©goya
 
  
                                                                     
  

 

Assim como as cirurgias plásticas iludem que a juventude possa ser prorrogada "ad infinitum", quase todos os séculos se imaginam de bem com o futuro. Vem sendo assim com a ciência: ela seria a pedra filosofal dos últimos séculos, um equívoco de que não se furta nem mesmo um  grande escritor, como o português Alexandre Herculano. Em seu romance "O monge de Cister", de 1840, ao descrever uma cena, Herculano adverte que dois de seus personagens nunca seriam classificados por "Gall" e "Lavater" (sic). Quem foram estes ilustres  senhores, hoje totalmente desconhecidos, contam-nos as enciclopédias, e não a ciência contemporânea. Na verdade, Franz Gall (1758-1828) e Johann Lavater (1714-1801) distinguiram-se no âmbito de uma ciência que, na atualidade, não encontra adeptos  em lugar algum. A chamada fisiognomia definia as pessoas pelo formato da cabeça, a começar pelo crânio. Ao citar dois fisiognomistas, Herculano, também um grande historiador, conseguiu o oposto do que queria. Ninguém, no século XX, leva a sério a tal fisiognomia.

         Mas Herculano não foi uma exceção. Um de seus mais fiéis admiradores, o brasileiro Euclides da Cunha, em "Os Sertões" conclui seu livro monumental, com uma espécie de anti-climax, ele cita um tal de Maudsley (Henry, 1835-1918), outra unanimidade na psiquiatria da época, mas que, passados mais de cem anos, quase ninguém conhece. Ou seja, o que, para Euclides, seria um coroamento, uma citação gloriosa ("É que não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades"), para a posteridade significa pouco mais que nada. Esta, porém, parece ser a grande sina, menos da literatura do que da ciência: uma vez superadas certas teorias, muitos de seus autores não são lembrados nem mesmo como precursores. Ao contrário das artes.

O pintor impressionista francês Paul Gauguin, no esboço de sua autobiografia cita o brasileiro Santos Dumont, como a quintessência da tecnologia da sua época. Não estava errado, uma vez que até os norte-americanos que durante anos sustentaram terem sido os irmãos Wright os precursores da aviação, admitem hoje que o brasileiro foi mais importante. Mas é  apenas uma exceção que  não contradiz a história, inclusive recente. Nos anos 60, o canadense Marshal Mcluhan foi uma espécie de único profeta da cibernética — ninguém que previsse qualquer futuro  para a informática poderia ignorá-lo. Suas idéias estenderam-se inclusive às guerras. Para ele, as bombas que os Estados Unidos lançavam sobre o Vietnã eram deletérias, sem dúvida — mas alcançariam que o pequeno país asiático pudesse superar o subdesenvolvimento. Elas destruiriam, causariam muitas mortes etc., mas  a tecnologia das armas seria mais cedo ou mais tarde transferida para o país agredido; e aí sob forma de tecnologia avançada. Não aconteceu. Apesar de ter vencido a guerra, o Vietnã continua às voltas com a pobreza endêmica e a precariedade também tecnológica, ambas  típicas de um país subdesenvolvido. Seria de se acrescentar que, nesses casos, tais citações conseguem o oposto do que pretendem, que é desqualificar justamente o que seria uma certeza, tal como o caráter científico da afirmação ou da tese? Sem dúvida. E não apenas na literatura.  Villa-Lobos escreveu uma peça "Rudepoema", em homenagem ao pianista Arthur Rubinstein, em que, explicitamente, dizia estar fazendo "um kodak íntimo" do grande intérprete.  A peça é uma das melhores do compositor brasileiro — mas as máquinas fotográficas, que, na época, eram as mais afamadas, hoje estão longe de definirem o conceito de retrato ("Um kodak," dizia-se na época) como era o que pretendia o compositor.

Evidentemente, nem todos se deixam enganar pelo positivismo chão; ou pela convicção de que a ciência do tempo é a última palavra sobre qualquer assunto. Há exceções. Quem nunca parece ter se deslumbrado com a ciência — com a suposta última palavra sobre o mundo — foi Machado de Assis. Em sua novela "O alienista", o personagem, um psiquiatra, certamente uma paródia dos pré-freudianos que explicavam as doenças mentais pela conformação do crânio, dos olhos ou, como dizia Euclides da Cunha, pelas "circunvoluções" do cérebro, ao aplicar suas teorias sobre a loucura, fundando um asilo em sua cidade, chega a tais extremos que, no fim, concede que quem deve ser internado como maluco é ele mesmo — a prova suprema do desequilíbrio mental do mundo.

Vivesse hoje, Machado certamente não abdicaria de seu ceticismo fundamental. Muito dificilmente perfilharia integralmente, Freud, Marx ou quaisquer economistas neoliberais, por mais que as teorias de uns e outros se estribassem na ciência, ou mesmo no bom senso. O próprio ceticismo, no entanto, tem também uma vida breve. Pelo menos na história, nas artes e nas ciências. José Saramago gosta de repetir que o grande problema do mundo é a sobrevivência da crença em Deus. De fato,  as guerras religiosas, ou as razões supostamente em cima da fé cristã, que absolveriam os ataques americanos  no Afeganistão ou no Iraque, teriam, a seu turno, paradoxalmente, sempre um muçulmano que as invocasse para justificar um ato terrorista. Sem isso, porém, essa realidade do mundo que não se sabe se é de Deus, quais os motivos  que teria Saramago para seus livros sobre Cristo ou sua insistência sempre angustiada, sobre a injustiça da Providência Divina? Difícil, senão impossível uma resposta.

         O romancista católico Georges Bernanos, que viveu em meados do século XX, no Brasil, tinha por lema — para explicar e justificar a Inquisição — que a "Igreja são seus santos e não seus homens". Para explicar melhor, talvez se pudesse usar seu raciocínio também para a ciência e seus equívocos: a ciência seria seus gênios e não seus charlatães. Mas isso quem define é, de novo, a história e não os contemporâneos dos cientistas.

 

 

 

 

março, 2007