©walter carvalho
 
 
 
 
 
sou apenas um fabulador, e nada do que diz respeito à fabulação me é estranho,
desde as piadas de barbeiro até o fineganês que James Joyce laboriosamente fabricou
 
 
rompante conceitual
 
O desentendimento humano evidencia toda a tragicomédia da vida. O Homem, personagem principal desse ato, é um destruidor de imagens, um iconoclasta de sua própria sombra, como se estivesse a praticar o não-Eterno no palco do Universo. Ao aplicar-se em construir máscaras, com as quais articula a palavra e o silêncio,  finda por falsificar a coletividade, pela invasão da privacidade das ruas, dos parques, dos edifícios apinhados de escritórios, dos becos, do imaginário, enfim, por recriar aquilo que melhor representa o epicentro do furacão da longeva parição do inútil: a Literatura.
 
Se ouso emprestar à Literatura a pecha de vitrine de inutilidades, quero apenas reafirmar o
conceito a generalizar-se de que no âmago dessa idéia existe a certeza de sua própria autofagia. Porém, deixando às claras, nada é mais verdadeira do que a sua autenticidade, por mais tola que seja. Então, vitrines são úteis à vaidade e ao padecimento de novas idéias. Todos somos iguais perante a regra, com as requisitadas exceções.
 
Nesse entremeio, o Homem se confunde com o que há de representativo no artista ou em si próprio, personagem, para quem todos olham com exigência, desprezo, carinho ou admiração.

De todos os ângulos, é esse Homem-personagem que proporciona o ranger dos elos perdidos
nos abismos de cada um, quando a sensibilidade torna-se resultado do consenso de toda uma existência. Outras vezes, a manifestação resulta apenas em gesto desafiador: medo, perplexidade ou desespero. Em qualquer dos casos, a simples revelação do silêncio ou sua alteração posta-se como produto de uma evidência, de algo mais extraordinário.
 
Como há evidências por todos os lados, o ser humano é um consumidor de desafios, tragédias e alegrias. Porém, é justo admitir que essas peripécias assumem aparências diversas, podendo confundir-se com a futilidade, a excrescência, a rebeldia, a suplantação de conceitos e, na melhor das situações, com a genialidade.
 
Não é exagerado afirmar que o que torna uma evidência humana genial é a sua forma de exprimir-se, de não se deixar exaurir pela própria forma de existir no  estabelecimento de infinitas (im)possibilidades.
 
A um recriador da existência, quer seja um poeta, um contista, um romancista, o maior desafio é manter-se coerente com a sua própria perplexidade, negando a ignorância do mundo criado.
 

será necessário que, em todo o processo, não haja uma só palavra de minha autoria
up, enquanto evaristo flaubert
 

sobre quem pesam os silêncios
 
O poeta Joseph Brodsky afirmou que "a verdadeira história da consciência começa com a primeira mentira de cada pessoa"1. Se falo sobre Literatura, passo a convicção de que a verdadeira consciência é aquela que mente, reformula, reimprime soluções naturalmente falsificadas, no entanto, plenas de verossimilhança. Crente desse método, configura-se uma outra verdade, aquela mesma  que interpreta o erro sem saber do acerto.
 
Ao tratar desses estranhamentos, vale dizer que muitos homens de letras superaram seus
êxtases com esse tipo de composição. No entanto, só alguns, ao longo dos séculos,  foram/são iniciados e incitados ao debate de mãos e leituras terceiras. Ora, o mesmo Brodsky conclui sobre a razão desses esquecimentos, desses desvanecimentos, desses enganos da lógica literária, melhor dizendo, da política literária: "quando um homem cria um mundo próprio, transforma-se num corpo estranho contra o qual se voltam todas as leis: a gravidade, a compressão, a rejeição, o aniquilamento".
 
Mesmo assim, dentre aqueles que reproduzem a face irônica dos alvos, verdadeiros achados já
são discutidos na mídia dos guetos literários. Há dentre eles personalidades e muitos fantasmas ainda. São vários e surpresas: Cervantes, por excelência, Mário de Andrade, talvez, Oswald, um pouco Murilo Mendes, alguns desenconchavos de Ítalo Calvino, de Borges, de Voltaire ou mesmo do Kafka aforístico, as impertinências de um Dalton Trevisan, as curiosas inflamações de um outro Leonardo Fróes, as margens de um Carlos Felipe Saldanha, a matemática intragável de Osman Lins, e mais… muito mais...
 
