


Quando subia
as escadarias da faculdade, e a alma ia expandida, ansioso com o evento
que se aproximava, minhas pernas eram de um animal montês, e já estava
quase no topo, quando parei de súbito atrapalhando a pressa dos que
agora tinham um outro obstáculo a vencer além dos degraus, e parei
porque vi descendo na minha direção a criatura mais improvável que eu
poderia encontrar, ao menos fora do sonho. Com tantas pessoas no mundo e
fui encontrar justamente esta! A impossível. Vi que era eu que descia as
escadas; eu mesmo, tão metido em mim que não me vi subindo. E esta era a
única diferença entre nós, os mesmos traços, a mesma idade, a mesma
maneira de estar e de olhar solitário quando solitário estou entre as
pessoas, e a única diferença era esta: eu que descia, descia sem nenhuma
consciência de mim que subia consciente do eu que descia inconsciente de
mim. Pois eu me vi passando por mim, e o passante me olhou, mas como
quem olho um cartaz sem atrativo que alguém fixou numa parede pouco útil
para se colocar cartazes. Eu descia e nem detive meus passos e nem me
voltei para ver que, atrapalhando as pessoas, lá estava eu num degrau da
escada olhando-me ir embora. Nesse instante, senti que devia descer para
acompanhar aquele que lá ia tão desprendido de mim, mas uma mão me
deteve, me puxou pelo braço me chamando ao compromisso. Era o Esteves; o
gentil mestre de pedagogia, dono de uma pequena cultura e de um enorme
otimismo, que sorria ignorante ao que se passava comigo, queria porque
queria me acompanhar, mas quem acompanharia a mim que há pouco desci as
escadas? Ninguém. Lá ia eu só já me aproximando da saída, naquele
instante em que uma aluna me pegou de papo na porta, e eu não podia nem
queria agora falar não sei de que livro; precisava sair. Não queria ser
indelicado com ela, tão bonita, tão involuntariamente sedutora,
mas meu coração estava em outra parte, tinha ainda que pegar um ônibus e
um metrô, e não podia chegar atrasado ao meu encontro com
Irene.
— Você está nervoso. —
disse-me o Esteves, agora sorrindo dos meus modos.
— Não é
todo dia que se lança um livro — tentei me justificar.
Então
entramos na sala, que minha alma fez ainda mais ampla e iluminada. Quase
ninguém ainda havia, mas não sei que ar festivo sagrava nas lâmpadas que
dava a tudo uma jovialidade nervosa: as coisas tinham as cores de festa
aguardada. Isto me dava uma sensação como se o fantasma da aventura
resolvesse me habitar. Ah, a aventura! E isso acontecia justo a mim, não
sei se o que me acontecia justo a mim era justo, e, no entanto, sei que
era a mim o que acontecia, a mim que fora pai de umas tantas aventuras
que as livrei de mim, como livrava de mim agora um punhado delas, em
forma de livro. Acrescente-se a isso o fato, o incômodo inconfessável,
de eu, inconsciente de mim, estar neste momento enfrentando a chuva, uma
chuva inclinada pelo vento frio, a qual a atravesso indiferente a todos
os caminhos que não seja o que me leve a Irene. Se este ônibus não fosse
tão lento talvez eu chegasse antes de Irene. Queria chegar antes dela,
queria vê-la vindo, estou com saudade do seu balanço ao andar, ela que
andava como se para além do corpo o balanço existisse. Com um frio desses, ela se fará
certamente mais elegante, que sempre soube a maneira de tornar o tempo
(ao menos o metereológico)
a favor da beleza. Talvez venha com aquelas pulseiras, umas
pulseiras coloridas, lindas, de que ela sabia que eu gostava porque
ficavam tão bem nos seus gestos. Lembro de uma vez que brigamos, e, num
dado instante, punha tal movimento às mãos enquanto falava, que me foi
impossível continuar discutindo. Pasmei quieto acompanhando o movimento,
deixando-me levar à regência de suas mãos finas e brancas, que me
levavam para cima e para baixo, para um lado e para outro. Suas mãos.
Suas mãos, neste enlevo, tapavam meus ouvidos de sua zanga ao me
carregarem para um paraíso todo feito de um branco movimento.
