©chema madoz
1.....Sirvo-me deste texto para provocar algumas questões, assim como para democratizar idéias e, principalmente, revelar um cenário literário que está em plena e franca realização no Brasil. A tentativa de fazer uma abordagem sobre o que há de mais atual em nossa literatura, de aglutinar aquilo que ainda se molda, é uma tarefa, se não árdua, pelo menos instigante, mesmo diante dos valores culturais em vigor. .......Desde a década de 50, a arte e, por delimitação, a nossa literatura, vive a anomalia da pós-modernidade. Se me permito admitir essa afirmação, encontro respaldo no vazio que a classificação encerra. Afinal, o que é o pós-moderno? Se já é pós, o que acontecerá depois? Alguns até já anunciam o pós-tudo. O pós-tudismo? E outros acenam também para um impróprio neomodernismo. .......Acredito serem fantasiosas essas classificações e, conseqüentemente, os enquadramentos, por permitirem apenas o rastro das possibilidades do que, eventualmente, possa ser produzido; como se a partir das obras, a criação de rótulos se instalasse como verdade absoluta. Ora, isto é uma inversão de valor. Não é possível admitir que qualquer rótulo se sobreponha à própria criação. .......Ser pós-moderno — referindo-se apenas a narrativas —, por acaso, é ter pouca pretensão de originalidade e crítica? É prescindir de um estilo próprio, fazendo uso da padronização, da repetição, da homogeneização? É subverter as formas narrativas por meio da combinação e apropriação de gêneros modernos e clássicos, tentando construir um gênero massificado? É misturar técnicas da linguagem jornalística; da TV, do cinema, dos quadrinhos? É imitar textos consagrados, valorizando temas como loucura, sexo e violência? .......Dos conceitos de moderno, modernismo e modernidade, e a reboque, os que se permitem o prefixo pós, estamos fartos! Desde o final da idade média, vivemos modernidades. Parte da inteligência humana vem manipulando esses conceitos e, cada vez mais, causando confusão. .......Mas deixo de lado essas possibilidades teóricas para encarar os textos narrativos de alguns autores brasileiros surgidos a partir da década de 90, que adotaram a brevidade do relato como tendência da ficção. 2.....Ao contrário do que findo por dizer — os enquadramentos são nocivos, porém, inevitáveis — é cedo ainda para se pensar na estilização de um novo período literário, assim como na canonização de alguns autores do nosso entorno temporal, até mesmo por que se evidencia mais um período de transição e, como tal, incompleto e desnorteado. Porém, já se faz tarde para que não se possa debruçar sobre algumas evidências que se cristalizam desde a última década do século passado. .......Essa linha de raciocínio é a que se me afigura para tentar responder a uma questão aberta em minhas reflexões. A pergunta acompanha um dos tópicos valorizados e não desenvolvidos pelo escritor Ítalo Calvino, em sua obra Seis propostas para o próximo milênio (Companhia das Letras, 1990), que reuniu as conferências de Harvard, que seriam pronunciadas nos anos de 1985 e 1986. Calvino delineou alguns tópicos e escreveu cinco conferências, tendo como temas Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade e Multiplicidade. A sexta conferência — denominada Consistência — seria escrita durante a permanência do escritor naquela universidade. Seria, pois a viagem definitiva e não programada deixou órfãos os leitores desse último texto, e os ouvintes de suas conferências. .......Pois é a partir da Consistência, ausente do texto de Calvino que, pretensiosamente, ouso discorrer neste ensaio, o que será complementado com a reflexão: um valor literário da narrativa curta dos anos 90? Ressalto que a indagação delimita os anos 90 apenas como período de recuperação da narrativa curta; mas os exemplos aqui citados serão de autores surgidos a partir daquela década. 3.....O dicionário Aurélio é sucinto e pouco esclarecedor, com relação ao termo, pelo menos no âmbito do que aqui reflito. No entanto, sempre é possível vislumbrar novas perspectivas. No item dois do verbete Consistência lê-se que é a "concordância aproximada entre os resultados de várias medições de uma mesma quantidade". Logo a seguir, em sentido figurado, é "perseverança, firmeza, constância". .......Seguindo a definição de dicionário, as aproximações de textos de vários autores, já podem sugerir essa concordância em termos de temas e utilização da linguagem para a construção das narrativas curtas. De uma série de textos lidos de vários autores, algumas palavras e efeitos se destacam como temáticas: o sobressalto, o medo, a dor, a saudade, a ilusão, a angústia; mas também o fastio existencial, a obsessão, a neurose, o desequilíbrio, a insensatez, a fúria, o delírio, a morte — que, ao lado das anteriores, são reflexos das violências cotidianas; além dos enigmas e atmosferas fantásticas, talvez frutos de perplexidades e ausência de rumos. .......Mas, o que entendo por Consistência, se emprego a palavra como um valor literário a ser preservado no curso deste novo milênio? O que diria Calvino? .......Entendo
que a consistência do texto literário é resultado
de dois procedimentos. O primeiro, de ordem estrutural, é aquele
que encerra o limite temático com uma linguagem acessível,
contundente e aberta à intervenção reflexiva
do leitor. O segundo, de ordem conceitual, que permite uma aproximação
com a vida, que a represente, que deixe à mostra as vísceras,
de modo a garantir uma espécie de repulsa ou transferência,
mesmo que invisível, no leitor.
