ignorância: "Deus é o maior" ou "Deus é maior" e desceu a ladeira do Pelô com os braços erguidos para o alto. Ainda pensei em retribuir-lhe a saudação, porém, só me ocorria: Axé, babá! E em sinal de respeito à sua crença, nada disse.

 

Continuei olhando, por um bom tempo, o meu "camarado" seguir ao encontro do "Éden", flutuando sobre as pedras quebrantadas do Pelourinho e sumir pelas ruelas castigadas do Centro Histórico, apenas sussurrei: A Bahia é mágica...

 

 

 

 

 

Viva a Modernagem!

 

 

Quando o dia amanheceu e os primeiros raios de sol enobreciam ainda mais a Alameda da Vitória, um senhor magro, bem vestido, abraçado a uma sacola velha, esgueirava-se por entre as figueiras, à espreita, contrastando com a calma e a beleza do lugar.

 

Nervoso, sem se desgrudar do embrulho e de um cigarro amassado no canto da boca, remexia os bolsos do velho paletó a procura de fósforo. Nada encontrou. Olhou para os lados na esperança de avistar alguém fumando, ninguém. Na rua, somente duas senhoras e um rapazote que pareciam ir à missa.

 

Restava-lhe ficar atento e esperar. Uma longa e aflita espera. Perdera a noção de quanto tempo estava ali de esguelha por entre as árvores. Talvez, desde o entardecer do dia anterior, provavelmente, desde quando aqueles pensamentos obsessivos começaram a ganhar corpo.  Primeiro, uma idéia bizarra, ingênua, uma zanga boba, que foi crescendo, crescendo, crescendo e se alastrando. Depois, o rosto do sujeito, a cara flácida, o sorriso sarcástico, o escárnio, o jeito mandão, a soberba, o enxovalho, a humilhação. Uma revolta silenciosa, um nó na garganta, a repulsa, e o rancor que o tempo se encarregou em moldar. O sangue em brasa, os nervos e as veias à flor da pele, a nuca rígida, os músculos da face contraídos, a cabeça pesada, calafrios, a idéia fixa, todo o corpo enrijecido, a cabeça rodando, sem que nada pudesse ser feito.

 

Quando deu por si, havia desejado, planejado e visualizado todo o crime. Para o inferno! Mandaria aquele idiota para o fogo dos infernos.  Irritado, esmigalhou o cigarro e arremessou ao longe. Arderia nas profundezas do inferno. Não tinha volta, precisava matar, esganar, sorver cada gota de sangue, mas como, nunca matara uma mosca? Tudo tem sua hora e lugar. Eis que havia chegado a vez do verme. Deixa está Carcará! Cobra, Morrinha, Animal Peçonhento!

 

Os dentes a ranger sem controle, a boca seca, um travo. Vingança, Vingança, Vingança, um sentimento forte de vingança, mataria aos poucos, chegaria ao êxtase vendo a cara do escroto pedindo clemência, pedindo perdão por toda estupidez praticada. Sujeitinho estúpido!

 

Ficaria ali sorrateiro, precisava pegar o infeliz. Aquele ser abjeto o levara àquela situação vexatória.

 

Não tinha mais nada a perder.

 

Toda uma vida destruída, por capricho de um indivíduo sem escrúpulos.

 

Sujeito Estúpido. Estúpido! Homem Estúpido!

 

Sempre o tratara com apreço, deferência, nunca lhe fizera mal nenhum e ele como um desequilibrado, retribuía-lhe a socos e pontapés.

 

Estúpido! Estúpido e desnaturado, como todos à sua volta.

 

Ninguém quer ver ninguém bem: "A humanidade é peia! É dura! É peinha!" como gostava de repetir a senhora mãe dele e é mesmo: ninguém quer ver ninguém bem, o outro bem.

 

Quando você mais precisa, não aparece ninguém, se lhe acontece uma ventura e conta para alguém, parece entediar a pessoa, é um coisa menor, na melhor das hipóteses, um muxoxo, um bocejo, um enfado. Entretanto, se for uma desventura, os olhos se arregalam ávidos, as narinas se expandem, são atenciosos, compadecem-se, tornam-se piedosos, cheios de indagações, querem mais detalhes, parecem querer compartilhar do seu fracasso. Já, o sucesso parece incomodar, gera indiferença, pouco caso, inveja.

