©john coletti
  
                                                                     
  

 

No sétimo dia, Deus descansou.

Quando acordou, já era tarde.

(Tatiana Blum)

 

 

Vez e outra, Eu se surpreende refletindo sobre tipos e cenários e circunstâncias e tais. Eufemismo à parte, finda por concluir que a história da vida é uma repetição de memórias inventadas, jogo de quimeras, absurdos e carências. Fazer o quê?

 

Dia desses, Eu não resistiu e pensou em seres risíveis. Encheu, assim, o espírito de indagações: por onde andarão os loucos contemporâneos, que se portariam como totens ou moscas inquietas no coração mitológico da literatura cearense? Por quais veredas se espalharam os monstrinhos saudáveis da tanta ingenuidade, efeitos da pura estratégia de marketing pessoal? Quem se habilita ao posto de louco, folclórico ou mártir de lenda do imaginário falso desta metrópole provinciana do século XXI?

        

Pois sim, Eu se satisfez com as primeiras idéias: artistas são espécimes aparentemente anormais. Escritores e poetas também. Mas somente os insanos são, à vera, normais, uma vez que tratam da própria condição sem máscaras — ou não é assim?. Na ponta do punhal, incluiu-se, somos todos folhetins de terceira categoria, quando o que importa é a glória. Oh!

        

Pois bem, ao tentar catar pela cidade alguém com esses predicados, logo constatou que talvez fosse necessário esculpir a tal figura da cidade contemporânea, dada a possibilidade de ausência real desse espécime. Ora, já não se percebe alguém ao modo Manezinho do Bispo, alguém do tipo José Albano, tido dândi ao inverso em França, alguém forjado ao antigo Mário Gomes da Praça do Ferreira, alguém sequer mau esboço maldito que, de longe, lembre o antológico José Alcides Pinto, e por aí segue... Eu foi à farra!

 

Como se seguisse o fio de uma meada, Eu resgatou da memória a canção de Adelino Moreira, na voz de Nelson Gonçalves — "Escultura", lembram? — chafurdou-a e soltou a paródia.

 

Cansado de tanto especular, Eu quis um dia criar na imaginação um estranho diferente, de olhar e voz cortante, que atingisse a perfeição do absurdo…

 

Instigado também pela modernidade de um Álvaro de Campos, aquele outro Fernando Pessoa no "Poema em linha reta", recolheu a deixa de que os outros não levam porrada, todos são heróis em tudo... e, mais um passo, qualquer um se torna lenda. E se perguntou: como seria esse "herói", que ficaria dividido entre Tarzan e a hóstia, não importando o que isto queira dizer. Cansado de tanto macular a mente, quis enxergar essa cópia de mentecapto, poetastro, futura lenda dessa nossa loura em frangalhos sob o sol de todo dia. Afinal, quem conta um conto, aumenta um ponto.

 

Começou a esculturar em seu sonho singular esse ser de fantasia. É claro que reuniu elementos fortes de boa gente, mesmo que para construir um frankenstein de araque.

 

Deu-se por permitido e permitiu-lhe a voz saudosa de Almir Pedreira, garantiu-lhe a malícia sábia de Augusto Pontes e benzeu-o com a pureza de Abidoral Jamacaru…

 

Um desafio ao caos, com o respeito aos citados, esse indigente de senso com voz de trovão afinada, dar-se-ia para atrapalhar recitais, discursos, eventos; qualquer jeito paradoxalmente sublime e infame pairaria sobre a fantasia e a forjada ingenuidade para expelir bobagens emolduradas por clichês; e, o resultado desse invólucro de nadas borrifados exalaria uma tal carência dissimulada, de modo a espelhar uma falsa compreensão paciente em olhares empedernidos. Alguém se habilitaria por esta primeira leitura ao posto de bobo da corte alencarina?

 

Em tio Gurgel, Eu foi buscar o sorriso e o olhar; em Mauricinho, o glamour; e, para maior beleza, deu-lhe o porte de pobreza de Zeca da Caetana…

 

Sem fazer-se de rogado, o tal por Eu entrevisto no vestido quadriculado silvapauletiano de Nossa Senhora da Assumpção - com a devida permissão ortográfica detonaria um sorriso lunático e um piscar de olhos lançados aos quatro cantos do mundo; possivelmente, adotaria uma gestualidade lenta de braços e mãos, entrecortada por movimentos mais bruscos com detalhes de espasmos contidos, para, digamos, imprimir aquela verdade tão generosa. Ou não seria nada disso? E o louco-bobo apenas lançaria troças ao vento, falando como se a modelos de asininos perplexos? Ai, ai, ai...

 

E assim, de retalho em retalho, Eu terminou o seu trabalho, o seu sonho de escultor. E quando chegou ao fim, tinha diante de si, um arremedo sem remate.

 

Eu concluiu que, de trapo em trapo, o recorte do fantasma trouxe apenas a lembrança de tantas vozes e perfis que se desfiam pela cidade contemporânea, ora rogando indulgências, ora detonando coquetéis molotov de ordinária sabedoria, ora retalhando a melancolia em jogadas magnânimas de puro sabor infantil; ora, ainda, cumprindo a sina de porta-voz de um ingênuo nonsense. Quantos existem por aí? E, se existem mesmo, por onde andarão?

 

Sem respostas óbvias, mais indagações: seria, neste caso, apenas o tempo sem fim, o condutor da legitimidade da fantasia e do sonho? Ou seriam depois os mortos ressuscitados mitos naqueles que se satisfazem com a glória póstuma? Ou seriam os vivos esses tais que desfilam idiossincrasias apenas para forjar suportes insustentáveis? Enfim…

 

Ante seu fracasso por tentar perpetuar a voz, a fúria e o boato de uma lenda qualquer, ante o cerrar das janelas da realidade para a aparição de algum mito literário de nossas plagas contemporâneas, só restou a Eu também se encerrar nesta crônica.

 

Parece que tantos e tantos se negam a "apeçonhar" a fileira dos tolos descontentes, declarando-se simplesmente elemento ancestral de futuro nem sempre brilhante. Será assim? Quem se habilita ao posto? Por onde mesmo andarão tais estrupícios?

 

         Risível é a vida. E sua história é mesmo uma repetição de memórias inventadas, jogo de falácias, absurdos e carências. Fazer o quê?

 

 

 

dezembro, 2007