.......O conto breve de Carlos Herculano Lopes soa estranho — trata-se de uma fábula? De uma alegoria? De um delírio? —, mas não perde a coerência. E, de qualquer forma, remete o leitor a pólos de indecisão: isto é vida ou morte? Dessa maneira é também o pequeno trecho de Leonardo Vieira de Almeida, que por si, já se poderia confundir com o próprio modelo narrativo do gênero, completo, como se desfiado de suas outras circunstâncias. Assim, teríamos um conto dentro do conto? São dois exemplos da dicotomia que imagino com o valor da consistência, salvo melhor juízo. 4.....Nelson
de Oliveira, um poderoso contista, ousou arregimentar em torno de
duas antologias — Geração 90: manuscritos
de computador e os transgressores (Boitempo, 2001 e 2003, respectivamente)
— 29 narradores. Atrevido, e, com certeza, parcial, resolveu
torná-los os melhores contistas brasileiros surgidos no final
do século XX. .......O antologista, no prefácio, acentua sobre as obsessões temáticas de cada autor, que aqui, saliento em nomes completos que apresento ou relembro; que devem ser experimentados, amados ou odiados, enfim, julgados.
.......Em Geração 90: os transgressores, em que reúne narrativas mais longas, o organizador aponta como interseções entre os autores escolhidos, além de terem estreado na década de 90, o nonsense, a ironia, a insanidade, a fragmentação lírica, o fluxo da consciência, as divagações cínicas e rancorosas, a delicadeza do absurdo, o gosto pela prosa mal-comportada e o desprezo pelo discurso linear. Nesta antologia, além de Altair Martins, Marcelo Mirisola e Jorge Pieiro, acrescentem-se os nomes de Ademir Assunção, Edyr Augusto, Arnaldo Bloch, Ronaldo Bressane, Simone Campos, Luci Collin, Fausto Fawcett, Claudio Galperin, Ivana Leite Arruda, Daniel Pellizzari, André Sant'Anna e Joca Reiners Terron. .......Vale dizer que é possível encontrar consistência nesses autores, mesmo que esse conceito não encontre respaldo pela generalidade ou pela forma de expressar, paradoxalmente, seus manuscritos em computador ou a discutida transgressão em pleno século XXI, que pode parecer anacrônico. Independentemente de manifestações ideológicas, o momento atual permite que se cumpram esses escrutínios. O homem, o escritor é o seu tempo! E não adianta tentar fechar-se em cânones, ou simplificar autores como epígonos de canonizados. .......O próprio Nelson de Oliveira, que se eximiu da antologia, é autor de dois contos, pelo menos, cujo enriquecimento do texto literário ocorre por intermédio da linguagem. Falo de "Qüiproqüó na Sé", da coletânea Os saltitantes seres da lua (Relume Dumará, 1997); e de "Zede, o gado", de Treze (Ciência do Acidente, 1999), que ora apresento. Reparem no que a leitura dessas imagens acústicas podem proporcionar:
.......Também autor de Naquela época tínhamos um gato (Companhia das Letras, 1998), e do recente Sólidos gozosos & solidões geométricas (Record, 2004) e das narrativas de O filho do crucificado (Ateliê, 2001), em Treze, o numeral homônimo representa a quantidade de contos curtíssimos, que se suplantam pela concisão, pelo insólito, pela dose surrealista que encerra, pelo grotesco sublime — se assim, paradoxalmente, é possível a expressão. Com isso, Nelson de Oliveira não apenas revê o minimalismo, como também reinterpreta a topologia do caos e a perplexidade de seus habitantes. 5.....Nelson de Oliveira, uma vez convidado pela Universidade de Lima, levou alguns brasileiros em seu texto. Afirmou que a prosa tornou-se menos racional, mais ligada ao onírico. Mas, acrescento, por isso, não menos consistente. O que ele defende, é que o texto tornou-se menos apolíneo e mais dionisíaco. Entre eles, cita a narrativa do mineiro Luiz Ruffato, autor de dois bons livros de narrativas curtas: Histórias de remorsos e rancores (Boitempo, 1998) e (os sobreviventes) (Boitempo, 2000). Dele, inevitável é não pensar que o conto "Decisão" não tem uma relação forte com o conto "Estória de seu Armando e de seu amor" (In: Mundinha Panchico e o resto do pessoal), do cearense Juarez Barroso, cuja obra foi reeditada, por completo e em volume único, pelas Edições Demócrito Rocha. Apresento, no entanto, um trecho, entre tantos!, consistente, a meu ver, do conto "O segredo", da segunda coletânea:
