AS MEDIDAS PERDIDAS

 

 

Zequinha Faria estava pra lá dos 70 anos e tinha a vista cansada. Não acertava com os óculos comprados sem receita médica. Era famoso pela humildade e pela desordem que imperava em sua sapataria, a mais antiga e tradicional de Tabuí.

Mesmo desorganizado, os fregueses não o abandonavam devido aos preços camaradas que ele cobrava pelos seus serviços. Geralmente seus calçados eram feitos sob encomenda e sob medida.

Um dia chegou à sapataria o senhor Tonico Teixeira, lá das bandas da fazenda Toatoa. Tonico Teixeira, também pra lá dos 70, era homem sério, de semblante rude e voz arrogante. Cumprimenta o velho Zeca, pergunta pela noiva e pela data de casamento.

— Compade Tonico, a data do casamento só depende do meu irmão, o Padre Faria, que a quarqué hora entra de férias lá em Bambuí. Aproveitano sua pergunta, inté vô te convidá pra ocê ajudá a me amarrá!

— Uai, compade  Zeca, é todo meu prazê! Inté vai interá treis veis que ti apadrinho, ne memo? Antão, compade Zeca, vamo aproveitá e tirá a midida dos meus pé pra ancê fazê uma butina bem bunita pro dia do seu casório!

Tonico Teixeira tinha os pés curtos e esparramados, formando um semi-círculo. Zequinha Faria pegou caneta, papel e fita métrica. Media os pés do seu compade e cautelosamente anotava as medidas, coisa que outros sapateiros da cidade não se aventuravam a fazer. Eram sabedores de que não encontrariam formas adequadas para aqueles sofridos pés.

— Quando é que fica pronto, compade Zeca?

— Daqui uns 15 dias tão prontos compade Tonico!

Passados os 15 dias, tá lá o velho Tonico na porta da sapataria.

— Pronto, compade?

— Não!

— Pra mode quê?

— Perdi as mididas.

— Antão nóis tira outra, cumpade Zeca!

Tiraram outras medidas e marcaram o dia da entrega. Novamente o desorganizado sapateiro perdeu o papelinho onde anotara tudo. Começou a pensar nos coices, na arrogância e no falatório do compade. Fazer o quê? Numa breve reflexão, lembrou-se de São Judas Tadeu, o santo das causas impossíveis. A solução veio na hora. Pegou um prato esmaltado, um pedaço de vaqueta, afiou a faca, colocou dois óculos no seu rosto magricelo, olhou pra frente, olhou pros lados e falou:

— Seja o que Deus quisé!

Meteu a faca na vaqueta, cortou-a na forma do prato, solou os cortes, colou os saltos e pronto. Estavam prontas as benditas botinas. Parecia um rodeiro. No dia marcado chega o velho fazendeiro.

— Tão pronta as butina, cumpadre?

— Sim!

— Antão dexa eu isprementá, pra vê si é preciso de currigi!

O carrancudo fazendeiro enfiou os pés nas botinas, deu uma volta, repetiu o desfile, parou, olhou admirado pra elas, levantou os olhos em direção ao compade Zeca e admoestou:

— Cumpade Zeca, sê organizado! Num perca essa midida! Ancê tem mãos de fada pra tirá uma midida!

O velho sapateiro, com voz pausada e tímida, respondeu:

— Num tem perigo, compade Tonico! Enquanto existir prato esmartado pra vendê, num vai fartá midida pros seus pés!

 

 

 

 

A JARARACA DA SOGRA

 

Esta aconteceu logo após a chamada Revolução de 64. Do Praxedes e de uma turma de uns oito companheiros, — porque falavam mal do governo —, o prefeito disse que eram comunistas e comunistas  ficaram sendo. Estavam marcados para, a qualquer hora, serem presos pelos milicos que chegariam de Belzonte. Isalaram. Cada um tomou chá de sumiço. Uns viajaram, outros foram pro mato, outros... o certo é que ninguém ficou em casa. Menos o Praxedes, que não tinha pra onde ir. Solução era arranjar doença. Inventou dor de barriga e caiu de cama.

Ficava debaixo do cobertor, atento a qualquer barulho vindo de fora, suando em bicas e gemendo, para manter as aparências.

— Se estrepou, neguinho!... — cantarolava, em ritmo de samba, toda alegre, dona Zulmira, enquanto passava pano molhado no piso da sala.

O que o Praxedes não podia esperar era a traição da sogra que, até que enfim, arranjara oportunidade de vingança. Antipatia mútua. O genro sempre tratara dona Zulmira na base de jararaca pra lá, cascavel pra cá. Expulsara-a de casa várias vezes, obedecido em nenhuma delas, proibia-a de ir à porta da rua, regateava comida pra velha... em resumo, viviam em guerra os dois. Pois bem. Chegou a hora de dona Zulmira ir à forra. Foi pra porta da rua cumprimentar todo passante, saber das novidades e apreciar o movimento, doida para ver chegar bando de milicos na sua porta. Como não chegavam, gritou pra vizinha de frente:

— Ô dona Nair, dona Nair Terezinha! É verdade que tão prendeno gente?