Então, pesando o que interessa, contemplador, revelador, descendente fiel ou não dessas fontes, um escudeiro alimentou-se acertadamente pela lucubração da palavra em sua forma domesticada, tratando de torná-la mais uma vez lúcida e selvagem, motivado pela sua contraprodução. Quem assim a usou como referencial de vida, e a viveu dentro da estrutura do universo mínimo do fragmento apresentou-se como um "vampiro de letras", um autor surpreendentemente alheio ao modismo ou ao lugar comum da literatura brasileira. Refiro-me, ao paulista Uilcon Pereira (1935-1996).
 

a linguagem da comunicação me permite cortes e eu corto. os retalhos funcionam
como um jogo de computação gráfica. pátria esquartejada a que chamo poesia
 

palavras distorcidas com pecado
 
Michel Montaigne (1533-1592), da Renascença francesa, inventou o ensaio com os seus Ensaios e tornou-se o criador de uma importante forma de liberdade  e de criação literária. Por seu turno, Uilcon Pereira desaponta o status quo e oferece, não como invento, mas peripécia rigorosa, proveniente de uma leitura abrangente, porém seletiva, a maravilhosa aventura de orgia entre musas, o seu tratado instrumental para o sublime e, queiram os deuses mais favoritos dessa tribo global, eternizado, a "educação pelo fragmento (alheio)".
 
Assim se dá o prazer do texto em Uilcon, como a lembrar o que diz o escritor Antonio Porchia: "o que dizem as palavras não dura. Duram as palavras. Porque as palavras são sempre as mesmas e o que dizem não é nunca o mesmo". O texto uilconiano é feito por palavras alheias, por isso mesmo, recicladas e revigoradas, oportunando seu efeito de durabilidade.
 
Não convém testar efeitos analíticos na obra desagregadora de UP. Seus textos se complementam à medida de sua lapidação e edição, parecendo construir-se como uma teia urdida sem pressa, nem tanto planejada — mero engano! Uilcon é um administrador paciente, rigoroso e, pasmem, também um autodestruidor que se utiliza de uma irônica veia de reflexos, não dispensando nem seus próprios textos.
 
UP é um refragmentador, é um deus de um deslugar chamado de Àssombradado, ao mesmo tempo em que é o orientador dessa babel, ou o demônio que tenta seus invisíveis personagens, ou ainda, o pronto-socorro das vítimas de todas as palavras recicladas de livros, enciclopédias, folhetins, notícias de jornal, bilhetes ou anúncios publicitários.
 
A repressão provocada pela sociedade, pelo mundo real, pelas idiossincrasias de autor e pela convivência com a inexistência de todos os lugares fictícios, ficcionados ou ainda ficcionáveis, permitiu ao autor, suponho, a criação desse não-lugar identificado apenas a partir de uma manifestação concreta do imaginável. Esse não-lugar, pode-se aluir, dá-se como um fetiche inconscientemente refletido pela própria significação de seus vocábulos justapostos: À / sombra / dado. Vale dizer que na ausência da luz elementar, a toque de surdina, ou quando todos os gatos são pardos e inevitavelmente irreconhecíveis, porém existentes, é quando a palavra aflora e jorra seu significado mais pungente. Àssombradado pode sugerir, ainda, o contradesejo do autor, ao assumir o seu sonho acordado...
 
A partir dessa premissa, a criação da população desse lugar não poderia ser outra a não ser a da multiplicação de várias imagens identificadas por vários nomes, mas que, pelo menos morfologicamente, têm repetidos a sua raiz biut-. Os personagens desse não-lugar se multiplicam em progressão geométrica, mas são clones de um só Biúte, Biutim ou Biutão (na realidade, forma local para a palavra inglesa Beauty). Daí a gênese desse mundo mitológico, com outra evolução, outra formação cadenciada e similar ao recontar do antigo testamento e seus sagrados desdobramentos.
 
 
em Ruidurbano existe realmente uma desordem sem qualquer esperança,
bolhas de sabão ou bolhas de ficção. ou antes: são lampejos claros sobre uma confusão
interminável e é preciso aproximar-se muito para ver alguma coisa
up, enquanto Roberto Míssil
 