À parte
toda a esperança de encontrá-la, e encontrá-la maravilhosamente bem, não
sei que tom grave e indisfarçável havia, quando sua voz ao telefone, em
rouca melodia, aceitou vir me ver.
Na calçada as
pessoas se encolhiam por causa umidade e do frio que nela ia. Que beleza
triste, mas talvez isso seja uma redundância, havia nesta pintura no
chão da rua que, com alma impressionista, se refazia continuamente! Não
sei que mistério essas coisas agitaram dentro mim, sei que a noite
chuvosa era mais do que noite e chuva, era, por exemplo, eu estar indo
agora ao encontro de Irene, era a imagem diante dos olhos (e na carne de
alguma forma) da minha busca. A noite e o que nela rebrilhava me
invadia... os brilhos!...
Havia tanto mistério nestes brilhos quanto no que a escuridão secreta.
Estes brilhos eram em minha homenagem, e eles se traduziam não só nas
luzes desta grande sala, mas no reluzir dos metais e das pedras que,
principalmente as mulheres, traziam no pescoço, nas orelhas, nos braços,
e às vezes em outras partes do corpo, algumas mais ocultas, tudo em
homenagem a mim. Vestiram boas roupas, tornaram-se bonitos e elegantes e
vieram me ver; os amigos mais simpáticos, e as amigas simpáticas como só
as mulheres sabem ser, algumas muito mais bonitas, algumas mais tesudas
do que já são em dias de semana, e tudo em minha homenagem, para mim que
nessa noite sou o autor que eles vieram ver. Mas eu também estou aqui em
homenagem a cada um deles, são meus amigos, e me vesti elegantemente
essa noite para mais bonito poder abraçá-los, e ainda que assim não seja
preciso, nem possível, mostrar-me inteiro e ser eu um
eu-comtodos, vários e irmanados. Alguns, ainda esta noite, irão
me dizer, com ênfase e sinceridade, que esperam já pelo próximo livro,
rendendo assim um velado elogio a minha pródiga e presumida capacidade
criativa. Outros, igualmente sinceros, irão prever uma longa série de
obras vindouras que me trará muito sucesso. E desejam-me sucesso.
Sucesso!... Ainda que não saiba direito que diabo será o sucesso! Virar best seller...
será? Com todo o firmamento e todo abismo que há nisso? E este
momento de embriagues reflexiva foi subitamente quebrado, quando de mim
e de Esteves um amigo se aproximou e me cumprimentou com um sorriso e um
abraço.
Era o
Ângelo e seu mais terno abraço, o professor Ângelo, aquele que fazia
justiça ao título e ao nome. Gostou muito do meu primeiro livro, e
conversamos em dois momentos, em duas agradáveis tardes falamos de um
conto que tanto entusiasmara Ângelo. O que para mim fora falar de algo
que já não me pertencia, mas pelo qual eu sentia grande carinho e a
estranha responsabilidade de tê-lo criado. Lembro-me que nos detivemos
animados nos prováveis desdobramentos que o tema sugeria. Havia na sua
trama, sinto vontade de confessar agora, havia ali muito do que há aqui,
já havia este eu dividido, o autor de contos e o homem que atua em
outras intimidades no grande palco que é, como Calderon já o concebeu,
esse nosso viver. Referindo-se às peripécias da trama, Ângelo me
perguntou se eu poderia escrever um conto que fosse o oposto àquele, um
conto que tivesse uma história banal com o mínimo de enredo. Na época
não soube o que respondi, hoje sei que poderia escrever uma história
assim, que todo conto procura seu leitor, ainda que seja um único
leitor. E por evocar essas lembranças é que era-me ainda mais sincero o
abraço de Ângelo, e que eu recebia com grande prazer. A noite
prometia-me suas bênçãos. Como é bom um abraço! E eu estava com saudade
dos abraços de Irene.
