Fernando Pacheco, Observadores de Nuvens, OST, 90x90 cm, 2004. Coleção Particular
 
 
 
 
 
 

 

 

 


 

 

 

"Minas não é palavra montanhosa.

É palavra abissal. Minas é dentro

E fundo".

 

Carlos Drummond de Andrade

 

 

 

Gente, simplificar é um pecado. Se a vida não fosse tão corrida, se não tivesse tanta conta para pagar, tantos processos — oh sina — para analisar, eu fundaria um partido cuja luta seria descobrir as falas de cada região do Brasil.

 

Cadê os lingüistas deste país? Sinto falta de um tratado geral das sotaques brasileiros. Não há nada que me fascine mais. Como é que as montanhas, matas ou mares influem tanto, e determinam a cadência e a sonoridade das palavras?

 

É um absurdo. Existem livros sobre tudo; não tem (ou não conheço) um sobre o falar ingênuo deste povo doce. Escritores, ô de casa, cadê vocês? Escrevam sobre isto, se já escreveram me mandem, que espero ansioso.

 

Um simples "mas" é uma coisa no Rio Grande do Sul. É tudo menos um "mas" nordestino, por exemplo. O sotaque das mineiras deveria ser ilegal, imoral ou engordar. Porque, se tudo que é bom tem um desses horríveis efeitos colaterais, como é que o falar, sensual e lindo (das mineiras) ficou de fora?

 

Porque, Deus, que sotaque! Mineira devia nascer com tarja preta avisando: ouvi-la faz mal à saúde. Se uma mineira, falando mansinho, me pedir para assinar um contrato doando tudo que tenho, sou capaz de perguntar: só isso? Assino achando que ela me faz um favor.

 

Eu sou suspeitíssimo. Confesso: esse sotaque me desarma. Certa vez quase propus casamento a uma menina que me ligou por engano, só pelo sotaque.

 

Mas, se o sotaque desarma, as expressões são um capítulo à parte. Não vou exagerar, dizendo que a gente não se entende... Mas que é algo delicioso descobrir, aos poucos, as expressões daqui, ah isso é...

 

Os mineiros têm um ódio mortal das palavras completas. Preferem, sabe-se lá por que, abandoná-las no meio do caminho (não dizem: pode parar, dizem: "pó parar". Não dizem: onde eu estou?, dizem: "ôndôtô?"). Parece que as palavras, para os mineiros, são como aqueles chatos que pedem carona. Quando você percebe a roubada, prefere deixá-los no caminho.

 

Os não-mineiros, ignorantes nas coisas de Minas, supõem, precipitada e levianamente, que os mineiros vivem — lingüisticamente falando — apenas de uais, trens e sôs. Digo-lhes que não.

 

Mineiro não fala que o sujeito é competente em tal ou qual atividade. Fala que ele é bom de serviço. Pouco importa que seja um juiz, um jogador de futebol ou um ator de filme pornô. Se der no couro — metaforicamente falando, claro — ele é bom de serviço. Faz sentido...

 

Mineiras não usam o famosíssimo tudo bem. Sempre que duas mineiras se encontram, uma delas há de perguntar pra outra: "cê tá boa?" Para mim, isso é pleonasmo. Perguntar para uma mineira se ela tá boa, é como perguntar a um peixe se ele sabe nadar. Desnecessário.

 

Há outras. Vamos supor que você esteja tendo um caso com uma mulher casada. Um amigo seu, se for mineiro, vai chegar e dizer: — Mexe com isso não, sô (leia-se: sai dessa, é fria, etc).

 

O verbo "mexer", para os mineiros, tem os mais amplos significados. Quer dizer, por exemplo, trabalhar. Se lhe perguntarem com o que você mexe, não fique ofendido. Querem saber o seu ofício.

 

Os mineiros também não gostam do verbo conseguir. Aqui ninguém consegue nada. Você não dá conta. Sôcê (se você) acha que não vai chegar a tempo, você liga e diz:

 

— Aqui, não vou dar conta de chegar na hora, não, sô.

 

Esse "aqui" é outro que só tem aqui. É antecedente obrigatório, sob pena de punição pública, de qualquer frase. É mais usada, no entanto, quando você quer falar e não estão lhe dando muita atenção: é uma forma de dizer, olá, me escutem, por favor. É a última instância antes de jogar um pão de queijo na cabeça do interlocutor.

 

Mineiras não dizem "apaixonado por". Dizem, sabe-se lá por que, "apaixonado com". Soa engraçado aos ouvidos forasteiros. Ouve-se a toda hora: "Ah, eu apaixonei com ele...". Ou: "sou doida com ele" (ele, no caso, pode ser você, um carro, um cachorro). Elas vivem apaixonadas com alguma coisa.