.......Aqui, presumo a consistência, tanto pela construção independente dentro dos limites maiores da narrativa completa, quanto pelo entrelaçamento da linguagem como representação da vida. Paradoxalmente, a elaboração do desejo da personagem se dá não para a vida, mas pela morte. .......Cita, Nelson, também, o estilo "simples e direto com estocadas fulminantes" do paulista Marçal Aquino, autor de As fomes de setembro (Estação Liberdade, 1991), Miss Danúbio (Scritta, 1997), O amor e outros objetos pontiagudos (Geração Editorial, 1999) e do festejado Faroestes (Ciência do Acidente, 2001). Exemplo? Um texto aparentado com a concisão do guatemalteco Augusto Monterosso — "Quando despertou, o dinossauro ainda estava lá", que inspirou Marcelino Freire a organizar Os cem menores contos brasileiros do século (Ateliê, 2004). Mostro "Epígrafe: Memórias conjugais": "Acendi o cigarro. / E só então reparei como o vestido dela era inflamável" (In: Geração 90, Boitempo, 2001). Isto é consistência. É também ironia. É também humor-negro. É a vida oculta. .......De João Carrascoza — leiam-se Hotel solidão (Scritta, 1994), O vaso azul (Ática, 1998) e Duas tardes & outros encontros silenciosos (Boitempo, 2002) — diz que é "um lapidador de sentenças, um filigranista". O início do conto "Travessia" é de um lirismo que impressiona:
....... .......De Mirisola, apenas uma amostra, talvez uma das mais pudicas dentro de sua obra, que se faz consistente pela simplicidade com que o autor transporta o leitor a extremos: perversão? Desajuste? Pornografia? Imaturidade? Desnudamento da linguagem? Insurreição contra a hipocrisia? Leio trecho extraído de "Joana e as gôndolas":
6......Há muitos autores que reacendem a grande explosão do conto dos 90, autores que revalorizam o gênero; que, dentro das possibilidades da própria conjuntura, revelam mundos insólitos. Entre tantos nomes — cabe aqui, o registro, ao Rascunho, de Curitiba, que, de alguma forma, ilumina ou destrói a sombra desses tantos autores —, eis alguns mais que não podem ser esquecidos, pois representam, queiram ou não, a própria história atual da nossa literatura de gênero curto: Jorge Viveiros de Castro; Daniel Galera; Tércia Montenegro; Evandro Ferreira; Álvaro Caldas; Carlos Trigueiro; Airton Paschoa; Dimas Carvalho; Luciano Bonfim; Sérgio Fantini; Paulo Betancur; Cláudia Lage; Luiz Paulo Faccioli; Rodrigo Naves; Carlos Ribeiro; João Batista Melo; Paulo Franchetti, Paulo Sandrini, Verônica Stigger e tantos... tantos desconhecidos que regem essa orquestra de silêncios! .......É óbvio que registro apenas alguns nomes ligados à narrativa curta, surgidos nos anos 90. Se não, estaria apenas armando a minha própria cilada, por deixar de fora tantos outros autores que, desde sempre, declararam-se adeptos do gênero curto e já se acumulam de reverências e lugares certos, em se tratando de uma abordagem mais abrangente. .......Retomando, no entanto, a reflexão inicial, penso que a nova leva de contistas, que soam breves, periféricos, marginais, tradicionais, desestruturadores, líricos, radicais, impressionistas, (re)inventores... consegue traduzir o espírito da nossa época. Não vou fazer comparações com nomes consagrados, nem tampouco participar do silencioso movimento em prol dos deméritos alheios. .......Acredito no que escrevem esses autores mencionados, pelo que já li, isentando-me, desde já, do prejuízo de não poder ter lido tantos outros que poderiam ter sido nomeados. É claro, faltam muitos passos ainda para uma transubstanciação, mas talvez não seja a resposta do oráculo que se pretenda; ou a glória, apesar da vaidade aparente ou latente do ser escritor. .......Penso que por essa atual geração, melhor dizendo, por todos esses pares das curtas narrativas, a nossa literatura já não deve se intimidar diante de outras. Estão apenas seguindo os passos, criando espaços. Vale, então, começar a pensar em suas obras, conhecê-las, revelá-las, furando os cercos da distribuição desajeitada e do próprio preconceito contra novos autores. .......Se lembro agora do tema deste ensaio, retifico. Absolvo e libero o sinal, a interrogação. Tenho a audácia de afirmar que Consistência é um valor literário da narrativa curta dos anos 90.
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