Enquanto subia as escadas do metrô da estação Trianon, senti que
ela ia a meu lado. Era a lembrança de uma tarde com Irene invadindo a
noite presente. Ela ia apaixonada por mim e eu subia, seu braço agarrado
ao meu, para o lugar que fora escolhido por nós para ser o nosso. E
outra lembrança penetra esta lembrança, e juntas penetram o momento em
que escrevo estas coisas; e assim, naquela outra tarde de sol e de
frescor, Irene, cheia de encanto, disse que a Paulista era o nosso
lugar; e suas palavras, soltas a mim e ao vento, encantaram-me a avenida
para sempre. Ainda que as milhares de pessoas que a atravessam todos os
dias desconheçam isto completamente, a Paulista é, e o som da sua voz
toca a memória do meu ouvido, a Paulista é, a partir de hoje, o nosso
lugar. E essa posse foi selada com um beijo, ali mesmo no alto da
escada, onde me via agora.
Ando pela
Paulista como se fosse sempre uma primeira vez, mas, de fato, é sempre a
primeira vez, uma primeira vez sempre neste rio do velho Heráclito.
Outra vez te revejo, outra vez meus passos suportam sentimentos novos,
porque, ao contrário do que se imagina, os sentimentos são sempre novos
e é por isso que são tantos, tantos quanto são as histórias que os
abraçam. Caminho e a chuva, que fina e oblíqua, não cessou; a chuva
molha meu rosto e este molhar é para mim não mais que a brisa leve do
caminho que me leva a Irene.
Irene, e o que
eu mais temia era uma negativa sua, aceitou meu convite depois, é
verdade, de uma comovente insistência minha. Deve ter deixado o Marinho
com a avó, ou com o pai. O menino já tinha doze anos e Irene, separada
há quatro, era uma mulher livre. E lá ia eu caminhando com alegria, com
aflição e com uma frase preparada. E seus olhos surgiram arregalados de
surpresa na minha imaginação e me fizeram sorrir. Sabia que podia
surpreender Irene. Num dado instante em que ia com estas coisas, vi
aproximando-se de mim, e passando por mim, Irene. Não... Irene! Foi a
chuva fina que iludira-me os olhos da alma. E então, num instante de
olhar, a moça que cruzou comigo deixou de ser Irene para ser apenas uma
simples moça passante, que só um pouco, um nada, se pareceria com Irene.
Já era outra aquela que ria, e se ria, por certo, de algum pensar à toa
e secreto seguindo seu caminho. Esta mulher, que se aproximava agora,
era outra. Era Cássia. E ela veio sorrindo, e seu vestido azul cruzou o
salão, e se aproximou de mim e me abraçou. Que bom te ver, Cássia! E
seus olhos brilhavam! Descobri a suma verdade, não, não era isso o que
eu queria dizer a ela, nem foi nesta noite de maravilhas que a descobri;
para ser sincero, naquele momento eu nem pensava em nada, em suma
verdade alguma, penso agora em que escrevo. O curioso é que é mais um
pensamento sentido que um pensamento pensado. Foi num tempo anterior,
mas que não me lembro precisamente qual foi, que descobri a verdade das
verdades. E naquele momento Cássia já sorria muito com os olhos, mas a
verdade das verdades, e Cássia me abraçou e me beijou e me cumprimentou,
e senti também, no momento em que me abraçou, que talvez quisesse me dar
ainda outra coisa. Ah, quanta ternura eletrizando seu corpo! E a alegria
dessa noite se renovava em nós. Ainda assim, mesmo naquele instante
vigorava a verdade das verdades, quase inconfessável, mas a verdade, a
singela verdade, é que a
vida é muito triste. E ela faz parte mesmo dos momentos de alegria como
este, em que eu oferto a outro homem, a outra mulher, as minhas
confissões mais inconfessáveis, desdobradas, revividas, nas estórias que
compõe um livro; mesmo ainda em outros momentos de amor, de qualquer
tipo, ela vigora: a vida é muito triste. E foi, no entanto, tão bom
abraçar Cássia, eu gostaria que você soubesse disso, Cássia. Que prazer
não me dava passar umas boas horas conversando com você! Mas hoje nós
tínhamos um mundo dentro dessa sala se abrindo em abraços, beijos e
desejos de felicidade. Então só nos restou trocar algumas frases nos