 
Desde os romances da trilogia "No coração dos boatos" o mesmo modo de criar e de abordar temas é trabalhado pelo escudeiro de Quixote. O crítico Fábio Lucas, na orelha de "Outra inquisição" já advertira:
 
Para entender o processo narrativo de Uilcon Pereira e dele extrair o prazer do texto, seria aconselhável,    inicialmente, que o leitor renunciasse à expectativa de reencontrar o costumeiro relato causal/temporal e a tradição naturalista da transparência obtida com a exposição de antecedentes e das conseqüências de cada episódio. É preciso vencer o relativo nonsense dos intermináveis diálogos disparatados. E o leitor verá que, aos poucos, o significado vai-se estruturando, que o ritmo e a efusão de idéias do romancista vão-se impodo e transmitindo a embriaguez de um aprazível jogo verbal.
 
Um momento valiosíssimo do autor pode-se encontrar nos textos de Ruidurbano (romances para o século XX/1)2. Não fora a incapacidade da delimitação da mídia para aqueles autores descompromissados com os modismos ou ausentes das rodas literárias atuantes, UP demarca o seu poder de comunicação e estilo, elaborando entrevistas, nas quais é o próprio entrevistado, respondendo a todo aspecto de indagações dos seus próprios interlocutores. Faz assim, às vezes, um pastiche das idiotias de alguns pretensos repórteres sobre a criação literária. As explicações são sempre manifestações ricas e obsessivamente crivadas da mais fina dose de ironia.
 
No primeiro volume, como entrevistado para os mais diversos e imaginários meio de comunicação — Folhicultura, Amiga de Capricho, revista cultural Mercúrio, suplemento literário do jornal O País, rádio Macondo etc. etc. etc. — o autor-personagem Uilcon Pereira apresenta ao leitor as idéias fundamentais da obra. O iniciante desavisado ou desatento corre o risco de tentar encontrar o livro, objeto real, em alguma livraria, o que se configuraria em situação grotesca, pois a intenção da obra já é a própria obra.
 
O segundo volume, por sua vez, traz uma longa "Entrevista entrevista" radiofônica e teórica, acompanhada de uma antologia "selecionada por alguns de seus homens-personagens, mesmo; publicação e distribuição organizada pela SAR – Sociedade dos amigos de Ruidurbano". Neste caso, penso que houve um desvio de rota da obra, pela suposta quebra do seu ineditismo, o que, no entanto, provoca uma nova questão: a culpa é dos personagens com seus estiletes ou do arrebitamento do autor, rebeldia sobre rebeldia refletida?
 
Essa faculdade indiscutível de extrapolar o texto, de formatá-lo metalinguisticamente, de contribuir ironicamente com a revelação do mundo é a chave do valoroso texto uilconiano. Uma boa maneira de realizar plenamente a leitura dos livros de UP é duvidar da preexistência dos fragmentos em algum original perdido na estante ou na memória.
 
Em 1995, publicou uma nova plaqueta: "Sobre arte moderna e contemporânea", contozinhos sobre pintura e pintores, "14 continhos pipocas, andorinhas, pulos do gato", como antecipou-me via aerograma nacional — uma mania de corresponder-se — em março/95.
 
Até que "A educação pelo fragmento" (Editora do Escritor), publicado no ano da sua passagem, em 1996, compôs-se de noventa e uma apropriações, trans/passagens e inter/in/venções entremeadas por biuterias ou citações de Glauco Mattoso, Aurélio Buarque de Holanda, Marshall McLuhan, André Gide, Hans Magnus Enzenberger, Pascal, Göethe, Ítalo Calvino, Jean Dubuffet, Friedrich Schlegel, Novalis, Leyla Perrone-Moysés, Octavio Paz, Claude Lévi-Strauss e Gaston Bachelard...
 
Fora o auge do autor, no que diz respeito à tão propagada educação pelo fragmento. Meio
profético, pois ali reuniu todas as suas biutices. O livro realmente verdadeiro que veio a lume, depois de todas as plaquetas e investidas. Depois dele, apenas os inéditos, guardados "na gaveta da escrivaninha, à espera de um editor lúcido e corajoso".
 
