sou apenas um fabulador, e nada do que diz
respeito à fabulação me é estranho,
desde as piadas de barbeiro até o
fineganês que James Joyce laboriosamente fabricou
rompante
conceitual
O desentendimento humano evidencia toda a
tragicomédia da vida. O Homem, personagem principal
desse ato, é um destruidor de imagens, um iconoclasta de sua própria
sombra, como se estivesse a praticar o não-Eterno no
palco do Universo. Ao aplicar-se em construir máscaras, com as quais articula a palavra e o silêncio, finda
por falsificar a coletividade, pela invasão da
privacidade das ruas, dos parques, dos edifícios apinhados de escritórios,
dos becos, do imaginário, enfim, por recriar aquilo
que melhor representa o epicentro do furacão da longeva parição do inútil: a Literatura.
Se ouso
emprestar à Literatura a pecha de vitrine de inutilidades, quero apenas
reafirmar o conceito a generalizar-se de que no âmago
dessa idéia existe a certeza de sua própria autofagia.
Porém, deixando às claras, nada é mais verdadeira do que a sua
autenticidade, por mais tola que seja. Então, vitrines
são úteis à vaidade e ao padecimento de novas idéias. Todos somos iguais perante a regra, com as requisitadas
exceções.
Nesse entremeio, o Homem se confunde com o
que há de representativo no artista ou em si próprio,
personagem, para quem todos olham com exigência, desprezo, carinho ou
admiração.
De todos os ângulos, é esse
Homem-personagem que proporciona o ranger dos elos perdidos nos abismos de cada um, quando a sensibilidade torna-se resultado
do consenso de toda uma existência. Outras vezes, a
manifestação resulta apenas em gesto desafiador: medo, perplexidade ou desespero. Em qualquer dos casos, a simples
revelação do silêncio ou sua alteração posta-se como
produto de uma evidência, de algo mais extraordinário.
Como há evidências por todos os lados, o
ser humano é um consumidor de desafios, tragédias e alegrias. Porém, é justo admitir que essas peripécias assumem
aparências diversas, podendo confundir-se com a
futilidade, a excrescência, a rebeldia, a suplantação de conceitos e, na
melhor das situações, com a genialidade.
Não é exagerado afirmar que o que torna
uma evidência humana genial é a sua forma de exprimir-se, de não se deixar exaurir pela própria forma de existir
no estabelecimento de infinitas
(im)possibilidades.
A um recriador da existência, quer seja um
poeta, um contista, um romancista, o maior desafio é
manter-se coerente com a sua própria perplexidade, negando a ignorância do
mundo criado.
será necessário que, em todo o processo,
não haja uma só palavra de minha autoria
up, enquanto evaristo
flaubert
sobre quem pesam os
silêncios
O poeta Joseph Brodsky afirmou que "a
verdadeira história da consciência começa com a primeira mentira de cada pessoa"1. Se falo sobre
Literatura, passo a convicção de que a verdadeira
consciência é aquela que mente, reformula, reimprime soluções naturalmente
falsificadas, no entanto, plenas de verossimilhança.
Crente desse método, configura-se uma outra verdade,
aquela mesma que interpreta o erro sem saber do
acerto.
Ao tratar desses estranhamentos, vale dizer que
muitos homens de letras superaram seus êxtases com
esse tipo de composição. No entanto, só alguns, ao longo dos
séculos, foram/são iniciados e incitados ao
debate de mãos e leituras terceiras. Ora, o mesmo Brodsky conclui
sobre a razão desses esquecimentos, desses
desvanecimentos, desses enganos da lógica literária,
melhor dizendo, da política literária: "quando um homem cria um mundo
próprio, transforma-se num corpo estranho
contra o qual se voltam todas as leis: a gravidade, a compressão, a rejeição, o
aniquilamento".
Mesmo assim, dentre aqueles que
reproduzem a face irônica dos alvos, verdadeiros achados já são discutidos na mídia dos guetos literários. Há dentre eles
personalidades e muitos fantasmas ainda. São vários e
surpresas: Cervantes, por excelência, Mário de Andrade, talvez, Oswald, um
pouco Murilo Mendes, alguns desenconchavos de Ítalo
Calvino, de Borges, de Voltaire ou mesmo do Kafka
aforístico, as impertinências de um Dalton Trevisan, as curiosas
inflamações de um outro Leonardo Fróes, as margens de
um Carlos Felipe Saldanha, a matemática intragável de Osman Lins, e mais… muito mais...
