©steven puetzer
  
                                                                     
  

 

Dar-te-ei tudo isto, se, prostrando-te diante de mim, me adorares.

(Mat 4, 9)

 

 

O homem pós-moderno é muito mais insensível do que o moderno! Revitalizando as palavras de Anatole Baju em seu Manifesto Decadente, de 1886, Eu sacode os ombros e decide sofrer as verdades desta vida destoante. Apóia-se no silêncio e enfia-se em escadas invisíveis rumo aos píncaros, de onde a queda é mais grave.

 

Na verdade, Eu revive conflitos. Paradoxos e barroquismos. Ou fantasia a serenidade e transforma-se em nefelibata — aquele que anda ou vive nas nuvens. Daí todo esse cortejo de experiências sendo reavaliado. Trazendo no peito a marca dos angustiados, Eu experimenta a tentação de ser alevantado às alturas, porque aqui por baixo ninguém mais se atura, nem em prosa ou em verso barato.

 

Pouco a pouco, desanovela o fio do nó da garganta... e esta Fortaleza — bela? —, das alturas, vai diminuindo de tamanho, visível por todos os lados, parecendo linda, pura, insana, confirmando a lógica perversa do de-perto-ninguém-ou-nada-é-normal, e vai se desanuviando, se renunciando...

 

Eu respira fundo, transporta-se a outro tempo e lugar, e sente a primeira vertigem. Volta ao lugar de nunca mais. E do alto da torre da igreja de Santo Antônio, escalada furtivamente, entre morcegos, cheiros de vela e sombras da mente, uma coleção de Carlos Zéfiro acentua o primeiro desejo. E no olhar distanciado e satisfeito ao alto de um prédio ao largo, uma velha águia repousa, como se estivesse crucificada, sobre o globo terrestre. Profanando a sua própria história, Eu imaginava a ave defecando pedrinhas sobre o mundo...

 

Passe mágico, Eu veste-se de medo, desta feita no alto da coluna da hora na praça Capitão João Ennes, perseguindo o rastro de uma gosma existencial deixada pelos ponteiros em sua vertigem eterna. Muito além, a Chapada do Apodi e seus escarros de poeira vermelha firma-se como um altar de sacrifícios. Tonto, Eu parecia ruminar verdades em alguma cadeira a balançar no alto de uma roda gigante do Parque Brasil.

 

Veio, então, a vez de sobrevoar outra mesma divindade. Eu, filho de Nossa Senhora da Assunção, desviou seu carinho profano para Nossa Senhora da Conceição. Limoeiro do Norte passou a ser um monóculo escondido na gaveta, quase a doer, e as cores de Fortaleza, vistas de cima, era quase encantada pelos pontos luminosos salpicados da arte de Zé Tarcísio, e forjaram espinhos na garganta de Eu. Mas era só miragem...

 

Eu não pretendia ser universal cantando a mirrada aldeia ou a desgastada Aldeota, mesmo porque todos os lotes do senso comum eram clandestinos. O poeta exilado destas paragens Adriano Espínola já se manifestara do alto do Hotel Savanah, em 1982, ao lançar sobre a cidade, literalmente, seu desagravo, celebrando a urbe e a vida contemporânea, movida pela economia liberal-burguesa-consumista.

 

Eu não expressaria seu horror diante da torre da TV Cidade, quando ali do alto o malfadado filho do mundo, entre a angústia e a desilusão, ouviu os gritos, grito de Münch avesso e deturpado, de uma canalha sem coração: “Pula, pula!” Quanta expressão de dor nos sons daquela audição escura, latente, terrífica, revelada por Augusto César Motta em trilha de filme nunca realizado!

 

Eu não desistiria do calabouço invertido dos céus em cenas de indizível prazer, em retornos desde Lima, Lommel, Havana, Quillacollo, Kolscheidt...  Eu só não queria a vida desse jeito, Abel Silva, asa partida... Eu só queria sonhar ou voar mais livre, sem o chumbo nas asas, sem o sol de Ícaro, sem o fim dos desejos.

 

Do alto deste edifício, moço, Eu apenas ansiaria o verde que se raspa das margens do Cocó; rogaria uma luz mais nítida, a clarear novas imagens coloridas, enfeitando mais uma vez o Morro Santa Terezinha; pediriria uma cruz mais viva para realinhar em novo tempo Pinzon e Diogo Lepe, nas dunas da Barra do Ceará...

 

Mas o homem pós-moderno é muito mais insensível! E este chão de nuvem transforma Eu em assassino da própria dor. E a vertigem se dá mesmo é no chão, por este chão de asfalto irregular, por estas vielas inchadas de mistérios e algozes, por esta falta de educação latente pelas ruas e calçadas.

 

Insensível, embora uma réstia de esperança ainda se produza, Eu sabe que esta ausência de certezas e de cidadania e o jogo premeditado de todos os jeitinhos recebem de braços abertos a fina flor da sociedade que se esmera em produzir o lixo da aldeia.

 

Não pela reminiscência lúdica em um chão de barro e piões e bolinhas de gude e chuva e lama, mas pelo chumbo de um céu caindo sobre as cabeças, esta inglória é o que mais implora o que resta desse Eu consumido, prostrado diante de nadas.

 

 

 

junho, 2007