olhares que cruzamos esta noite, pois esta noite, como você dizia, era o
meu baile da Ilha Fiscal. Nós tínhamos então apenas que nos divertir e
guardar na memória o que, ao acaso, os olhos colhiam de material para
nossas conversas; e quantas vezes essa noite você e eu, Cássia, não
repetiu a frase: isso eu não posso esquecer de dizer para ela (para
ele). Outros viriam ainda querer me cumprimentar, eu esperava com
sincera alegria pelo abraço de alguns amigos, e assim a vontade de falar
com você, Cássia, e de falar de mim mais desta vez, falar daquele que
anda por aí buscando uma mulher na noite, teria que guardá-la para de
nossa próxima conversa futura. Queria ter dito, no momento em que nos
abraçamos o quanto Irene fazia falta. Você ficaria me olhando com aquele
seu jeito de quem parece que vai ter uma coisa, e seu lábio inferior
tremeria como treme quando para você o mundo se descortina outro. Então
preferi não lhe dizer nada, e você se afastou, e foi ficar
estrategicamente posicionada numa rodinha com umas alunas de onde podia,
de quando em quando, me ver. E eu é que a vi ali, na porta do
Franscafé. Chegamos ambos atrasados, e senti nessa coincidência
de defeitos uma vitória da deusa da convivência, tranqüilizou-me a alma
de sujeito que sempre chega atrasado a um compromisso: o seu atraso foi
uma coisa que me alegrou como se ouvisse um bom presságio. Irene chegara
poucos segundos antes e por pouco não nos encontrávamos na porta do
café.
Havia acabado
de se sentar e não me viu quando entrei e fui-me aproximando não em
linha reta, mas por outro corredor oblíquo de mesas. Acabou de arrumar o
casaco na cadeira ao lado, vasculhou algo na bolsa; tirou um cigarro e,
de um isqueiro fino e negro, uma pequena chama. Levantou depois os olhos
e deu comigo. Sorriu um sorriso inquieto.
— Então
você voltou a fumar, justo agora que eu parei — E sorri
também.
Ela se
levantou e nos beijamos no rosto.
— Alguns
hábitos são impossíveis de perder, mas não volte a fumar de novo por
minha causa.
Por causa
dela! O que eu não faria por causa dela! Irene notou que eu estava todo
molhado, mas eram só os cabelos, observei. Irene tentava ocultar o
nervosismo. Creditei isso ao tempo que andamos separados, disfarçava mal
os atos, tinha não sei que repentes tímidos de sorrisos que surgiam
súbitos nos seus lábios. Então perguntei pelo Marinho como forma de
quebrar o gelo. Irene se
surpreendera um pouco com pergunta, mas não se furtou a falar do filho e
depois, até, de um caso ocorrido no escritório. Irene estava tão bonita
e às vezes surgia um brilho particular nos olhos, quando os punha nos
meus, que eu não soube como desvendar. A garçonete se
aproximou.
— Um café
puro para mim — e voltando-me para Irene — O seu ainda é com
creme, não?
— Ainda...
Talvez fosse
imaginação minha, mas pensei que ela fosse completar este ainda
com algumas coisas não mudam. Então perguntei algo sem
importância só para que continuasse a falar. E a chuva não ia parar tão
cedo, seus lábios eram de um vermelho espantoso, e podia esfriar ainda
mais, quando essa chuvinha começa, chiiii... não para. E o vermelho
roçava de leve o branco dos dentes. E suas mãos barulhavam em rebrilhos,
ah suas mãos! Apagou o cigarro no cinzeiro. A mão esquerda posou-a sobre
na toalha branca tão próxima à minha. A cor das unhas a imitar a dos
lábios... Suas mãos... Se calhar tudo é símbolo, veio-me à alma a
alma de Pessoa nesse seu verso.
A água a escorrer pela vidraça do lado de fora e deste lado o
calor, o barulho de vozes, o cheiro bom do café e a mulher que eu amava.
E isto tudo era assim porque assim era eu amar Irene. E nesse momento,
eu nem pensava que nós já há alguns meses não nos falávamos e nem que
ela namorava outro. Ela não
havia tocado no nome dele nenhuma vez, e garanto que ele não havia dito
para ela o que eu estava pronto para dizer. Foi então que aproveitando
uma pausa sua, introduzi minha fala:
— Sabe, Irene,
tenho uma coisa para dizer.
E nisso chegou
a garçonete com os cafés, açúcar e adoçante.
