Il Giudizio Universale, cerca 1536-1541
Michelangelo Buonarroti (1475-1564) / Musei Vaticani, Cappella Sistina
 
  
                                                                     
  

 

A idéia mais ou menos difundida de que "de perto ninguém é perfeito" tem numa consideração de Goethe, o poeta alemão que foi cientista e artista plástico, uma espécie de contraponto que sugere justamente a perfeição. Em sua viagem à Itália — peregrinação cultural quase obrigatória que foi moda entre os intelectuais do século XIX, — ao visitar igrejas e museus, Goethe observou, sobre uma determinada pintura, que ela era muito bem feita: seria tão bonita de perto quanto de longe. Era ambivalente, como a confirmar o que o mundo científico passou a considerar a partir do telescópio e do microscópio — duas invenções quase contemporâneas que nasceram com o Renascimento. E que abriram o mundo à extensão dos olhos tanto para o pequeno quanto para o grande. Digamos que, daí em diante, para as lentes do intelectuais e dos cientistas que passaram a ver o mundo nestas perspectivas, o infinito não está só nas estrelas, mas nos átomos, no infinitamente pequeno do universo.

Na pintura, a questão da distância, ou seja tanto o que está  próximo quanto o que está longe, foi sempre um problema: Miguel Ângelo Buonarroti (1475-1564) pintou quase todas as figuras do teto da Sixtina com as deformações que o olho dos espectadores requeriam à distância. Não havia como superar a curvatura do teto da capela sem levar em conta a perspectiva com que as figuras iriam ser apreciadas, na parte debaixo, pelos fiéis que por ventura se acumulassem na capela . À parte o domínio perfeito da anatomia dos corpos, que requer uma visão quase microscópica, Miguel Ângelo  tinha o senso das deformações requeridas pela distância. Não espanta, em suma, que o desenvolvimento do telescópio e do microscópio tenham sido quase contemporâneos do artista; mas não estranha também que antes disso, já os arquitetos gregos e romanos tivessem desenvolvido construções que valiam, plasticamente, tanto à intimidade do olhar quanto à visão panorâmica, e que deu naquilo a que contemporaneamente, mas já numa perspectiva filosófica, o dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) denominaria "distanciamento crítico".  Talvez, assim, a consideração de Goethe valesse tanto para a arte do passado quanto do futuro. E se estendesse para toda a arte, isto é, não só à perspectiva à distância de uma obra plástica, mas ao exame bem próximo do nariz, ao olhar quase microcópico; e aí como duas categorias que valem para todas as outras expressões. Fala-se, a propósito do desenvolvimento da ciência ótica, com o domínio das lentes, dos espelhos, essas coisas. Mas que não se restringiu à pintura; pois parece ter valido também para a literatura. A ourivesaria do escritor francês Marcel Proust valeu-lhe a fama de quase miniaturista (se isso, com o perdão do truísmo, não fosse também uma redução). Seus livros seriam "impressionistas" por conterem detalhes à exaustão e para serem apreciados dentro de um todo. De fato, não basta ao protagonista menino contar que sua mãe irá beijá-lo antes de seu sono, que o "boa noite" da mãe se faça com um beijo, como fazem as mães com suas crianças: há o farfalhar do vestido da mulher, o perfume das suas roupas todo um mundo de sensações aparentemente inócuas mas que, à distância, tal como um quadro de seu contemporâneo Claude Monet (1840-1926), torna-se mais vívido, e em que as aparentes deformações, o excesso de detalhes parece confundir para o principal. No entanto, as impressões fortuitas, a descrição dos ruídos ou, como num quadro de Monet a pincelada pastosa, as muitas cores colocadas lado a lado à distâncias ou após a leitura, confirmam o juízo de Goethe: valeriam de perto, mas também, depois de examinados os pormenores, se conformariam à distância, como uma visão coerente do todo. E daí a volta ao conceito: se de perto ninguém é normal, ou não tão agradável quanto talvez sugira a sua obra, restaria a possibilidade de se considerar o mundo, ou os homens, nem tanto pelo que eles são a nossa frente, na intimidade de seu mau humor, ou de seus defeito próximos da deselegância  mas  no que nos legam no todo, e muitas vezes, no esplendor da obra completa.

 

 

Nymphéas, 1916-1919 - Claude Monet (1840-1926)

Huile sur toile, 150 x 197 cm

Musée Marmottan Monet, Paris

 

 

De Beethoven na intimidade, dizia-se que era um grosseirão, um sujeito intratável que a todo o momento xingava seus melhores e mais fiéis  amigos,  como se fossem desafetos de toda uma vida. Mais tarde, porém, ele se derramava em desculpas que diante do incomensurável dos desaforos, perdia todo o sentido. Mas então sobrevinha a obra musical. E muitas vezes em homenagem justamente ao sujeito que Beethoven tinha desancado. Como considerava um músico tempos atrás, em que a conversa girava justamente sobre essa contradição do grande compositor ficava evidente que Beethoven, o mais indelicado homem para seus amigos, era pura doçura em sua música – talvez, em determinados momentos, a mais enérgica das que já se escreveram, mas também a mais delicada e doce que o espírito humano pudesse conceber.

São duas categorias diferentes: uma coisa é o homem que, a certa distância não é normal ("de médico e louco, todos nós temos um pouco"); outra é a obra de arte seja a peça literária, a pintura ou a música -  que deve ser envolvente, instigante e maravilhosa tanto nos detalhes, quanto no todo. E neste caso, as coisas realmente  podem ser divergentes, até antípodas como acontece com Beethoven, mas como foi com muitos outros artistas ao longo da história. Quem conheceu a grande pianista brasileira Guiomar Novaes não juraria por suas reflexões, além do piano. O compositor gaúcho Bruno Kiefer dizia que Guiomar Novaes era uma casa com uma só janela, mas que dava para a música, sempre para a música. Com efeito, de perto, na intimidade, parece que a pianista dizia muito pouco. A ressalva de que ela falava com a música sugere que era essa "a distância" que sua arte requeria para ser plenamente apreciada.

Na verdade, talvez sejam essas as duas dimensões do humano. E conciliá-los não parece apenas um problema para a arte, mas para a vida. Na peça "Bodas de Sangue" de Garcia Lorca, uma mulher considera o tamanho diminuto do punhal que matou seu homem – aquele amante vigoroso e belo que a transportava para o infinito. E que agora é apenas um corpo inerme, infinitamente pequeno para o incomensurável do seu amor. Parece ser assim também.

 

 

 

 

setembro, 2007