 

Que os mineiros não acabam as palavras, todo mundo sabe. É um tal de bonitim, fechadim, e por aí vai. Já me acostumei a ouvir: "E aí, vão?". Traduzo: "E aí, vamos?". Não caia na besteira de esperar um "vamos" completo de uma mineira. Não ouvirá nunca.

 

Na verdade, o mineiro é o baiano lingüístico. A preguiça chegou aqui e armou rede. O mineiro não pronuncia uma palavra completa nem com uma arma apontada para a cabeça.

 

Eu preciso avisar à língua portuguesa que gosto muito dela, mas prefiro, com todo respeito, a mineira. Nada pessoal. Aqui certas regras não entram. São barradas pelas montanhas. Por exemplo: em Minas, se você quiser falar que precisa ir a um lugar, vai dizer:

 

— Eu preciso de ir.

 

Onde os mineiros arrumaram esse "de", aí no meio, é uma boa pergunta. Só não me perguntem. Mas que ele existe, existe. Asseguro que sim, com escritura lavrada em cartório. Deixa eu repetir, porque é importante. Aqui em Minas ninguém precisa ir a lugar nenhum. Entendam... Você não precisa ir, você "precisa de ir". Você não precisa viajar, você "precisa de viajar". Se você chamar sua filha para acompanhá-la ao supermercado, ela reclamará:

 

— Ah, mãe, eu preciso de ir?

 

No supermercado, o mineiro não faz muitas compras, ele compra um tanto de coisa. O supermercado não estará lotado, ele terá um tanto de gente. Se a fila do caixa não anda, é porque está agarrando lá na frente. Entendeu? Deus, tenho que explicar tudo. Não vou ficar procurando sinônimo, que diabo. E não digo mais nada, leitor, você está agarrando meu texto. Agarrar é agarrar, ora!

 

Se, saindo do supermercado, a mineirinha vir um mendigo e ficar com pena, suspirará:

 

— Ai, gente, que dó.

 

É provável que a essa altura o leitor já esteja apaixonado pelas mineiras. Eu aviso que vá se apaixonar na China, que lá está sobrando gente. E não vem caçar confusão pro meu lado.

 

Porque, devo dizer, mineiro não arruma briga, mineiro "caça confusão". Se você quiser dizer que tal sujeito é arruaceiro, é melhor falar, para se fazer entendido, que ele "vive caçando confusão".

 

Para uma mineira falar do meu desempenho sexual, ou dizer que algo é muitíssimo bom (acho que dá na mesma), ela, se for jovem, vai gritar: "Ô, é sem noção". Entendeu, leitora? É sem noção! Você não tem, leitora, idéia do tanto de bom que é. Só não esqueça, por favor, o "Ô" no começo, porque sem ele não dá para dar noção do tanto que algo é sem noção, entendeu?

 

Ouço a leitora chiar:

 

— Capaz...

 

Vocês já ouviram esse "capaz"? É lindo. Quer dizer o quê? Sei lá, quer dizer "tá fácil que eu faça isso", com algumas toneladas de ironia. Gente, ando um péssimo tradutor. Se você propõe a sua namorada um sexo a três (com as amigas dela), provavelmente ouvirá um "capaz..." como resposta. Se, em vingança contra a recusa, você ameaçar casar com a Gisele Bundchen, ela dirá: "ô dó dôcê". Entendeu agora?

 

Não? Deixa para lá. É parecido com o "nem...". Já ouviu o "nem..."? Completo ele fica:

 

— Ah, nem...

 

O que significa? Significa, amigo leitor, que a mineira que o pronunciou não fará o que você propôs de jeito nenhum. Mas de jeito nenhum. Você diz: "Meu amor, cê anima de comer um tropeiro no Mineirão?". Resposta: "nem..." Ainda não entendeu? Uai, nem é nem. Leitor, você é meio burrinho ou é impressão?

 

A propósito, um mineiro não pergunta: "você não vai?". A pergunta, mineiramente falando, seria: "cê não anima de ir"? Tão simples. O resto do Brasil complica tudo. É, ué, cês dão umas volta pra falar os trem...

 

Certa vez pedi um exemplo e a interlocutora pensou alto:

 

— Você quer que eu "dou" um exemplo...

 

Eu sei, eu sei, a gramática não tolera esses abusos mineiros de conjugação. Mas que são uma gracinha, ah isso lá são.

 

Ei, leitor, pára de babar. Que coisa feia. Olha o papel todo molhado. Chega, não conto mais nada. Está bem, está bem, mas se comporte.

 

Falando em "ei...". As mineiras falam assim, usando, curiosamente, o "ei" no lugar do "oi". Você liga, e elas atendem lindamente: "eiiii!!!", com muitos pontos de exclamação, a depender da saudade...

 

Tem tantos outros... O plural, então, é um problema. Um lindo problema, mas um problema. Sou, não nego, suspeito. Minha inclinação é para perdoar, com louvor, os deslizes vocabulares das mineiras.