Após sermos
servidos, Irene fincou os cotovelos na mesa e posou o queixo sobre os
dedos cruzados:
— Sim!
Penso que meus
olhos já anunciavam as palavras, mas nisto a garçonete voltou com um
sorriso e com um pratinho cheio de coockies. Irene aproveitou a nova
interrupção para ir ao banheiro, voltava já, já.
Irene
levantou-se e saiu, mas seu fantasma ficou ali sentado em frente a mim,
maravilhando-me. Acariciei sua invisível mão esquecida sobre a branca
toalha da mesa e seus olhos translúcidos me sorriram. Pus-me a conversar
com o fantasma de Irene as coisas que momentos depois iria querer dizer
propriamente para ela.
— Irene — e seus lábios entreabertos e seus olhos todos
meus — Não, não fale nada agora... Irene, eu quero me casar com
você.
Quantas vezes
ela não esperou ouvir isso de mim. E houve um tempo que só em pensar em
viver com ela e com um filho me arrepiava, e eu fugi disso sem saber que
estava me cortando ao meio. Ao ouvir minhas palavras, Irene atravessou a
mesa e me beijou. Quando abri os olhos, Irene sentava-se novamente à
minha frente ajeitando o celular na bolsa.
— Que
foi, você parece que viu um fantasma?
Não, não era
um fantasma, mas o Maurício que há pelo menos quatro anos não via, e que
vinha agora me abraçar. Chamei Cássia e o Esteves para que conhecessem
meu velho amigo. E acordamos o passado com rápidas frases. E Maurício me
falou de seus planos para uma nova clínica, era o mesmo e era outro, tão
próximo e tão distante daquele boêmio meu amigo dos tempos de faculdade.
— Pena
que o Ângelo já tenha ido embora, você iria gostar dele.
Mas não
pudemos mais falar quase nada, pois outras pessoas aguardavam. Cássia
aproveitou o momento para se despedir, não poderia ficar até o fim como
planejara. Era uma pena! Pedi que ficasse, mas não insisti. Depois
falaríamos. Mas falar o que? Fiquei olhando para Irene feito bobo. E foi
ela que resolveu quebrar o segundo de silêncio entre nós. O estranho não
era que Irene voltasse a falar do Marinho, mas a maneira como me olhava,
entre uma frase e outra, como se quisesse me intimidar.
— Eu
tenho uma coisa para lhe dizer — interrompi-a.
— Então
vamos pedir mais um café. Olhe, a garçonete está ali.
Chamei a
mocinha e fiz outro pedido. Irene continuou a falar, observou que eu
estava muito bem, que este tempo em que andamos separados não me fez
nada mal.
— Não é
verdade! — interrompi-a outra vez.
— É o que
parece — disse, penso que sem muita convicção, e completou —
Olha, eu também tenho algo muito importante para falar para você —
Fez um instante de silêncio e continuou — O Jorge, acho que você
não conhece o Jorge, eu e ele estamos namorando.
Meu coração
teve um sobressalto. Esperava que falasse do namorado, mas ali, assim,
do jeito que foi, pareceu-me algo tenebroso. A garçonete trouxe nosso
novo pedido e me sorriu ao sair como se adivinhasse a declaração que
estava dentro de mim para a mulher que estava comigo. Quanto voltei a
olhar para Irene, observei:
— Eu
já sabia do seu namorado, mas isto não tem importância. Eu
queria...
— Tem importância sim, meu amigo. Eu e o Jorge, nós vamos nos
casar — depois de uma pausa — gostaria que você fosse a
primeira pessoa a saber.
O que
Irene foi dizendo depois foi para mim não mais que um mover de boca,
pois eu havia caído não sei em que fundo dentro de mim, e lá fiquei,
abatido. Não sei que ação poderia me fazer voltar, o mundo tornava-se o
que naquele momento era Irene, um punhado de gestos e sons, um
moto-contínuo absurdo.
— Não! — disse quando pude dizer. Essa negação nesse jato de
som era a única coisa que vinha de fundo de mim e de alguma forma me
puxava para cima. E negava, e eu só podia negar esse mundo que me
propunha Irene — Não!
— Por
favor, não vá fazer um escândalo.