Então, pesando o que interessa,
contemplador, revelador, descendente fiel ou não dessas fontes, um escudeiro alimentou-se acertadamente pela lucubração da
palavra em sua forma domesticada, tratando de torná-la
mais uma vez lúcida e selvagem, motivado pela sua contraprodução. Quem assim a usou como referencial de vida, e a
viveu dentro da estrutura do universo mínimo do
fragmento apresentou-se como um "vampiro de letras", um autor
surpreendentemente alheio ao modismo ou ao lugar comum
da literatura brasileira. Refiro-me, ao paulista
Uilcon Pereira (1935-1996).
a linguagem da comunicação me permite
cortes e eu corto. os retalhos funcionam
como um jogo de computação
gráfica. pátria esquartejada a que chamo poesia
palavras distorcidas com
pecado
Michel Montaigne (1533-1592), da
Renascença francesa, inventou o ensaio com os seus Ensaios e tornou-se o criador de uma importante forma de
liberdade e de criação literária. Por seu turno,
Uilcon Pereira desaponta o status quo e oferece, não como
invento, mas peripécia rigorosa, proveniente de uma
leitura abrangente, porém seletiva, a maravilhosa aventura de orgia entre musas, o seu tratado instrumental para o sublime e,
queiram os deuses mais favoritos dessa tribo global,
eternizado, a "educação pelo fragmento (alheio)".
Assim se dá o prazer do texto em Uilcon,
como a lembrar o que diz o escritor Antonio Porchia: "o que dizem as palavras não dura. Duram as palavras. Porque as
palavras são sempre as mesmas e o que dizem
não é nunca o mesmo". O texto uilconiano é feito por palavras
alheias, por isso mesmo, recicladas e revigoradas,
oportunando seu efeito de durabilidade.
Não convém testar efeitos analíticos na
obra desagregadora de UP. Seus textos se complementam
à medida de sua lapidação e edição, parecendo construir-se como uma teia
urdida sem pressa, nem tanto planejada — mero engano!
Uilcon é um administrador paciente, rigoroso e,
pasmem, também um autodestruidor que se utiliza de uma irônica veia de
reflexos, não dispensando nem seus próprios
textos.
UP é um refragmentador, é um deus de um
deslugar chamado de Àssombradado, ao mesmo tempo em
que é o orientador dessa babel, ou o demônio que tenta seus invisíveis
personagens, ou ainda, o pronto-socorro das vítimas de
todas as palavras recicladas de livros, enciclopédias, folhetins, notícias de jornal, bilhetes ou anúncios
publicitários.
A repressão provocada pela sociedade, pelo
mundo real, pelas idiossincrasias de autor e pela convivência com a inexistência de todos os lugares fictícios,
ficcionados ou ainda ficcionáveis, permitiu ao autor,
suponho, a criação desse não-lugar identificado apenas a partir de uma
manifestação concreta do imaginável. Esse não-lugar,
pode-se aluir, dá-se como um fetiche inconscientemente
refletido pela própria significação de seus vocábulos justapostos: À /
sombra / dado. Vale dizer que na ausência da luz
elementar, a toque de surdina, ou quando todos os gatos são pardos e inevitavelmente irreconhecíveis, porém
existentes, é quando a palavra aflora e jorra seu
significado mais pungente. Àssombradado pode sugerir, ainda, o
contradesejo do autor, ao assumir o seu sonho
acordado...
A partir dessa premissa, a criação da
população desse lugar não poderia ser outra a não ser a da multiplicação de várias imagens identificadas por vários nomes,
mas que, pelo menos morfologicamente, têm repetidos a
sua raiz biut-. Os personagens desse não-lugar se multiplicam em progressão geométrica, mas são clones de um só
Biúte, Biutim ou Biutão (na realidade, forma local
para a palavra inglesa Beauty). Daí a gênese desse mundo mitológico,
com outra evolução, outra formação cadenciada e
similar ao recontar do antigo testamento e seus
sagrados desdobramentos.