 

Aliás, deslizes nada. Só porque aqui a língua é outra, não quer dizer que a oficial esteja com a razão. Se você, em conversa, falar:

 

— Ah, fui lá comprar umas coisas...

 

— Que's coisa? — ela retrucará.

 

Acreditam? O plural dá um pulo. Sai das coisas e vai para o que.

 

Ouvi de uma menina culta um "pelas metade", no lugar de "pela metade". E se você acusar injustamente uma mineira, ela, chorosa, confidenciará:

 

— Ele pôs a culpa "ni mim".

 

A conjugação dos verbos tem lá seus mistérios, em Minas... Ontem, uma senhora docemente me consolou: "preocupa não, bobo!". E meus ouvidos, já acostumados às ingênuas conjugações mineiras. nem se espantam. Talvez se espantassem se ouvissem um: "não se preocupe", ou algo assim. A fórmula mineira é sintética. e diz tudo.

 

Até o tchau. em Minas. é personalizado. Ninguém diz tchau pura e simplesmente. Aqui se diz: "tchau pro cê", "tchau pro cês". É útil deixar claro o destinatário do tchau. O tchau, minha filha, é prôcê, não é pra outra, entendeu?

 

Deve haver, por certo, outras expressões... A minha memória (que não ajuda muito) trouxe essas por enquanto. Estou, claro, aberto a sugestões. Como é uma pesquisa empírica, umas voluntárias ajudariam... Exigência: ser mineira. Conversando com lingüistas, fui informado: é prudente que tenham cabelos pretos, espessos e lisos, aquela pele bem branquinha... Tudo, naturalmente, em nome da ciência. Bem, eu me explico: é que, características à parte, as conformações físicas influem no timbre e som da voz, e eu não posso, em honrados assuntos mineiros, correr o risco de ser inexato, entendem?

 

 

 

 

 

 

 

 

"A desproporção é a saudade da simetria"

 

Murilo Mendes

 

 

Os bairros, em Belo Horizonte, são entidades metafísicas. Até hoje não encontrei um mineiro que soubesse, com razoável clareza, definir onde começam e terminam os bairros. E a razão é simples, eles não começam nem terminam. Eles não existem!

 

Sim, amigos, a revelação é cruel, mas verdadeira. Os bairros, essas prosaicas e familiares figuras, que batem ponto na maioria das cidades, não dão o ar da graça em Belo Horizonte. Sim, ruas nós temos. Avenidas também. Temos aliás todo o resto de trivialidades. Mas bairros não. Ou melhor, minto. Temos, para disfarçar, os nomes: Funcionários, Serra, São Lucas, Buritis. Mas tente ser concreto: essa rua aqui, sim, essa em que nós estamos, fica em que bairro? Aí, concidadão, pode puxar uma cadeira, porque a divagação vai começar, sem hora prevista para findar. O solícito mineiro vai dizer assim: bem, depende...

 

Como depende? — protesto. Onde já se viu bairro depender de alguma coisa? Quero saber que bairro é esse. Ele, sempre paciente, responderá: Pode ser serra, pode ser São Lucas... Sim, amigos, os bairros mineiros são entes metafísicos: não tente compreendê-los.

 

Eu já me conformei. Recebo, em meu modesto lar, algumas continhas. Pois bem. No local endereçado aos bairros, a variedade é divertida: Funcionários, Savassi, Centro... Acho que depende do humor do carteiro. Se pelo menos essa variedade confundisse os credores, fazendo-os, quem sabe, esquecer de mim. Mas não...

 

As ruas, no entanto, são britanicamente precisas. Alagoas é Alagoas, Pernambuco é Pernambuco. Dizer que você mora numa delas, porém, não é dizer muito, pois elas cortam a cidade, longas e infindas. Aliás, já que os mineiros optaram, por chamar suas ruas pelos nomes dos Estados irmãos, bem que podiam chamar os bairros por região: Nordeste, Centro Oeste, Sul...

 

Eu moraria, orgulhosamente, no Nordeste. Sim, na Rua Alagoas, esquina com Av. Brasil — digo, sempre que me perguntam, mal disfarçando o orgulho. Aliás, esta seria uma forma, não sei se eficaz, de atender ao desejo secreto de tantos mineiros de passar mais tempo no Nordeste. Bastaria mudar o nome dos bairros.

 

Se não quiserem mudar, não faz mal. Eu acho mesmo que bairro não faz falta. Se quisessem tirar as montanhas, eu protestaria. Se quisessem extinguir a boemia mineira, também me rebelaria. Se quisessem exportar as mineiras, aí não, é demais, eu me mudaria, revoltado e perigoso. Mas os bairros...