 

 O homem feliz é um estorvo para os outros homens.

 

Enquanto delirava, apertava cada vez mais e mais forte a sacola contra o peito. Atordoado pelo golpe do destino, olhava de viés, sem fixar o olhar nas mansões, muitas das quais, agora, servindo apenas de fachada para os Condomínios de Luxo. Aborreceu-se. Fixou o olhar no oitavo andar da Mansão Costa Pinto, mansão só no nome, um edifíciozinho metido a merda! Resmungou impropérios.

 

Ofegante, respirava com dificuldade.

 

Roeu as unhas, tentando acalmar-se.

 

"A Vitória era o pulmão da cidade, hoje entupida de arranha-céus empatando toda a ventilação e visão paradisíaca da área", resmungou nostálgico.

 

Descansou por instantes arriando-se sobre o tronco da árvore qual um fardo.

 

O chefe dele mora, ali, naquele prédio imponente, oitavo andar, tem até bondinho,

 

Teleférico — como eles chamam —, descem até o "Píer" e pegam a lancha para fugir do tráfego, ele, o chefe, é diretor do antigo INPS. "Aonde esse homem teria arranjado tanto dinheiro? Mistério!, a Bahia é uma terra de muitos mistérios!".

 

Ele, Hermenegildo, celibatário convicto, funcionário concursado do antigo INPS, com vinte e cinco anos de serviço e nenhum dia de falta, mal conseguira comprar um desses apartamentos do Sistema Financeiro de Habitação. Morava numa quitinete no Sodré, próximo à Ladeira da Preguiça.

 

Como é que o chefe dele já adquirira todo esse patrimônio? "Mistério!... Mistérios!...". Sorriu abobalhado.

 

Sempre fora respeitado na repartição. Havia passado em primeiro lugar no concurso para datilógrafo. Naquele tempo, ganhava a disputa pelo cargo, quem batesse a máquina mais rápido: cem, duzentos, trezentos toques por minuto, Hermenegildo algumas vezes conseguia datilografar um pouco mais do que isso, e olhem que naquela época não se falava em "LER", ou qualquer dessas enfermidades modernas: artrite em jovem, estresse e outras "delongas" mais, quem já viu?

 

Não fazia corpo mole, pegava as oito em ponto e largava as dezoito em ponto, vez ou outra um serãozinho se preciso fosse.

 

Todos ficavam abismados com tamanha rapidez: uma minuta, era num piscar de olhos; vinte laudas, meia hora; calhamaços e mais calhamaços abarrotados de termos técnicos só mesmo o Hermê para dar conta, e, ainda assim, sem um errinho sequer.

 

Agora estava, ali, em frente da mansão onde morava o chefe, aliás, o ex-chefe, há dois meses recebera o ultimato, teria que aprender a usar o computador, a repartição modernizar-se-ia: "Precisavam acompanhar a mudança dos tempos"; "Os tempos agora são outros, seu Hermê", dizia o chefe em claro e bom português. Precisavam acompanhar a modernidade, a globalização. "Nada dessa maluquice de bater a máquina, datilografar — aliás, até esse termo estava ultrapassado, o correto e moderno, agora, é digitar, muito mais chique! —, quinhentas vezes por minuto!". Não carecia mais, agora vinha tudo mastigadinho, prontinho! Não precisariam mais daqueles arquivos velhos, caindo aos pedaços, daquelas papeladas empoeiradas e de toda aquela parafernália de escritório, não. "De agora em diante caberia tudo naquela maquininha genial!". Era só "Tchuc!". Apertar o botão e estariam ali, na hora, os milhões de processos emperrados e esquecidos dessa corja de miseráveis desvalidos, por tudo isso, ele agora tratasse de aprender a manusear a geringonça, com calma, sem afobação, tomasse um curso desses de "Windows, janelas, que poético!". Hermê nesse dia não dormiu. Mas como?  Aquilo, ao qual mais se apegara, a competência datilográfica, de uma hora para a outra, não serviria para mais nada? Não valeria mais nada?