— Escândalo! — Que será que ela queria dizer com isso —
Me peça qualquer coisa, Irene. Quer que eu me ajoelhe? Quer que eu lamba
o chão? Peça qualquer coisa, que eu faço, mas não me deixe...
Irene me
olhou, não sei em que grau a piedade e o asco disputavam o brilho nos
seus olhos.
— Voltei
para você todas as outras vezes, mas não mais.
Então Irene
ergueu-se e, dobrando-se sobre a mesa, como o último gesto, um tiro de
misericórdia, colou um beijo na minha boca. Meu Deus, eram os lábios de
Irene, e há quanto tempo! Quis abraçá-la, mas ela me deteve, olhou-me
apenas e, a tão curta distância, balançou com a cabeça um não. Voltou a
sentar-se, e assim ficamos a olhar um para o outro. Fiz um gesto de quem
ia falar algo, com outro ela me silenciou, e nos deixamos levar pelo
silêncio. Foi então, depois de um tempo de assim estarmos, que um homem
se aproximou de nossa mesa. Irene levantou os olhos e deu um meio
sorriso. Era este então o Jorge!
— Então
você segue Irene desse jeito! — disse arrogante para ele
e voltando-me para Irene — Ele não confia em você,
Irene?
O homem
encarou-me, e eu estava pedindo para que ele fizesse alguma coisa. Irene
segurou-lhe pelo braço e voltando-se para mim, disse:
— Não,
ele não anda me seguindo, eu é que pedi para que viesse me apanhar.
Então era
isso; quando voltou do banheiro, Irene já havia escolhido. Ou talvez já
tivesse feito isso antes? O homem ficou mais atrás, e a mulher que se
aproximava era Irene. Ela veio, afinal, para o lançamento.
—
Não podia deixar de vir, não é?
Irene veio,
Cássia. Por me amar e por eu ter-lhe negado o meu amor, Cássia, talvez
você seja a única pessoa que possa compreender profundamente o que
sinto. Talvez esta história tão banal, sem grandes intrigas como a que
me propôs Ângelo, sem reviravoltas no desfecho, sem mortes nem
detetives, tenha você, Cássia, como a única leitora possível. No final
da festa, quando você já havia partido, Irene veio e trouxe o seu
namorado Jorge, que ficou felizmente à sombra. Ela veio, deu-me o livro
e pediu uma dedicatória — pelo que vivemos, está bem — Irene
disse. Ela veio ao lançamento do meu livro, Cássia; e eu escrevi apenas como
dedicatória: "por tudo que não vivemos, que é muito maior". Ela
me abraçou, me beijou e, outra vez, partiu. Ficou no meu corpo não sei
que quinta-essência de Irene. Reparei melhor, ficaram as duas xícaras de
café sobre a toalha branca como o retrato da solidão. Irene havia
partido com Jorge; paguei a conta e sai novamente para a Paulista. Outra
vez te revejo, e os sentimentos já são tão diversos dos que trazia há
pouco. Às minhas costas ficou o Paraíso, e sigo caminho para não sei
onde. A Paulista já não me é a mesma, me foi levada àquela noite pela
água que escorre para as bocas de lobo. Caminho por uma avenida quase já
desprovida de gente, caminho por uma avenida para sempre desencantada de
Irene.

David Oscar Vaz (São Paulo) formou-se
em Letras pela USP, onde defendeu dissertação de mestrado com estudo sobre contos de Machado de Assis. Além de escritor,
é professor de Literatura Brasileira e Teoria Literária. Publicou seu primeiro
livro, Resíduos, em 1997 pela Editora Ateliê de São Paulo, e com ele recebeu prêmio da APCA de
Literatura na categoria escritor revelação. Em 2000, publicou o segundo livro, A
Urna, também pela Editora Ateliê de São Paulo. Em 2001, a convite do Brazilian-American Cultural
Institute, proferiu palestras nos Estados Unidos e fez a gravação em Washington de dois de seus contos
para a Biblioteca do Congresso Americano. Tem um livro de contos inédito e ainda sem
previsão de lançamento chamado Amantes, de onde foi tirado o conto "Chuva
Oblíqua". É um dos escritores da agência literária Página da Cultura.