— Tão, sá! Tudo quanto é comunista dizem que tão levando pra cadeia...

Praxedes, cujo quarto dava pra rua, ficou mais sobressaltado com a informação. Começou a tremer debaixo do cobertor e a barriga passou a doer de verdade, abrindo precisão de ir ao banheiro correndinho. Com os ouvidos de butuca pra cima e o tiroteio saindo pra baixo, no vaso.

— Mas, óia, dona Nair, será que já prendero muitos?

— Ouvi dizê que bem uns cinco já tão lá na cadeia, sá!

— Mas a senhora sabe que ainda falta gente preles prendê, né?

— Farta quem, dona Zulmira? Sei não!...

— Aqui em casa mesmo tem um fingino doença, — mó qui com nó na tripa —, que é o maió comunista da cidade...

Dona Zulmira disse a última frase gritando, como se quisesse ser ouvida por toda a rua. O Praxedes, lá no banheiro, já com cólica na barriga e ânsia de vômito, teve calafrio na espinha ao sentir a flechada da velha. Cortou ao meio sua precisão e correu pra cama, ainda lambuzado. Tremia tanto... mas, de lá, tafuiado embaixo dos cobertores, respirando catinga de um pum desobediente, arranjou coragem de abrir uma frestinha para respirar ar fresco e gritar pra velha:

— Cê inda me paga, jararaca! Deixe as coisas acarmá quiocê vai vê o quequié bão pa tosse, viu?!...

 

 

 

FUTEBOL NO INTERIOR

 

Lá no interior futebol desperta grande paixão. Cada timinho, com camisa bonita ou feia, vistosa ou descorada, ou sem camisa mesmo, luta bravamente, até no tapa, se preciso for, para defender seu torrão.

Assim é que, no sábado de tarde, começaram a chegar a Tabuí os representantes do Lusitano Futebol Clube, um timinho danado de valente, lá do bairro do Cerrado, ali mesmo do Bambuí. Chamava-se Lusitano porque o Zezim Mecânico, o dono da bola e, conseqüentemente, do time, achava esse nome muito chique e bonito, mas nem sabia o significado da palavra. A turma foi chegando e se ajeitando como podia para tomar banho ou botar perfume por cima da suvaqueira, já que Tabuí preparara festa com baile para receber os atletas da cidade vizinha. A marmanjada caiu na dança, aproveitando os escurinhos do Ranchão do Bia e, atrás dos esteios e das samambaias choronas, só queria saber de música lenta, assim pra juntar a parceira nos panos, bem agarradinho, fungando no cangote e deixando mão-boba passear. Meninas de Tabuí mais assanhadinhas, principalmente em presença de forasteiros — que, em tese, poderiam, um dia, levá-las a correr mundo — não deixavam por menos, com os devidos cuidados, já que precisavam conservar-se incólumes para arranjar marido. Sem deixar de aproveitar o bem-bom, seguiam os conselhos das mais experientes que ensinavam ó mão-na-mão pode, mão-naquilo também pode, mas, aquilo-naquilo, nunca, jamé. Só casando.

Ao fim do baile, com todo mundo de ressaca e cuspindo azedo por causa da qualidade da pinga adocicada vendida pelo Bia, conservada em barril que um dia guardara soda, — é pincumel, gente! da boa! — houve atletas que conseguiram dormir um pouquinho, ali mesmo no Ranchão, alguns até grudunhados no cangote dalguma mocinha. Mas nem deu oito horas, tava a marmanjada de pé, com o Zé Tramela, o ponta direita, nervoso demais da conta com o gosto de cabo de guarda-chuva na boca e xingando todo mundo: iscondero minha iscodidente, cambada de fedaputa!

Os visitantes andavam pra cá e pra lá, pelas quatro ou cinco ruas da cidade, sondando o ambiente, reconhecendo terreno e jogando piscadelas, ainda remelentas, pras meninas. Um frejo quisó.

Mas, vamos ao que interessa. Houve o jogo. Com muita canelada e muita insubordinação. Terminou tudo num pífio empate de um a um, com um frango homérico do goleiro visitante, embora o seu time, o Lusitano Futebol Clube já estivesse com a partida ganha. Foi uma glória para o sofrido povo de Tabuí o gol marcado pelo intrépido beque Zizifrido que lavou a honra do time, prestes a ser ultrajada. Zi, como era conhecido, virou herói. Quando perguntado pelo locutor da Rádio Tocatudo qual o milagre de um chutinho daqueles virar gol, não teve dúvida em responder:

— E eu sei? Só sei que chutei a bola e ela foi fono, foi fono, foi fono... e, niquieuvi, ela tava lá, dendo gol, sô!...

