Caminho pelas ruas do velho centro
e é como estar caminhando pelas entranhas
de um ente de bestial voracidade.
Ainda que as fronteiras da cidade estejam além
do alcance de meus olhos
e ainda que a população seja disforme e anônima
é inegável que o meu rosto foi moldado
pelo clima do meu país de origem.
Assim vou até as ruas do velho centro
e vejo o meu rosto no rosto de outro homem.
Não há outra maneira de conhecer-se:
contemplando uma fronte cingida de suor
entendo o suor vertido por minha fronte
e a dimensão do fado imposto por um deus
a todos os homens.
Estar confinado em um quarto fechado para o sol
é negar a própria humanidade,
é ser abstrato e vão como o pensamento
que morre sem jamais conhecer as palavras.

Uma vez fora do quarto fechado para o sol
penso na experiência humana,
não há como encená-la para si mesmo, num sotão.
Urge mirar o mundo que se estende ante os olhos,
espreitar os recantos mais profundos da alma
e ver em tudo um símbolo e um enigma.
Mas um grito pulsa dentro de mim:
primeiro o confundi com a morte
e os meus ossos tremeram de pavor.
Mas não, o grito que pulsa dentro de mim
simboliza o inevitável —
é aquilo que vive além das possibilidades humanas
e transforma todo o esforço em pó e vertigem,
é aquilo que vive nas vísceras de todo os homens
e não pode ser extirpado: é Deus ou uma parte de nós,
ambos imersos em sombras e transmudados no clamor
mais voraz, selvagem e profundo.

Durante a semana as brumas que toldam a visão
emudecem também o voraz impulso.
Há fome, mas é uma fome que se funde na febre
que torna a urbe tão bestial.
No Domingo a cidade é erma, o céu é limpo
e contemplo a face do grito com espantosa nitidez.
As longas tardes são réquiens:
ouço a agonia das pedras que não morrem, a pureza do sol,
ouço o rumor das missas que entristecem o Domingo,
leio o célebre poema de Lorca às cinco horas da tarde
e penso nas touradas, nas mortes brutais,
no brando murmúrio dos jasmins espargidos de sangue,
ouço o crepúsculo ungido por morte e silêncio
e vejo o prateado luar se erguendo da rubra areia.

No Domingo os homens que vagam pelas ruas ermas
ostentam um olhar de brilho tão esmaecido
que não há como ver o meu rosto em seu rosto.
Saio e vou jogar bilhar em um velho casarão,
os tetos são baixos, as paredes roídas pelo tempo
e ao fundo um cão ladra sem cessar.
O latido do cão é o que mais me enerva,
é o persistente latido de um cão jovem;
o velho labrador morreu em meados do ano passado
e em sua corrente foi preso um filhote.
Também aí vejo a experiência humana:
é certo que sou livre, nenhum grilhão me aprisiona,
mas viver sempre sob o mesmo sol
(e é o mesmo sol que banha os meus pais e avós)
é um destino que homem algum pode evitar.

Na velha casa que serve de salão de bilhar
as mulheres não podem entrar
e o lugar é frequentado por gente diversa:
velhos obscenos, adultos rudes,
jovens que se desesperam com o capricho das bolas,
pobres trapaceiros que tragam longamente os cigarros
e a cada jogada ostentam um ar superior.
Súbito irrompe a furtiva lembrança das mulheres
e todos estremecem — a carne é frágil
e por ser frágil é voraz, é famélica
(a carne se distende até tocar as franjas da alma
e ambas são regidas por um deus obscuro).
Esmagadora é a presença das mulheres
no casarão e no ar respirado pelos homens;
é como perceber a muda presença de Deus
nos claustros mais ermos e austeros.
Mas será realmente Deus a presença
celebrada pelos febris peregrinos?
Será realmente Deus ou será um resquício
da negada natureza humana?
A presença pulsa no coração do peregrino
como se desejasse gritar, como se desejasse afirmar
que um homem jamais poderá compreender
todas os matizes de sua natureza.
O homem deve aceitar a sua natureza
com os mesmos olhos incrédulos e absurdos
que miram e consagram Deus onde nada há,
onde pulsa apenas o silêncio, a ausência
daquilo que negamos a nós mesmos.

Mas não há claustros na cidade onde vivo.
Fora do casarão as mulheres respiram
o mesmo ar expirado pelos homens.
Também as mulheres, nas tardes de Domingo,
vagam solitárias pelas ruas ermas.
Agora vejo a esguia silhueta de uma mulher madura.
Os seus olhos, primeiro evoco os seus olhos;
devem refulgir uma estranha confiança, uma opaca certeza
sobre a verdade que pulsa em suas entranhas.
Toda a mulher madura recebe o êxtase e a dor
como quem vê, refletido em um lago,
os traços do próprio rosto, os arquejos da alma e do sentir.
Tocá-la seria o mesmo que encontrar a chave
que abre a porta para um inconfessável festim.