A difícil e cruel conclusão desse processo literário pode, uilconianamente, sofrer uma
inter/invenção a partir de um trecho do conto "O pomo de ouro do eterno desejo", de Milan Kundera. Digo que:
 
"o alvo da procura da solução de Àssombradado e seus personagens, à medida que passam os anos, é muito menos o seu encontro e cada vez mais a procura em si. com a condição de que se trate de uma busca antecipadamente inútil, podemos a cada dia perseguir um número infinito de lugares e personagens e dessa maneira transformar a caça numa caça absoluta do caos. É, Uilcon del Tietê se coloca, agora, na situação da caça absoluta".3
 
Nenhuma outra forma de insistir na eternização de Uilcon Pereira.
 
 
Uma ave rara nestes ninhos de conformismos, resignação, mesmice.
Tornei-me algo pitoresco e folclórico, aqui, no pântano da literatura oficialesca e comercial,
na qual impera a cópia enrustida, disfarçada, com medo de dizer o seu próprio nome e origem.
 
 
fac-símile
 
Este "O Conto" foi enviado para o Relato4 em fevereiro de 95, com a seguinte nota: "traduzo, para você e relato, em primeiríssima mão brasiluca":
 
O CONTO5
 
Este conto transcorre sempre na obscuridade. Como está escuro, os personagens que aparecem nele estão invisíveis. Como não se vê, ninguém pode garantir que na realidade apareçam no conto. Claro que o conto poderia ter diálogo. Mas não se vê os que falam, quem diz o quê, quando, onde e a quem. Assim, de antemão, perde qualquer sentido toda a conversação. Portanto, o conto carece de diálogo. Não há personagens nem diálogo. Não se desenvolve para nenhum lado. — Ou em todas as partes? Em nenhum momento específico. — Ou sempre? A única coisa certa é que está sempre escuro, até o ponto em que tudo está escuro definitivamente. Trata-se do meu conto, mas poderia também ser o teu. De qualquer modo, é um conto muito curto. Na realidade, não passa do título.
 
 
quem não sabe, inventa
 
eu hoje estou em Àssombradado
não tenho nada a dizer
e o estou dizendo
e isto é biúte biuteful biutefull
 
 
 
caixa bibliográfica
 
. No coração dos boatos (trilogia)
     Outra inquisição, 1982
     Nonadas, 1983
     A implosão do confessionário, 1984
. Re-lances do livro de Biúte, 1986
. A educação pelo fragmento (plaqueta), 1988
. Ruidurbano: entre/vistas, 1992
. Ruidurbano: uma antologia, 1993
. Sobre arte moderna e contemporânea, 1995
. A educação pelo fragmento, 1996
 

notas de apoio
 
1Trechos retirados de BRODSKY, Joseph. Menos que um (ensaios). São Paulo, Cia. das Letras, 1994.  páginas 14 e 80.
2Foram publicados dois volumes em papel reciclável, pela Editora Macondo, de São Paulo. O primeiro, "Ruidurbano: entre/vistas" (1992); o segundo "Ruidurbano: uma antologia" (1993).
3O texto encontrado em KUNDERA, Milan. Risíveis Amores (4ª ed.), Rio, Nova Fronteira, 1985, p. 26. é o seguinte: "Pensei que o alvo desta procura, à medida que passam os anos, é muito menos a mulher e cada vez mais a procura em si. Com a condição de que se trate de uma busca antecipadamente inútil, podemos a cada dia perseguir um mínimo infinito de mulheres e dessa maneira transformar a caça numa caça absoluta. É, Martin, se colocava na situação da caça absoluta".
4O "Relato"  foi uma folha mensal publicada  por Jorge Pieiro, entre 1992 e 1995, que conduzia experiência fragmentárias. Chegou também a edições eletrônicas, enviadas via internet, entre 1995 e 1998.
5UP deu a sua palavra d'honra, afirmando que "O Conto" não era biuteria. Acrescentou: "Richard Wagner (pode?) nasceu em 1952, na Romênia (outro vampiro das letras?). Estudou Germanística e trabalhou como professor de alemão e jornalista. Desde 1987 vive em Berlin. Publicou novelas, contos, ensaios  e poesia. Apesar do juramento, a dúvida!".