©monica vendramini
 
 
 
 
 
 

No calendário, a Primavera começa no dia 22 de setembro. Para Beth Meira, ela começou antes, no dia 13 e, por certo, nunca acabará.

Sobre a minha mesa há dois CDs que gravei e não mandei. Um traz na capa a dedicatória: Para Maria Isabel. É de músicas latinas, aqueles boleros inesquecíveis, que a nossa turma cantava e assobiava sempre. Nas horas-dançantes, ouvindo os discos de Nat King Cole em espanhol, gostávamos de dançar, nas tardes de domingo no Bocaiúva Clube, ao som de uma radiola estereofônica que Tião Caldeira comprara em Montes Claros. O outro CD tem a dedicatória: Para Beth Meira. O nome: Dazzle and Nostalgia Cello, com Yehudi Hanani, tocando violoncelo e Michele Levin, ao piano. Este disco veio mesmo a calhar, porque consegui gravar nele as músicas das quais Beth um dia me disse gostar. Principalmente Czardas, uma ária cigana que tocou no filme O Rei dos Ciganos (John Hall e Maria Montez) e que passou no Cine Paroquial.

Não mandei eses CDs à Beth, conforme eu lhe prometera, porque fiquei aguardando uma lista que ela estava fazendo com os nomes de outras músicas de sua preferência. Fiquei esperando a lista, ela não veio. Veio a Primavera, trazendo flores e dores, levando sonhos e deixando saudades.

Entre os boleros, todos de sua preferência, destaco Siboney, Amapola, El Reloj, Aquellos Ojos Verdes, Maria Isabel, Perfídia, Besame Mucho, entre tantos lindos que o Romildo gostava de cantar nas serestas que fazíamos.

Beth Meira ou Maria Isabel, não importa, era sempre a mesma, em momentos solenes e de reflexão, ou nos instantes descontraídos e alegres. As duas coexistiam numa só: amiga, sincera, inteligente, dedicada e estudiosa. Além de tudo, uma artista que gostava de recriar nos seus quadros as ruas da Bocaiúva dos seus pais e dos seus avós. Tenho um quadro que ela fez para mim. Do alpendre de sua casa, ali na antiga Praça São Vicente (onde o nosso saudoso Ginásio nasceu), hoje Praça Dom Pedro II, ela viu a praça e retratou-a na sua tela, dando destaque às casas de Aleixa, de Mariquinha de Atos (minha quase avó) e de Maria do Rosário. No fundo, a casa de Antônio Augusto Vale. Era como Beth, do alpendre de sua casa, via a praça daquele tempo, por volta de 1960. Hoje não sei como é essa praça, a praça da minha infância. Sei apenas que a casa de Mariquinha de Atos não existe mais. Se não me falha a memória, revejo a praça toda cheia de grama e um cruzeiro no meio. Nas frinchas do cruzeiro, havia patacões, moedas antigas colocadas pelos fiéis. As casas ali existentes: a de Gastão Vale, comprada mais tarde por Zé Meira, pai de Beth. A de Aleixa Caldeira (mãe de Du, Nancy, Nely e Nede). Foi nesta casa, num anexo, que nasceu o Ginásio Senhor do Bom-Fim. Em seguida, a casa de Dinha. Saltando o beco, vinha a casa de Maria do Rosário. A seguir, a casa de Antônio Vale. Mais adiante, a casa de Carrim Dias (onde morou dr. Tyndall Pires, o fundador do escotismo em Bocaiúva). Onde hoje deve ser ainda a casa de Zé de Orozimbo, havia a casa de Zé Coelho, com uma venda. Depois a casa do pai de Quita, a de Mariquinha de Cilino (mais tarde Beth morou ali, numa casa nos fundos). A casa de Canone (Aparecida de Canone, mãe de Vanda), onde havia a farmácia. Logo depois, a casa de Gastão Vale, no caminho da velha igreja do Senhor do Bom-Fim. Essa era a praça da minha infância, essa era a praça de Beth Meira. Vontade de cantar: a mesma praça, o mesmo banco, as mesmas flores, o mesmo jardim. Será?