Persigo a esguia silhueta da mulher madura
e é como se eu fosse o fruto, o voraz fruto
germinado por raízes nas vísceras da terra.
Caminhar sobre o solo
(e não somos capazes de voar como os pássaros)
é pisar as túrgidas raízes e ouvir um clamor
que vem das profundidades da alma ou da terra.
Não sei qual é o deus que anima os meus passos
e qual é o orvalho que alimenta as raízes da qual sou fruto.
Sei que todo o quinhão de terra
é igualmente fértil e trágico; da mesma forma sei
que tudo é semente e tudo é colheita.
Contudo o que sei é insuficiente
e assim persigo uma furtiva sombra.

Ela tem o cheiro das mulheres após o banho,
um cheiro suave que abranda os sentidos.
O seu rosto ainda tem as marcas
causadas por inúmeros homens de terno.
Penso então em quando vestirei o traje
que roubará o meu rosto e silenciará os meus poemas.
Galante e ao mesmo tempo melancólico
escolho um verso de Álvaro de Campos
e o recito para mim mesmo
como se o recitasse para um heterônimo.
Ela sorri, sabe quem é o autor do verso
e diz os homens nunca confessam as suas covardias,
você é como eles?

Ela sorri uma vez mais, um sorriso singelo
e os lábios arquejam úmidos e vermelhos.
É um vermelho forte, que me fere os olhos,
mas o seu hálito tem o mesmo perfume
que as mulheres exalam antes do beijo.
Lembro ter amado todas as mulheres beijadas por mim
e súbito penso em beijá-la, pela primeira vez
penso em beijá-la e uma sensação de ternura
invade-me como um vento inesperado.
É uma ternura repleta de piedade:
as mulheres jovens são mais belas,
há mais frescor em seus olhos
e mais medo em tocar e ser tocada.
Novamente ela sorri
e o negro brilho de seus olhos maduros
parece saber a natureza de minhas indagações.

Estremeço, vem o beijo e desperta o nojo
pelos homens que beijam sem amar,
o nojo pelos homens que tocam e devassam a carne
sem buscar a pureza da alma e a verdade dos sentidos.
Como não amar durante o beijo?
O beijo é repleto de presságios.
Amo-a, sim, amo-a
e frágil mergulho em sua alma
como o homem que revolve o chão em busca do leite
vertido por raízes profundas.
Há vezes em que o leite não é encontrado
e o homem, com as unhas sujas de barro,
mastiga e devora a terra infértil.

Arrojo-me sobre o corpo nu da mulher madura;
em seus seios pulsa o cheiro da prole não nascida
e bebe-los é beber a dor transfigurada em gozo,
é lançar-se aos vorazes abismos
e sentir o cheiro da morte se fundindo no cheiro da vida.
Toco e beijo a carne humana
como quem se submerge na alma
ou se lança dentro de um profundo abismo.
O que é a alma? O que é o abismo?
É um salto cego rumo ao nada
e no entanto é inevitável não saltar
quando encontramo-nos nas margens da alma e do abismo.
Mais que um desejo, é um impulso irrefreável.

Tenho diante de mim o sono da mulher madura.
Contemplo a sua respiração, tão frágil e serena.
O cheiro da tarde é o cheiro de meu suor
e o langor da carne é o langor bebido
pelos alvos e entorpecidos lençóis.
Desejo desvendar esse clamor
e tenho a impressão que me devoram a alma.
Uma vez mais evoco metáforas violentas
e lembro-me do trágico poema de Lorca:
as touradas brutais, as mortes áridas —
é preciso coroar de glórias a alma e a carne
e para tanto nos sujamos de sangue e de terra.
Mas não busco as glórias ungidas pela infâmia,
busco a glória ou a paz
para a qual todos os homens nasceram,
uma glória simples e no entanto inaudita.
Assim revejo os homens que caminham pelas ruas ermas
e também no Domingo vejo o meu suor, o meu clamor
e os meus olhos na face de todos os homens.

Na praça o sino anuncia a missa das seis horas.
Caminho pela cidade e, sob o forte sol,
alça vôo o cheiro que há em mim
(é o cheiro da mulher madura
e também o cheiro emanado pelas raízes de minha carne)
e adeja sobre a cidade como uma ave agoirenta.
A carne, nem por um instante sequer,
pode esquecer o que viveu.
No entanto a carne e seus sentidos são efêmeros.
Também isso faz parte da experiência humana:
amar e depois ver o amor transformado em um clamor inaudito,
amar e depois caminhar rumo ao horizonte
que se ergue diante dos olhos de cada homem.
Lentamente as estrelas surgem, um brilho sereno
e uma vez mais evoco a mulher madura, Álvaro de Campos
e os homens que jamais confessam as suas covardias.
fora do quarto fechado para o sol
daniel francoy
Daniel Francoy, 1979, formou-se em Direito e reside em Ribeirão Preto-SP. Começou a escrever no ano 2000, talvez para não se sentir tão esmagado diante da vida e suas impossibilidades. No final de 2002 participou de Quatro Poetas Na Net, antologia poética organizada e editada pela Editora Sete Sílabas, de Lisboa. Escreve O Desaparecido. Mais aqui.