 

Nos primeiros dias até que tentou domar o trambolho. Entretanto, parecia-lhe muito lento, e também, dava agonia ver os colegas "catando milho", passando a maior parte do tempo a coçar as partes, não que isso fosse novidade, mas o chefe não dissera que os computadores iriam agilizar o serviço? E de mais a mais, achava-se burro velho demais para aprender aquelas modernagens da noite para o dia. Ele um funcionário sério e admirado, destacado, tornara-se alvo de galhofas dos mais novos, até mesmo dos contínuos, dos "boys", modernamente falando. 

 

O certo é que foi ficando desgostoso, deprimido, ou melhor, adquiriu um transtorno bipolar, como querem os politicamente corretos, alternando altos e baixos, passou a fazer corpo mole no trabalho. Passava horas e horas frente à tela branca sem nada pensar, até desabar num choro convulso. Então, veio o tiro de misericórdia: "Seu Hermê, pensando bem, talvez seja melhor o senhor tirar umas férias, noto que o trabalho aqui para o senhor está deveras estafante, logo mais, passe no departamento pessoal e depois na minha sala, okey?", disse isso, lambendo uma barra de chocolate com a maior displicência enquanto jogava "Power Ranger's" no computador com os estagiários, o filho da puta! "Quem sabe ele não aproveitaria para aprimorar os conhecimentos cibernéticos?". Rejeitou essa proposta com fúria e veemência e com isso foi posto no olho da rua e, além disso, passou a responder processo por agressão física e desacato à autoridade. Enfim, foi sumariamente demitido, sem direito a aposentadoria compulsória ou qualquer outro beneficio. Nem mesmo as "merrecas" do FGTS.  E logo quando estava próximo da aposentadoria? Saiu com a mão na frente e a outra atrás.

 

Por tudo isso estava agora na porta da mansão do canalha, à tocaia, as veias a querer saltar do pescoço, suando frio e tremendo de raiva, com a boa e velha companheira à tiracolo. Nesse instante, anda de um lado para o outro da calçada como um cão raivoso, alisa a sacola com carinho e a aperta contra o peito. Cansado de tanto esperar, ansioso pela saída do salafrário, entra no edifício para o acerto de contas...

 

Quando a imprensa e a polícia chegaram ao local, encontraram um corpo estendido, em decúbito dorsal, no "playground" do Edifício Mansão Costa Pinto. O policial interrogou o porteiro, este, nada vira ou ouvira. Nenhum vizinho deu o ar da graça. Dois pedestres, "bem-informados", que passavam no local pensaram tratar-se da gravação de um desses programas sanguinolentos e "culturais" que grassam a televisão brasileira.

 

Mistério. Apenas, rachaduras no crânio em forma de casca de pinha e um filete de sangue a correr pela fronte do morto, ao lado do corpo, uma velha máquina datilográfica "Remington" destroçada e um pedaço de papel ainda preso às ferragens escrito em letras garrafais e meio apagadas: Viva a Modernagem!

 

Somente e mais nada...

 

 

 

 

Buzu V (Quem com ferro...)

 

 

O buzuzinho já saiu acochado, em cada ponto que passava ia ficando mais e mais apertadinho, difícil encontrar espaço para colocar o que quer que fosse, e lá se ia ele, espreme daqui, aperta dali, uma pisadela, uma leve cotovelada, um chega pra lá que o debaixo é meu e mais um ponto. Ninguém saltava, somente passageiro entrando, quer dizer, espremendo-se até não poder mais. Contorce daqui, estica dali, encolhe acolá. Espreme, retorce, geme e passa. Ainda bem, não aparecera nenhum evangélico pregando, tampouco vendedores ambulantes e muito menos mendigos espargindo o odor ambiente. E lá vai o buzuzinho celerado em ziguezague, um freiozinho de arrumação acochando ainda mais os passageiros, vez por outra, algum gemido ou suspiro, no mais, tudo na mais perfeita paz.

 

Foi quando uma morena, um pedaço de mau caminho bradou empinando o seu carisma com força para trás:

 

— Vá fazer terra em sua mãe, seu safado!

