©pete turner
  
                                                                     
  

 

A presença em carne e osso do escritor, não raro, é um desconcerto, porém, pode ser também um momento de magia ante holofotes. Para espectadores desavisados, essa presença pode evidenciar apenas um momento de entusiasmo, portanto, destituído da percepção crítica de que fingimento é tática, como já apontou Fernando Pessoa, ele mesmo, que não era nada chegado a uma política de cartório; outros desses espectadores curiosos se contentam com destrambelhados e falsos axiomas literários que mais desorientam do que comunicam; e há ainda aqueles que se deixam seduzir pelo soar das trombetas da glória do outro. Não há exceções. Mudando o foco, entretanto, ao culpado disso tudo: o escritor é irremediavelmente um sujeito orgulhoso de suas peripécias e por elas vaidoso, embora saibamos da existência daqueles que se escondem por detrás da árvore para melhor ser notado.

 

(Já devem pensar, e você, como escritor, em que se enquadra?)

 

Essas insinuações nada têm de novidade dentro desse nosso universo muitas vezes pálido e arrogante, mas voltaram à tona após uma conversa financiada por verdades entre mim, um professor de teoria literária e um poeta advogado. Numa soltura de verbo, em dia de cansaço, abandonei os dentes, a ironia e o desencanto da guerra para mostrar-me mais apetecido ao sabor da escritura que se valida em nossa contemporaneidade.

 

Não são convenientes conclusões unânimes nessas situações. A sorte lançada. Mais valem as partes estripadas, as vísceras expostas, o sangue das perfídias escorrendo. Que sejam metáforas, mas sejam dolorosas mesmo que não sejam…

 

Assim, uma das premissas do primeiro interlocutor se valia da certeza inconteste do valor literário de obras já canonizadas, naturalmente aquelas relevadas pelo tempo, e não pelas escolhas modelares do mercado ou pela cumplicidade das resenhas. Ao cotejo dessa idéia, a manobra radical do postulante ao descartar o seu desejo de revelar-se escritor dessa taba/tábua falsa. Teria, neste caso, pensado apenas como veleidade aquilo que se anuncia como produto de ostentação – mais um livro! - em lançamentos literários? Assim, se não fosse para ser canonizado, melhor o anonimato. Exceto o póstumo, evidente.

 

(Já devem pensar, e por que essa gana apenas pela posteridade?)

 

É óbvio que, ameno, discordei de partes da instrução, por tentar legitimar o pensamento de que não existem autores perfeitos. Existem, sim, textos de valor. O diabo é que, lembrando de outros interlocutores, emergiu deles o pensamento de que o estigma de citar aquele único chiste ou extrato aproveitável de escritor "menor" seria simplesmente um destroço, a demolição da pretensiosa estética. Risos.

 

          (Já devem pensar, quer dizer que citar é dever, e isso faz parte do joguinho incensado das politicazinhas literárias locais — aqui ou alhures —, importando o bater em costas de confrades, héin?)

         

O poeta advogado, segundo interlocutor, asseverou ser um leitor voraz. De rabo a cabo. Leu até o Ulisses joyciano, reescrevendo outra obra nas entrelinhas miúdas, como gostava de fazer o poeta mineiro Altino Caixeta de Castro. Mas também não deixou de respeitar a velha novidade de nossos dias imaturos (ou de nossa imatura novidade?).

 

No entanto, penso, os espelhos são muito mais cristalinos a nossos olhos de pretensos ou de verdadeiros escritores, o que quer que seja isto ou o que seja verdade. Já aos olhos mais críticos sopram os bafos de fuligem nas películas: ou para confundir a imagem, ou para deixá-la nebulosa ante a claridade (verdadeira ou não) das obras. E o que resulta é sempre um deslocamento dos centros de massa, e as quedas, para baixo ou para o alto. Mas, não tão ingenuamente, uma propalada virtude acadêmica é a efetiva canonização de autores defuntos ou de bissextos senis ou de desertores do ofício, com ou sem os artifícios de marketing.

 

(Já devem pensar, pronto!, mais um desabafo de um despeitado. Risos)

 

Deixando de lado os amigos e as canecas avidamente esvaziadas, relembro en passant de alguns eventos literários dessa taba Brasil. Todos esses encontros deveriam acontecer para alargar conceitos e idéias, porém, em nome de um nivelamento mais superficial ou de um espetáculo midiático, o público que deveria ser alvo, a mosca, acaba não sendo tão "público" nem tão "alvo". E o que resta é cada um dos envolvidos a evidenciar premissas e facilidades ou dificuldades de expressão ou a revelar algumas táticas e carismas.

 

O óbvio é que em todos os lugares produzimos ou reproduzimos conceitos. E  pensando, em rápida conclusão, somos todos iguais, de dia ou de noite. No mais profundo pensar, todos pensamos com equivalências, menos quando nos deparamos — por respeito ou não. Todos temos o que dizer e o que ouvir, menos quando nos dispomos — por não estarmos no palco ou na mídia. Todos temos virtudes, menos quando nos orgulhamos dela em público — por não sermos modestos ou apenas cegos. Enfim…

 

(Já devem pensar, onde você quer chegar com essa romaria de palavras?)

 

Nas equivalências, os escritores de percepções diferentes, aqui ou alhures, reagimos bem diante de um público sedento de estranhamentos. Uns trazem mais, outros menos. Todos somos válidos e inválidos no imaginário popular. Todos servimos a Deus ou ao Diabo. Ou a ambos.

 

Retomando, pois, a idéia inicial. Repetimos, pela enésima vez, que ouvir o escritor pode ser frustrante. Nenhum de nós somos confiáveis. E tantos somos vaidosos demais, por não entendermos que a função da literatura é não ter função nenhuma (mais ou menos resumindo Marcelinos Freires); ou que o papel do escritor é o A4 (como Eucanaãs Ferrazes); ou que escrever é um costume que acha que sabe toda gente (parafraseando J. L. Borges); ou que a literatura é um palco para bem-vindas e desavindas polêmicas (lembrando da revista Rascunho?); ou que "eu" sou um gênio incompreendido (alguém já pensou ou disse isto?); ou  etc. etc. etc.

 

Os amigos têm alguma razão. Esperemos, pois, a morte ou a imortalidade. Eis um sintoma do mistério. Há veleidades, e, se há discórdias, elas existem por ausência ou por excesso de compromisso. A literatura é só a vida, ou parte dela, ou nada.

 

Mas é certo que ouvir o escritor é muitas vezes frustrante, porque ele não diz o que se quer ouvir, ou diz somente aquilo que se quer ouvir. É nisto que se revelam as veleidades. É disso que restam aquelas cinzas de certa fogueira regada pelas vaidades.

 

 

 

 

outubro, 2005

 

 

 

jorgepieiro@secrel.com.br