O goleiro Zafarel, meio zarolho depois do gol, foi de uma sinceridade piedosa:

— Ó, sô! Vi quais nada. Só sei que a bola veio vino, veio vino, veio vino e cresceno... assim que mirei ela, quesse meu oio bão, já bem grandona, pulei nela mas a merda já tinha passado...

Depois do jogo, outra festança oferecida pelo povo bão da cidade, com churrasco de vaca magrela e cerveja quente. Que fez efeito a ponto do Zezim Mecânico chutar discurso doidimais da conta.

— Gente! Cheguemo, joguemo, num perdemo e nem ganhemo... só impatemo!... Gostô Nicodemo?

Os visitantes, que gostaram foi nada do empate, começaram a se mandar, lá pelas tantas da noite, em caminhão, feito pau-de-arara, na rural do Tancredo Chuvas e, pro fusquinha do Zezim Mecânico, o chefão, só sobraram o próprio e o infeliz frangueiro Zafarel que ninguém, de pirraça, quis levar. Zezim, bêbado e puto da vida com seu arqueiro, resolve, também ele, negar carona:

— Ó, sô! Prestenção! Cê num é dêis? Num jogô prêis? Num frangô prêis, trem? Agora fica cuêis!...

E o goleiro Zafarel teve que curtir uma noite solitária e sem glória — e agora, concovô, meu Deus? Poncovô? — num banco da praça de Tabuí. Convicto do seu erro, lamentava-se, enquanto buscava sono, esse povo é ingrato mesmo, pensano que sou um compreto inúti. Sou é não. Sirvi omeno de mau exempro pros mais novo, uai!... Bispando o dia, teve que arrancar, no dedão do pé grande, as três léguas até o Cemitério Municipal de Bambuí, onde era o coveiro e dava expediente dia-sim, dia-não, havendo ou não defunto, num revertério com o Nicolino, o colega sepultador. Houve luto de uma semana, no Cerrado, pelo jogo perdido. Faltou pouco pro Zafarel perder o emprego naquela quadra, mas goleiro do Lusitano Futebol Clube ele nunca mais foi.

 

 

 

(imagem ©josé roberto aguilar)

 

 
 

Um menino que nasceu e começou a crescer lá no interior do interior pescando piabas, traíras e chorões no anzol e no puçá... pegando juritis e saracuras na arapuca... chupando ingá, gabiroba, peidorreira, baco-pari, araçá, mangaba e cagaita... montando cavalo em pêlo... bebendo leite direto dos peitos de vacas, éguas, cabras e ovelhas... comendo pururuca, angu com couve e torresmo... morrendo de medo de assombração, evitando mato para não virar comida de onça... fazendo promessas pra São Sebastião, São Jorge e Santa Bárbara... garrando com o chefe de tudo quanto é santo para não deixar nenhum insatisfeito... acreditando no coisa ruim, em mal olhado, em assombração e no saci pererê... curando cobreiro e inflamação de aroeira na Maria Geroma às custas de muita Ave-Maria e fio frio da faca afiada... educado sob a batuta do chicote e ameaças de castigo de Deus, nosso Senhor... trabalhando como candieiro guiando carro de boi... trabalhando como meeiro e tarefeiro no cabo da enxada... ajudando vaca na hora do parto... vendo a Joaninha apanhando do Zé da Ponte do Bode, enquanto ele cobria de mimos e beijos a mocinha Julieta... bebendo chá de mané turé, carqueja, fedegoso, chapéu de couro, congonha... comendo beldroega, broto de aboboreira, miolo de gueroba, frango com pequi, angu com quiabo, quibebe, inhame com leite... assistindo a boiada passar... vendo o trem de ferro apontar na boca de um corte e sumir na outra carregando boi, muquiça e gente... vendo a enchente destruir as roças de arroz e milho do pai... arrancando mandioca no muque pra farinha e o polvilho do ano... fazendo paçoca de carne seca e socando arroz e café no monjolo de pé... indo pra escola a uma légua de distância no cavalinho da orelha murcha... convivendo e conversando com João Pelota, Zé Rosa, João Garrote, João Geada, Zé Ficiano, Zé Pelotinha, João Garrotinho, João do Zé Ficiano, Zeca do Zé Ficiano, Zé Albino, João Miguel, Zé do Orico, Zé Taviano, João Vergina, Zé Cota, Zé Ramo, João do João Vergina, Severo... só podia dar no que deu: um escrevedor de coisas da roça.

 

Assim é Eurico de Andrade. Para contar ele não leva muito jeito não. Mas para escrever!... Sai por aí a fora e entra discretamente, como bom mineiro, em qualquer cantinho onde tá rolando uma boa prosa. E anota tudo o que ouve para depois transformar em assunto pros seus causos e contos extremamente localizados naquele ponto onde tudo, para ele, começou, fiel ao ensinamento que um dia leu num livro de um mestre russo "se queres alcançar o mundo, escreve sobre tua aldeia".