 

— Quéisso Dona? Pelo amor de Cristo! Gemeu o raquítico homem pendurado na potranca.

 

— Safado! Crente safado! Insistia a sestrosa revoltada sacudindo ainda mais o divino patrimônio.

 

— Eu não sou crente não, mas tenha fé em Deus, nesse apertucho quem é que vai pensar em safadeza?

 

— Você, seu velho discarado! Gritou espumando e sacudindo o braço.

 

Todas as atenções se voltaram para o casal em questão: um homenzinho naquele bolo de gente, acabava de receber um tabefe.

 

O pobre coitado parecia estar colado à mulher, tentava desvencilhar-se daquele rabo, mas o espaço reduzido não permitia, e a morena continuava a distribuir sopapos e safanões à torta e à direita.

 

— Ó pra num sobrar pra mim! Bradou um malhado atrás do homem franzino.

 

Estava o cassete armado. O maior ouriço.

 

A mulher xingava, espumava, bufava, e o buzuzinho siricotico, picado, bamboleando. Os passageiros no maior auê e o homenzinho grudado no balaio. Foi quando um sujeito com pinta de advogado de porta de cadeia, berrou lá do fundo:

 

— Leva pra o Distrito, Motô! Leva pra 2ª DP!

 

Foi o maior rebucêtê. O coletivo todo ouriçado com a possibilidade de ir parar na delegacia...

 

E tome-lhe sopapos! E o pau comendo na casa de Noca!

 

Um velho com um bafo de cana caiana, levantou-se, ameaçou falar alguma coisa e uma senhora ao lado livrou-lhe de tomar uns catiripapos.

 

Lá na frente, o motorista atordoado, hesitava, tentava abrir as portas, impossível.

 

Agora todo o buzu gritava: "Leva pra Delegacia, motô!".

 

O motorista atordoado pedia informações ao cobrador que a essa altura era mais um amassado no acocho.

 

E o homenzinho grudado...E o homenzinho engatado...

 

— Calma, minha senhora, sente-se aqui no meu lugar. Disse um senhor distinto levantando-se, tentando acalmar a morena.

 

Aí é que complicou mais ainda, quando a morena sestrosa tentou sentar-se ficou grudada no educado senhor. O buzu veio abaixo: gargalhadas, dichotes, assovios. Empurravam-se  sobre o casal entalado e o buzu em ziguezague. Até mesmo a mal-humorada rabuda, abriu um sorriso, enquanto o cavalheiro suava frio, pálido e acabrunhado.

 

Que sufoco!

 

— Pára o carro, motô! Gritavam em algazarra os passageiros da frente.

 

"É nem uma". Retrucavam com bazófia os do fundo.

 

 Pára o carro, "É nem uma", não precisa mais levar pra puliça, não. "É nem uma". Ela tá gostando... Gritou o entendido em casos policiais da cozinha.

 

O motorista perguntava aos berros ao cobrador: "É pra levar ou não, Sariga?".

 

— Leva o carro, motô, leva o carro! Atiçavam os passageiros em festa.

 

— Sei não, a Madame é que sabe... Respondeu Sariga, suando entre pernas e bundas.

 

— Carece não, eu já perdoei o safado, gente fina é outra coisa, disse com dengo sorrindo para o distinto, amarelo e sem graça, gemendo entre o banco e o balaio.

 

— Pobre sofre! Murmurou o homenzinho amarfanhado entre a cintura do polido cidadão e o bafo de um malhado na nuca.

 

— Fica frio, que já vai descer gente e eu alivio pra você. Disse o bombado, sussurrando ao ouvido do infeliz.

 

"É, quem com ferro fere, com ferro será ferido", pensou e suspirou o coitado, resignado, tentando desvencilhar-se do bafo quente e da estrovenga que lhe espetava as costas, enquanto alguns passageiros solicitavam a próxima parada.

 

 

 

 

(imagens ©brilliantovui)

 

 

 
 

Eduardo Calazans. Baiano, escritor, dramaturgo, membro da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (Sbat), quatro peças teatrais publicadas, dois livros de contos inéditos. Tem textos publicados na internet nos sites Releituras, Arquivo de Renato Suttana e no Comédias Baianas.