 

Também essa história de saber onde começam e onde acabam as coisas não é lá grande coisa. Ou é uma grande bobagem. Eu não sei bem onde começo e até onde vou. Meu coração, esse sujeito abusado e licencioso, também tem limites incertos, e às vezes caminha, contra as minhas ordens, por caminhos escuros.

 

Então, amada cidade, deixe seus filhos bairros se misturarem, se confundirem, sendo vários e um só. Fronteira definida só tem serventia em campo de concentração. Entre nós essa confusão divertida traduz um pouco de vida, que também não separa a alegria da dor, a felicidade da desesperança.

 

Um sujeito me pergunta sobre as fronteiras de Minas. Sorrio, a pretexto de me desculpar. Não sei, não sei. Essas coisas assim, rispidamente objetivas, nunca foram meu forte. Sorrio, mas penso em outra coisa. Ora, meu senhor, as fronteiras de Minas não acabam! Aonde for, levo comigo esse jeito de alma. Como decretou o poeta: a cidade está no homem quase como a árvore voa no pássaro que a deixa.

 

Se fosse para dizer a verdade (não tive coragem), diria:

 

— Minas faz fronteira com o meu coração.

 

 

 

 

 

 

 

 

"Muito sofredor ver moça bonita

— e são tantas".

 

Dalton Trevisan

 

 

A beleza das mineiras me angustia. A frase é forte, mas o sentimento é real. Angústia? Sim, angústia, respondo de cabeça baixa. Logo que cheguei, nos primeiros dias mineiros, tal beleza me enchia de ingênuo entusiasmo, pois pensava tolamente: calma, um dia você vai ver, conhecerá todas.

 

Não conheci todas; elas, no entanto, à minha revelia, continuam belas, e multiplicam-se com assustadora velocidade. Salvo em meu quarto, elas aparecem em todo lugar. Fico espantado ao saber que nem sempre foi assim. A informação segura vem de Paulo Mendes Campos:

 

"No meu tempo de menino, em Belo Horizonte, havia de moças bonitas duas dúzias e mais três. Três que a gente não tinha muita certeza de escalar no time de cima".

 

Diz que o número era estimativo, mas a verdade era concreta. Como é que pode? Como as coisas mudaram, Paulo...

 

Sento, numa mesa, para almoçar. O lugar é belo, acolhedor, alegre. É um lugar mineiro, com coisas, mineiras. Mesas de madeira, aquele doce ar rústico, de fazenda: cachaças, cigarros de palha, lingüiça, coisas da roça. O sol, num dia frio, faz bem. A brisa esfria, com suavidade; o sol gentilmente esquenta. São irmãos com temperamentos diferentes, mas complementares.

 

O mundo é simples numa manhã de domingo. O dia é claro, alegre. Estou feliz. Minha felicidade, no entanto, é vagabunda e volúvel. O lugar logo fica repleto de gente. Digo gente e digo mal, porque, se fosse pra ser exato, diria que ficou repleto de mulheres feitas pelo bom-humor divino. Em Minas a natureza é pródiga. Bem que podia ser pródiga apenas em rios e montanhas. Mas não. Foi exagerar nas mulheres, para o mal do nosso coração...

 

Sofro, mas sofro com dignidade. Admiro-as, com poesia e à distância, sabendo que outros são os caminhos delas, e outro o meu. Aprendi que a beleza física não pertence a elas, nem ao seu respectivo par. Este terá, digamos, uma visão mais privilegiada da coisa. Não sei que poeta lembrou que uma poesia não é de quem a escreveu, mas de quem precisa dela. E, mal comparando, assim também são as belas do mundo. A beleza — protesto porque é o jeito — não é delas, mas do mundo. Isso, no fundo, é conversa de sem-terra sentimental. Queremos socializar o território alheio.

 

O diabo é que sinto, de fato, isto: que elas perdem em não me conhecer. Ah, que coisa essa de nascer leonino. O duro é que a auto-imagem, que no caso dos leoninos deveria se chamar alto-imagem, nem sempre corresponde com a realidade empírica dos fatos tristemente reais. Dizendo de outro modo: talvez eu não devesse acreditar tanto em minha mãe, mas ela sempre foi tão enfática ao ressaltar minha beleza...

 

Mineiras, por que tão belas? Qual o sentido de tanta beleza? Em que pensou Deus, ao caprichar tanto? Terá sido para inspirar os poetas? Será esta a razão oculta de tantos poetas em Minas? Serão no fundo uns frustrados que penetram nos mistérios da alma por não poder penetrar noutros mistérios? Não, fico por aqui. Positivamente, a beleza não me faz bem...

 

 

 

 

agosto, 2006
 
 
 
 

Felipe Peixoto Braga Netto (1973) é autor de As coisas simpáticas da vida (São Paulo: Landy Editora, 2005). Não é mineiro, mas vive em Belo Horizonte e ama Minas Gerais.