Conheci Beth Meira no Ginásio Senhor do Bom-Fim, no fim da década de 50 e no começo da década de 60, a década dos Anos Dourados. Ainda me lembro dos nomes dos colegas e amigos: Romildo, Roberto Andrade, Marilda, Dulce Marta, Célia, Leone Nère, Laércio, Helinho, Cleide, Paulo Roberto, Aroldo Brandão, Geraldo Nery, Paulo Afonso Pires, Milton Faria, Joaquim Nery, Regusino, Américo de Béu, Zé Geraldo Malaquias, Maria de Jesus, Glória, Ieda, Vany, Josina Teixeira, Eunice Campos, Maria Aparecida de Souza e Maria Aparecida Freire, Maria do Socorro Freire, Rosena, Maria Célia de Santana. Faltou alguém? Acho que aí estão todos os companheiros dos Anos Dourados do Ginásio Senhor do Bom-fim e do Grêmio Recreativo Graciema Alves.

Durante as aulas de Dona Letícia, Beth mandava bilhetes para mim, todos ilustrados com a sua veia de artista que já se mostrava nas coisas mais simples. Os bilhetes, na sua maioria, falavam de assuntos do cotidiano como aquela música que o Dr. Páris cantou na seresta de sábado, ou do filme que vimos no domingo no Cinema Paroquial, de um livro, de um programa de rádio. Alguns, mais cúmplices, traziam um recado: "L. quer te ver no sábado na casa da Marilda".  Ou na casa da Vany, os locais variavam. Todos sabiam quem era L. Até hoje eu sei quem era L.

No final do curso, Roberto e Romildo planejaram o passeio no Rio de Janeiro, um passeio para nunca mais se esquecer. Nele, estava programada uma visita à Ilha de Paquetá, um sonho profundo que começa neste mundo e não se sabe onde acabar,  como diz a velha canção de Freire Júnior, na voz de Gilberto Alves.

Lá em Paquetá, debaixo de um pé de ipê, sem flores naquele mês, Beth me disse que amava os ipês da fazenda de seu pai (e, por extensão, todos os ipês de Bocaiúva), que adorava a primavera, que gostava de dançar boleros e que a sua música predileta era Czardas.

Ela não esperou a Primavera para partir e os ipês já estão floridos. Ainda se pode dançar boleros e ouvir Czardas.

Como diria Dona Letícia (ou Padre Agostinho): "La vie c'est partie. C'est la vie!"

Falar de Beth Meira, depois que ela se foi, é falar de minhas próprias emoções, dos sonhos, das esperanças, das alegrias, da sincera amizade, do carinho, de tudo de bom que ela representou para mim.

"Qu'est que c'est le temps?", perguntaria o Dr. Joel Versiani, nosso saudoso professor e amigo. "Le temps passe si vite", diria Dulce Marta. E a vida também. Algumas vezes, não dura uma primavera. Como as rosas de Malherbe, que vivem apenas um dia e deixam o seu perfume para sempre.

Dá vontade de repetir o grito de Marilda, para os colegas ausentes: "Voltem, por favor. Venham soprar conosco a vela do trigésimo ano!".

Beth, onde você estiver, saiba que a primavera chegou, os ipês ainda estão floridos e florindo. E que vou ouvir Czardas em sua lembrança, de preferência, no disco que não lhe mandei.

Grahaam Green, num dos seus melhores livros, Um caso de amor (quem não leu o livro, pode ver o filme: Fim de Caso), perguntava por meio de um dos seus personagens: — Quanto tempo dura um amor eterno? Talvez Bette Davis, aquela dos olhos profundos, negros e vagos, saiba. Beth Meira, tenho certeza, sabia.

Este ano foi ingrato para mim: Zezinho Assis e Guida se foram para a terra do nunca mais. Agora, Beth Meira.

Até o próximo reencontro. Quem sabe?

 

outubro/2005

 

Antônio Augusto dos Santos nasceu em Bocaiúva e mora em Divinópolis, Minas Gerais, onde vive a merecida aposentaria como Auditor Fiscal da Receita Federal, entre seus discos — mais de 700.000! — e livros e tudo mais.