em Ruidurbano existe realmente
uma desordem sem qualquer esperança,
bolhas de sabão ou bolhas de
ficção. ou antes: são lampejos claros sobre uma confusão
interminável e é preciso aproximar-se muito
para ver alguma coisa
up, enquanto Roberto Míssil
Desde os romances da trilogia "No
coração dos boatos" o mesmo modo de criar e de abordar temas é trabalhado pelo escudeiro de Quixote. O crítico Fábio
Lucas, na orelha de "Outra inquisição" já advertira:
Para entender o processo narrativo de
Uilcon Pereira e dele extrair o prazer do texto, seria aconselhável, inicialmente, que o leitor
renunciasse à expectativa de reencontrar o costumeiro relato causal/temporal e a tradição naturalista da transparência
obtida com a exposição de antecedentes e das
conseqüências de cada episódio. É preciso vencer o relativo nonsense dos
intermináveis diálogos disparatados. E o leitor verá
que, aos poucos, o significado vai-se estruturando,
que o ritmo e a efusão de idéias do romancista vão-se impodo e
transmitindo a embriaguez de um aprazível jogo
verbal.
Um momento valiosíssimo do autor pode-se
encontrar nos textos de Ruidurbano (romances para o século XX/1)2. Não fora a
incapacidade da delimitação da mídia para aqueles autores descompromissados com os modismos ou ausentes das rodas literárias
atuantes, UP demarca o seu poder de comunicação e
estilo, elaborando entrevistas, nas quais é o próprio entrevistado,
respondendo a todo aspecto de indagações dos seus
próprios interlocutores. Faz assim, às vezes, um
pastiche das idiotias de alguns pretensos repórteres sobre a criação
literária. As explicações são sempre manifestações
ricas e obsessivamente crivadas da mais fina dose de ironia.
No primeiro volume, como entrevistado para
os mais diversos e imaginários meio de comunicação —
Folhicultura, Amiga de Capricho, revista cultural Mercúrio, suplemento
literário do jornal O País, rádio Macondo
etc. etc. etc. — o autor-personagem Uilcon Pereira apresenta
ao leitor as idéias fundamentais da obra. O iniciante
desavisado ou desatento corre o risco de tentar
encontrar o livro, objeto real, em alguma livraria, o que se configuraria
em situação grotesca, pois a intenção da obra já é a
própria obra.
O segundo volume, por sua vez, traz uma
longa "Entrevista entrevista" radiofônica e teórica, acompanhada de uma antologia "selecionada por alguns de seus
homens-personagens, mesmo; publicação e
distribuição organizada pela SAR – Sociedade dos amigos de
Ruidurbano". Neste caso, penso que houve um
desvio de rota da obra, pela suposta quebra do seu ineditismo, o
que, no entanto, provoca uma nova questão: a culpa é
dos personagens com seus estiletes ou do arrebitamento
do autor, rebeldia sobre rebeldia refletida?
Essa faculdade indiscutível de extrapolar
o texto, de formatá-lo metalinguisticamente, de contribuir ironicamente com a revelação do mundo é a chave do
valoroso texto uilconiano. Uma boa maneira de realizar
plenamente a leitura dos livros de UP é duvidar da preexistência dos
fragmentos em algum original perdido na estante ou na
memória.
Em 1995, publicou uma nova plaqueta:
"Sobre arte moderna e contemporânea", contozinhos sobre pintura e pintores, "14 continhos pipocas, andorinhas,
pulos do gato", como antecipou-me via aerograma
nacional — uma mania de corresponder-se — em março/95.
Até que "A educação pelo
fragmento" (Editora do Escritor), publicado no ano da sua passagem,
em 1996, compôs-se de noventa e uma apropriações,
trans/passagens e inter/in/venções entremeadas
por biuterias ou citações de Glauco Mattoso, Aurélio Buarque de
Holanda, Marshall McLuhan, André Gide, Hans Magnus
Enzenberger, Pascal, Göethe, Ítalo Calvino, Jean Dubuffet, Friedrich Schlegel, Novalis, Leyla Perrone-Moysés, Octavio Paz,
Claude Lévi-Strauss e Gaston Bachelard...
Fora o auge do autor, no que diz respeito
à tão propagada educação pelo fragmento. Meio profético, pois ali reuniu todas as suas biutices. O livro
realmente verdadeiro que veio a lume, depois de todas
as plaquetas e investidas. Depois dele, apenas os inéditos, guardados
"na gaveta da escrivaninha, à espera de
um editor lúcido e corajoso".
A difícil e cruel
conclusão desse processo literário pode, uilconianamente, sofrer uma
inter/invenção a partir de um trecho do conto "O
pomo de ouro do eterno desejo", de Milan Kundera.
Digo que:
"o alvo da procura da solução de
Àssombradado e seus personagens, à medida que passam os anos, é muito
menos o seu encontro e cada vez mais a procura em si. com a condição de
que se trate de uma busca antecipadamente inútil, podemos a cada dia
perseguir um número infinito de lugares e personagens e dessa maneira
transformar a caça numa caça absoluta do caos. É, Uilcon del Tietê se
coloca, agora, na situação da caça absoluta".3
Nenhuma outra forma de insistir na
eternização de Uilcon Pereira.
Uma ave rara nestes ninhos de conformismos,
resignação, mesmice.
Tornei-me algo pitoresco e folclórico, aqui, no
pântano da literatura oficialesca e comercial,
na qual impera a cópia
enrustida, disfarçada, com medo de dizer o seu próprio nome e
origem.
fac-símile
Este "O Conto" foi enviado para o
Relato4 em fevereiro de 95, com a seguinte
nota: "traduzo, para você e
relato, em primeiríssima mão brasiluca":
O
CONTO5
Este conto transcorre sempre na
obscuridade. Como está escuro, os personagens que aparecem nele estão
invisíveis. Como não se vê, ninguém pode garantir que na realidade
apareçam no conto. Claro que o conto poderia ter diálogo. Mas não se vê os
que falam, quem diz o quê, quando, onde e a quem. Assim, de antemão, perde
qualquer sentido toda a conversação. Portanto, o conto carece de diálogo.
Não há personagens nem diálogo. Não se desenvolve para nenhum lado. — Ou
em todas as partes? Em nenhum momento específico. — Ou sempre? A única
coisa certa é que está sempre escuro, até o ponto em que tudo está escuro
definitivamente. Trata-se do meu conto, mas poderia também ser o teu. De
qualquer modo, é um conto muito curto. Na realidade, não passa do
título.
quem não sabe, inventa
eu hoje estou em Àssombradado
não tenho
nada a dizer
e o estou dizendo
e isto é biúte biuteful
biutefull
caixa
bibliográfica
. No coração dos boatos
(trilogia)
Outra inquisição,
1982
Nonadas, 1983
A implosão do confessionário, 1984
. Re-lances do livro de Biúte,
1986
. A educação pelo fragmento (plaqueta), 1988
. Ruidurbano:
entre/vistas, 1992
. Ruidurbano: uma antologia, 1993
. Sobre arte
moderna e contemporânea, 1995
. A educação pelo fragmento,
1996
notas de
apoio
1Trechos retirados de BRODSKY,
Joseph. Menos que um (ensaios). São Paulo, Cia. das Letras, 1994.
páginas 14 e
80.
2Foram publicados dois volumes em papel
reciclável, pela Editora Macondo, de São Paulo. O primeiro,
"Ruidurbano: entre/vistas" (1992); o segundo "Ruidurbano: uma
antologia" (1993).
3O texto encontrado em KUNDERA,
Milan. Risíveis Amores (4ª ed.), Rio, Nova Fronteira, 1985, p.
26. é o seguinte: "Pensei que o alvo desta procura, à medida que
passam os anos, é muito menos a mulher e cada vez mais a procura em si.
Com a condição de que se trate de uma busca antecipadamente inútil,
podemos a cada dia perseguir um mínimo infinito de mulheres e dessa
maneira transformar a caça numa caça absoluta. É, Martin, se colocava na
situação da caça absoluta".
4O "Relato" foi uma folha mensal
publicada por Jorge Pieiro,
entre 1992 e 1995, que conduzia experiência fragmentárias. Chegou também a
edições eletrônicas, enviadas via internet, entre 1995 e
1998.
5UP deu a sua palavra d'honra, afirmando que
"O Conto" não era biuteria. Acrescentou: "Richard
Wagner (pode?) nasceu em 1952, na Romênia (outro vampiro das letras?).
Estudou Germanística e trabalhou como professor de alemão e jornalista.
Desde 1987 vive em Berlin. Publicou novelas, contos, ensaios e poesia. Apesar do juramento, a
dúvida!".